segunda-feira, 29 de abril de 2013

Paixão de taxista é dose

Estou há meia hora de pé, no meio de Ipanema, acenando para os táxis que passam. Hora do rush, todos com passageiros. De repente, um taxista pára na minha frente, desce do táxi e pergunta aonde estou indo. Para o aeroporto, respondo. Ele fica parado por cinco segundos, como se refletindo se valia a pena ir para o aeroporto ou não. Daí ele abre o porta-mala do carro e enquanto coloca minha mala, pergunta se eu tenho Nextel.

Enquanto especulo se o cara quer me dar algum calote, fico preparada para tirar a mala do carro e desistir da corrida, ainda que aquela talvez fosse a minha única opção de ir ao aeroporto naquele momento. Mas em dois segundos mudo de idéia. Numa reação quase instintiva, desisto de recuar e vou para o ataque:

- O senhor não tem celular?

Pergunta legítima, penso. Afinal, desde a época da privatização, as linhas de telefone móveis se tornaram acessíveis e quase todos os brasileiros. Portanto, a maioria das pessoas em grandes centros urbanos, como o Rio, tem celular. A resposta dele me assegura não é um esquema para engambelar turistas:

- Não. É que ELA tem Nextel.

“Ela”, pensei. Coisas do coração. O sujeito, atordoado pela paixão, desesperado para ligar para “ela”, não nota quão inapropriado é pedir para usar o Nextel do cliente. Ato mais do que compreensível, pensei. E respirei aliviada, pois um sujeito entregue dessa forma à paixão certamente não iria me dar um calote, montar um esquema para roubar turistas, ou fazer qualquer coisa de errado comigo. Não com maldade, ao menos.

Entramos no carro. De repente, ele olha para a banca da esquina e diz, me dá um minutinho que eu vou ver se eles vendem crédito pro celular. Penso com meus botões: corrida para o aeroporto, estou com mala, o sujeito devia ao menos ter perguntado se eu tinha tempo! Mas ele não perguntou nessa nem das três outras vezes em que ele parou no caminho, até achar uma banca onde ele pudesse comprar créditos para o celular dele. 

Cada vez que ele descia do carro, deixando a chave na ignição e o motor ligado, eu imaginava o que aconteceria se um assaltante oportunista resolvesse roubar o carro. Ia levar uma cliente de brinde! Imagine que noite bem-sucedida: rouba o carro do taxista e a cliente numa tacada só -- e quase sem esforço. E só entrar, engatar a primeira e pisar no acelerador. Coisa de filme, pensei. Mas como o Rio é uma dessas cidades em que coisas de filme acontecem todos os dias, achei que o risco de que acontecesse comigo não era pequeno. Pelo contrário.

Mas o assaltante não veio. Quem veio foi o taxista desesperado que agora, com crédito no celular, resolveu ligar para a Marcia. Mas a Marcia estava muito brava. Muito mesmo. Ele se desculpou muitas vezes, mas ela não cedia. Ele foi ficando cada vez mais desesperado. Pediu para passar na casa dela pela manhã, ela gritou que não. Ele insistiu e ouviu mais impropérios. Ele implorou para ela se acalmar e falou que eles precisavam conversar com mais calma. Sugeriu que iria passar na casa dela “mais tarde”. Marcia não arredava o pé. 

Erro grave que esse sujeito cometeu, pensei. Traição? Mentira? Roubou dinheiro dela? Difícil saber. A conversa não revolvia em torno do acontecido, pois a Marcia não queria mais saber dele. Não queria vê-lo nunca mais na vida. Ele tentava negociar apenas uma audiência. Uma chance de tentar falar com ela olhando no olho e talvez dissuadí-la da idéia de largá-lo. 

Enquanto ele temia pela perda da Marcia, eu temia pela perda da minha vida e do meu vôo. Quanto mais tensa ficava a negociação, mais rápido e desgovernadamente ele dirigia. Não sei se o calor da discussão estava sendo canalizado para o trânsito, ou se ele queria chegar logo no aeroporto para correr para a casa da Marcia. Eu também não sabia se torcia pelo primeiro ou pelo segundo. 

Se ele tivesse apenas atordoado com o calor da discussão, provavelmente não estava nem notando a forma perigosa como dirigia. Isso aumentava meu risco de vida. Se a pressa era para chegar mais rápido na casa da Marcia, o perigo diminuia um pouco (ele tinha mais ciência dos riscos que corríamos), mas a possibilidade dele parar o carro e me mandar descer a qualquer momento aumentava. Afinal, a prioriedade ali claramente era a Marcia, não eu. E pegar um táxi na Baía de Guanabara ou no aterro, naquele momento, não ia ser fácil. Mas, como eu disse, coisas que só acontecem em filme também acontecem no Rio todos os dias. E largar um passageiro no meio do caminho e correr para encontrar seu amor, convenhamos, é coisa de filme. 

Pensei em reclamar com ele que ele não devia ter pego um passageiro sem antes lidar com os problemas pessoais dele. Depois pensei em dar uma desconto. Afinal, coisas do coração nos fazem fazer coisas sem sentido. Somos humanos. Mas cheguei à conclusão que as coisas do coração perdem a licença poética quando afetam terceiros desinteressados, como eu. Afinal, eu não tinha nada a ver com o assunto. 

Na verdade, a coisa foi quase uma armadilha. Afinal, se ele tivesse me consultado anteriormente e perguntado se eu gostaria de ter uma corrida tão caótica e emocionalmente estressante para o aeroporto, eu recusaria. Quando descobri onde eu tinha me metido, todavia, eu não tinha como sair da situação.

E foi por isso que quando finalmente chegamos ao aeroporto milagrosamente sem sofrer nenhum acidente no caminho, eu resolvi pagar só a metade da corrida. O taxista protestou e por um segundo eu contemplei a possibilidade de fazer um discurso indicando tudo o que tinha de errado com o comportamento dele. Mas além de me chamar de paulistana enrustida, havia o risco dele querer discutir se eu estava certa ou errada sobre meu “código de conduta para taxistas apaixonados”. Para evitar esse risco, decidi falar o pouco de carioquês que eu aprendi na vida: 

- Depois de uma corrida dessas, preciso de um whisky. E quem vai pagar a conta é você, amigo.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Vidas Paralelas (2)

Recentemente terminei de ler o livro da Sheryl Sanderberg, Lean In, que foi traduzido no Brasil como Faça Acontecer. O livro apresenta, de maneira mais detalhada e cuidadosa, as idéias que a Sheryl já tinha apresentado na sua TED talk. 

Já tinha postado isso no blog, mas vale a pena ver de novo:


Diferentemente do vídeo, o livro tem sido alvo de críticas e debates. Um pequeno resumo dos debates saiu no New York Times, e depois a principal crítica da Sheryl escreveu pessoalmente um artigo sobre o assunto. Para os interessados, há uma possível resposta a essa crítica aqui. O debate, além de interessante, é super importante. 

Mas não é sobre isso que eu vim falar. Minha observação é muito mais mundana. Ou, como diriam em inglês, pedestrian. Depois de terminar a leitura, me aventurei pelos agradecimentos do livro e descobri ali três coisas. 

Primeiro, o livro tem uma co-autora cujo nome não está na capa. Nell Scovell, a jornalista que supostamente "ajudou" a Sheryl a escrever o livro, aparece na capa interna do livro, mas não na capa externa. A capa externa, não só omite o nome da co-autora, mas tem a foto da Sheryl  ocupando mais da metade do espaço. 

Segundo, a Sheryl contratou uma pesquisadora de Stanford que "ajudou" com todas as pesquisa interessantíssimas que ela cita no livro. Nos agradecimentos a Sheryl diz que ela foi a "coordenadora" ou "diretora" de todas as pesquisas conduzidas no processo de elaboração do livro. 

Terceiro, a Sheryl agradece a cunhada dela, que ficou tão animada com o projeto que passou a entrevistar todas as suas amigas-profissionais-que-viraram-mães. Segundo a Sheryl, ela coletou algumas das histórias contadas no livro, que ilustram bem claramente alguns pontos da autora, e fazem um contraponto refrescante aos parágrafos cheios de pesquisa e notas de rodapé. Afinal, ficar lendo só sobre pesquisa é coisa de acadêmico nerd, né? 

As palavras dos agradecimentos sugerem que essas três pessoas ajudaram muito a Sheryl. Mas para quem já escreveu um livro e ajudou outras pessoas a escrever livros, esses três agradecimentos revelam como que uma alta executiva do Facebook, que trabalha alucinadamente em tempo integral, além de ser mãe, conseguiu encontrar tempo para escrever. 

Basicamente, os agradecimentos sugerem -- ao menos para mim -- que a Sheryl se limitou a dar as diretrizes. Minha hipótese (que é meramente especulativa, vale frisar) é a seguinte: A jornalista escreveu todo o texto, as partir da estrutura determinada pela Sheryl. Daí, a pesquisadora mandou relatórios detalhados de pesquisa, que a Sheryl leu, selecionou o que seria incluído, e pediu para a jornalista encaixar no texto da melhor forma possível. Por fim, vieram as histórias de entretenimento, que foram coletadas e transcritas pela cunhada, lidas e selecionadas pela Sheryl, e incluídas no livro pela jornalista. E assim a Chief Operation Officer (COO) do Facebook escreve um livro -- sem tocar em uma única vírgula do que está ali, mas coordenando todo o processo do início ao fim. 

Há muitos acadêmicos que adotam esse mesmo sistema. Eu chama eles dos CEOs da academia. Eles arranjam financiamento para contratar um time no qual cada um tem um talento específico (escrever bem, fazer pesquisas cuidadosas ou ter suficiente contato com o mundo fora da academia para trazer anedotas ilustrativas) e fica encarregado de uma tarefa específica. Daí, como o regente de uma orquestra, ou o CEO de uma empresa, esses acadêmicos produzem papers, livros e fazem pesquisa, sem ter que colocar a mão na massa. 

Não condeno ninguém por fazer isso. Na academia, essa prática é o resultado de um mundo em que o nível de produção exigido dos pesquisadores é muito mais do que um ser humano conseguiria humanamente produzir sozinho.  Nesse publish or perish, quem não adota um sistema desses -- de algum modo, em algum momento -- acaba no olho da rua. E não deveria ser surpresa para ninguém que uma alta executiva de uma das maiores empresas dos Estados Unidos tenha ainda menos tempo que um acadêmico para escrever livros.

Fico desconfortável, todavia, com a idéia de que a Sheryl ganhe a fama e todas as outras pessoas que contribuiram de maneira tão significativa para o projeto -- e todas elas mulheres, vale notar! -- fiquem relegadas à obscuridade. Eu já estive de ambos os lados dessa equação e é meu sentimento de injustiça da época em que eu estava no lado mais fraco que me leva a colocar como co-autores os ajudantes de pesquisa que contribuem de maneira substantiva com o projeto. A Sheryl parece tentar reconhecer a importância da jornalista na capa interna, colocando-a como co-autora. Mas a capa interna é um lugar onde poucas pessoas vão olhar. Nos lugares de grande visibilidade, como a capa externa, a lombada do livro, e mesmo a descrição do volume na Amazon.com, tem apenas o nome da Sheryl.

Talvez a Sheryl me acuse de estar adotando uma postura essencialmente feminina, que é a de achar que todo meu sucesso e o produto do meu trabalho não se deve só a mim. Talvez ela sugira que eu volte a ler o livro dela, em especial o capítulo onde ela mostra que as mulheres precisam adotar uma postura mais assertiva sobre suas conquistas, como fazem os homens. Talvez ela esteja certa. 

Mas há uma pequena possibilidade de que eu esteja contribuindo pra criar uma geração que não vai mais se submeter a esse tipo de arranjo no qual as pessoas que trabalharam com a Sheryl se submeteram. E daí nos vamos ter livros com capas que incluem todas as pessoas que contribuiram para o projeto como co-autoras. E quem sabe nesse dia nós estejamos um pouco mais perto de alcançar um mundo onde haja igualdade de verdade, como tanto quer a Sheryl.