A cidade de
Santiago é infestada de cachorros de rua. Dormem por toda parte, se reúnem em
bandos nas esquinas e frequentemente estão no meio dos pedestres esperando o
sinal verde abrir para atravessar na faixa. É quase impossível perambular pela
cidade sem notá-los a cada esquina.
Da última
vez que visitei Santiago, fiquei impressionada com toda a funcionalidade
e obediência às regras desse país. A América Latina faz muitas coisas
maravilhosamente bem, mas cumprir com a lei e manter a ordem não estão na
lista. Santiago tem muitas coisas em comum com o resto do continente, mas nesse aspecto parece uma grande exceção à regra (ou falta de
regra) latino americana. E isso inclui os cascudos* nas ruas de Santiago: não
atacam ninguém, não latem, não brigam entre si e, como disse antes, esperam o
sinal fechar para atravessar a rua na faixa.
Estava
pronta para me impressionar com toda a boa governança chilena de novo mas, dessa vez, ao prestar atenção nos cascudos, outra
coisa me chamou atenção: toda a doçura que governa essa cidade.
Um dos
livros apresentados na conferência que me trouxe aqui começava com uma história
interessante sobre política municipal. Os habitantes de Santiago prefeririam
ter menos cachorros na rua, mas não apoiam sacrificar os cachorros. Portanto, o
governo fica em uma sinuca de bico, pois não podem mandar a carrocinha
“eliminar” todos os cachorros de rua. Certamente a medida seria seguida de
enormes protestos populares. Ao mesmo tempo, não pode acolher todos os
cachorros que perambulam pelas ruas de Santiago: os custos da empreitada
certamente afetaria o orçamento da saúde, educação e vigilância sanitária. Ou
seja, protestos, certamente.
Qual a
solução? Não fazer nada. Quer dizer, o governo não faz nada. A população toma
conta dos cachorros. E tomam conta de verdade. Vi cachorros dormindo na porta
de lojas de artigos de luxo e na frente da Casa da Moeda, o a palácio do
governo. Ninguém solicita delicadamente que eles saiam. Chutá-los, muito menos.
Mas o cuidado vai além disso. Há baldes de água pregados em árvores, com os dizerems "água para perritos vagos" e uma
solicitação para que não se jogue lixo no balde. E há cachorros agasalhados.
Muitos. Afinal, o inverno é frio em Santiago e alguém se deu ao trabalho de
providenciar pulôver de lã para os cascudos, que desfilam comportadamente pelas
ruas com seus agasalhos.
E a doçura da população chilena não é apenas direcionada aos cascudos. No primeiro dia que entrei no condomínio onde estava hospedada, o porteiro me chamou. Achei que ia perguntar quem eu era e onde estava indo. Ledo engano. Para minha surpresa, ele me perguntou porque eu estava mancando. Fiquei eu numa sinuca de bico: como traduzir “hip problem”? Apontei para meu “hip”, dizendo que tinha “un problema a cá”. “Ah, las caderas”. Sim, estou com um problemas nas cadeiras. Sorri, agradecida e entretida pela tradução. Ele sorriu com toda compaixão que alguém poderia ter com minhas cadeiras, e se despediu com um “se cuide”.
E o
porteiro não foi uma exceção. Da próxima vez que estiver no Chile note como
todos se despedem com um “que se vaya bien”. Eu traduzi isso como aquele “tudo
de bom” que a gente no Brasil deseja apenas a amigos e família e, em geral,
somente em aniversários e despedidas. Aqui não. Eles desejam isso para todo
mundo, todos os dias. A caixa do supermercado me desejou tudo de bom. Todos os
garçons também. Até o funcionário do metrô me desejou tudo de bom, mesmo depois
de passar meia hora lidando com minha confusão com o sistema de bilhetes deles
(tem um bilhete para hora do rush, outro para a hora dos que não tem horário, e
um terceiro para os boêmios -- e cada um é um preço). Para não deixar tanta
gentileza passar batido, saquei em cada uma dessas oportunidades o melhor do
meu portunhol: “Que se vaya bien para usted tambien!”.
E assim
foram minhas interações com esse povo chileno que consegue ser eficiente,pontual e cumprir com as leis sem perder a ternura. Jamais. Na minha última
visita, acabei associando o cumprimento de regras com o alto
índice de desenvolvimento deles. Não mudei de ideia com relação a isso, mas
acrescento aqui um novo elemento: é mais
fácil viver e cumprir com as regras numa sociedade gentil. Fui pedir orientação
aos carabineros (polícia chilena) e encontrei duas pessoas solícitas e
sorridentes que não apenas me indicaram onde ir, mas puxaram papo: perguntaram
de onde eu era e comentaram o jogo do Brasil na copa. Minhas duas tentativas de
pedir orientação a policiais no Brasil foram respondidas com uma cara feia e um
resmungo (afinal, eles estão lá para combater a criminalidade, não dar
informações, e eu obviamente estava atrapalhando a missão!).
Em suma, como
diz a camiseta: “gentileza gera gentileza”. Eu acho que gentileza gera também gera
bom comportamento. Basta olhar para os cascudos de Santiago ou para os carabineiros,
que têm um dos índices mais baixos de violência da América Latina e contam com
altos índices de confiança da população. Os cascudos são doces porque todo mundo trata eles com gentileza. Em suma, é uma doçura coletiva que se
auto-reforça, criando um ciclo virtuoso de doçura e bom comportamento por toda
a cidade.
E eu
suspeito que essa doçura chegue até o vinho, pois só isso pode explicar como
eles conseguem produzir essa coisa maravilhosa que é o vinho chileno. Um brinde
a eles! E que se vaya bien!
*P.S. "Cascudos" é o
apelido que minha irmã dá a todos os cachorros do mundo. Não sei de onde veio,
mas acho tão simpático que resolvi emprestá-lo.