quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ah, essa coisa chamada desenvolvimento...

Quem acha que eu sou preconceituosa vai ter que me perdoar por esse post, mas nas últimas semanas eu fui inundada com uma série de eventos que reavivaram o meu discurso de como as coisas funcionam aqui e como ainda estamos longe de chegar perto disso no Brasil.

Hoje, por exemplo, recebi um email sobre a questão do aborto de fetos anecefálicos no Brasil. O email tinha informações sobre o que argumentam os ativistas a favor e contra aborto. Ambos os lados têm feito campanhas agressivas desde que a questão foi levada ao STF, na esperança de que pressão popular vai influenciar algum tipo de mudança.

Enquanto as pessoas lutam por aborto desses fetos no Brasil, o Canadá baniu qualquer restrição ao aborto em 1988. Isso significa que qualquer mulher, em qualquer momento da gravidez, pode entrar em um hospital público e ter o procedimento realizado gratuitamente. Há, é claro, alguns problemas aqui e acolá no sistema, mas são problemas de implementação, não de definição do que é direito ou não. A discussão jurídica sobre esse assunto foca em outras questões, como, por exemplo, o que fazer com os médicos que alegam objeção de consciência (por motivos religiosos, éticos ou morais)? Teriam eles direito de não realizar abortos? E por aí vai a discussão.

O segundo episódio foi um acidente envolvendo um carro e um ciclista, no qual o ciclista acabou falecendo. Alguns dias depois, teve um protesto dos ciclistas. Eles percorreram algumas ruas da cidade e pararam no local do acidente, onde há flores e mensagens para o ciclista que morreu, e ergueram suas bicicletas em protesto.



O ciclista era o que eles chamam aqui de bike courrier, que é o equivalente dos nossos motoboys. A diferença é que em média morrem dois motoboys por dia em São Paulo. Obviamente, não há passeata ou nada equivalente...

Uma outra coisa interessante do episódio é que o motorista era o ex-advogado geral da província, ex-membro do parlamento e atualmente era o presidente de uma agência de desenvolvimento econômico. Ou seja, é uma pessoa muito influente. Ele foi preso no local do acidente, liberado logo em seguida, pediu demissão e aguarda julgamento. O governo, preocupado em ser acusado de não submeter ele a um julgamento imparcial nomeou como "promotor independente" um dos advogados que têm mais atuado contra o governo nos últimos anos. Eu nem sei por onde começar a comparar isso ao Brasil. Talvez um bom início seria falar da recente decisão do STF com relação ao escândalo envolvendo o Palocci.
Mas acho que o buraco é mais embaixo: uma das causas do problema é que a futura elite intelectual brasileira não tem qualquer interesse ou atração pelos políticos em si, e muito menos considera a possibilidade de seguir uma carreira política, como mostra a Folha hoje. É difícil pensar como vamos fortalecer o regime democrático e o estado de direito assim.

O terceiro episódio é relativo à preservação do meio ambiente. Enquanto no Brasil ainda se luta pela implementação da coleta seletiva de lixo, aqui não apenas há tal coleta, mas o governo decidiu que todos os estabelecimentos agora vão cobrar pelas sacolas de plástico. Ou seja, se você for no supermercado e não levar a sua própria sacola, você vai pagar cinco centavos por cada sacolinha.

(eu tenho a impressão de que já falei sobre isso, mas não consigo encontrar o post agora. Caso eu esteja me repetindo, é só pra mostrar que toda vez que vou no supermercado eu fico admirada em ver as pessoas com as sacolinhas que elas trouxeram de casa).

Por fim, veio uma experiência pessoal. Comprei móveis no domingo passado e na segunda de manhã a entrega estava sendo feita na minha casa, na hora marcada. Na verdade, eles ligaram uma hora antes para confirmar a entrega e, como esperado, chegou tudo conforme a encomenda. Serviço impecável. Isso contrasta com a odisséia que minha irmã teve recentemente com quatro cadeiras. Além da entrega ser agendada para semanas depois de feita a encomenda, no dia da entrega chega o produto errado. E lá se vai mais um mês, com muitas ligações para a loja e pedidos encarecidos para que alguém tome alguma providência, até as cadeiras serem entregues. Sinceramente, ninguém merece passar por isso.

Além da acusação de ser preconceituosa (seja porque tem muita coisa errada aqui também, seja porque tem muita coisa boa no Brasil), estou também aceitando a acusação de equacionar desenvolvimento com uma agenda política progressista. Afinal, quem disse que ser favorável a aborto é sinal de desenvolvimento? Mas ainda que alguns dos meus leitores discordem de mim nesse ponto, nos outros três pontos espero que haja consenso. O Brasil podia se beneficiar de uma sociedade civil mais ativa, de um sistema jurídico e político que funcionam, de um governo que fosse mais comprometido com a proteção do meio ambiente, e de uma cultura de maior respeito e proteção ao consumidor. Afinal, desenvolvimento não é só ter um alto PIB per capita, mas é também ter todas as outras coisas que tornam a vida um pouco mais decente e digna.




2 comentários:

Anônimo disse...

Mariana, não sei se estou certa, mas acho que o aborto tem limite para ser feito, levando-se em conta
o tempo de gestação. O mundo está repleto de contradições: luta contra a matança de focas, baleias, bois, vacas e galinhas e é a favor do aborto, quando há meios mais sensatos de evitar filhos!

J. disse...

Oi M.! Olá Anônimo.

Bem, eis como eu penso: uma contradição pressupõe conceitos iguais ou equivalentes - "vidas", no caso.

Quanto aos limites temporais ao aborto: por questões jurisprudenciais, no Canadá não há qualquer restrição temporal, como nos EUA, por exemplo.

O ponto é que em democracias avançadas o conceito de vida, ou melhor, quando ela se inicia não é imposto por uma ladainha religiosa repetida ad nauseam - é pensado coletivamente. E laboriosamente, talvez até dolorosamente, enfrentando a mortalidade, a fragilidade do potencial vital e outros monstros nos nossos armários existenciais.

Então, quando não há uma razão oponível a todos ou um valor compartilhado por uma maioria ampla o suficiente, o Estado interfere o menos possível (ou o mais eficientemente possível) nas escolhas individuais, baseadas em valores individuais - pode alguém impor a mim sua visão meramente religiosa de que a vida começa na concepção?

O Parlamento canadense não conseguiu passar nenhuma lei para restringir o aborto simplesmente porque os parlamentares ainda não foram capazes de concordar em nenhum ponto - o mesmo acontece em todo o mundo, só que com o sinal trocado: enquanto não chegamos a um acordo, mulheres e crianças morrem aos borbotões.

Bem, é uma discussão imensa e delicada, mas meu ponto é: independentemente de pessoalmente apoiarmos uma restrição ou não, creio que o post se referia a políticas públicas de desenvolvimento e graus de maturidade democrática. Aí, eu discordo da autora: o tratamento dado ao aborto é, sim, um indicador de desenvolvimento e democracia. Não porque se ignora o valor incomensurável da vida, mas porque recusamo-nos a fechar os olhos quando a realidade é feia e dura. Afinal, em um povo efetivamente comprometido com a pluralidade e a democracia, os cristãos constroem opções para as gestantes, como sistemas eficientes de aconselhamento, contracepção e adoção, em vez de impor proibições arbitrárias e políticas letais de saúde pública.

Por essas e outras, não encontro a mínima contradição em ser a favor do direito ao aborto e contra o massacre de focas - trata-se dos sentimentos humanos de reagir ao sofrimento e de desejar poder participar do processo deliberativo para determinar, de fato, democrática e coletivamente, o conceito público do início da vida.

Contradição nenhuma vejo eu. Afinal, mil desculpas, mas mórulas não são focas.