sábado, 30 de março de 2024

Simplificando a vida

 Depois de quase dez anos, volto a escrever aqui. O momento é oportuno: estou de sabático e em dois dias começo uma jornada de 300km no Caminho de Santiago de Compostela. Os preparativos para a longa caminhada foram muitos, mas todos seguem um só tema: simplificar. 

O processo começa com a mochila. Se o plano é carregá-la nas costas, a recomendação é que não ultrapasse 10% do seu peso. 7kg! As decisões são difíceis: duas calcinhas ou três? Cada item adicionado, exige que outro seja eliminado. O exercício de descobrir o que é essencial pra você durante 3 semanas é interessante. Pra mim, a decisão mais difícil foi não levar um livro, um bloquinho de anotaçőes e o laptop….

O treino começou em Santos, onde as noites quentes de verão na praia proporcionaram caminhadas muito agradáveis. Mas ainda assim, o exercício do que levar pra essas 3 ou 4 horas de caminhada já trazia seus dilemas. Uma jaqueta protege do vento frio e chuva, mas vira um pacote inconveniente se a chuva pára e a temperatura sobre.

Depois de dois meses ouvindo as ondas do mar e reidratando com água de coco, o treino continuou na Escócia, com céu nublado, muita lama e cerveja pra reidratar. As trilhas passam por uma série de abadias construídas no século XII. https://www.scotlandinfo.eu/border-abbeys/#:~:text=But%20most%20of%20all%20it's,abbeys%20and%20practice%20their%20religion. 

De novo, o tema da simplicidade volta à tona, mas de maneira mais filosófica. Nessas abadias, membros de uma ordem religiosa criavam uma comunidade auto-suficiente. Plantavam o que consumiam e passavam boa parte do dia em rituais religiosos. A ideia de abdicar dos luxos e conveniências da vida moderna, portanto, antecede a atual busca pelo minimalismo na sociedade de consumo. Muito antes do capitalismo, revolução industrial e shopping centers, uma parte da raça humana buscava um modo de vida que se resumia ao essencial pro corpo e para o espírito. https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Abadia

Assim como nas abadias da Escócia, o Caminho de Santiago pretende usar a simplificação da vida material pra facilitar o acesso ao lado espiritual. Paulo Coelho, por exemplo, narra coisas bastante inacreditáveis no livro o Peregrino, e.g. o mundo inteiro ficando azul (?!?). Mas mesmo para aqueles menos inclinados a acreditar em energias místicas ou qualquer forma institucionalizada de religião relatam experiências espirituais únicas durante a caminhada. 

Um peregrino experiente, homem de negócios, relatou em um podcast que tinha algo especial no Caminho, que ele não tinha encontrado em nenhuma outra trilha, das muitas que ele tinha feito. Algo místico, que ele não sabe explicar. https://open.spotify.com/episode/4V2y3QHGuBDkpQW3iPwbeF?si=y2CB3aahQQWDolIM9jxtLA

Um outro, um amigo, ex comandante do exército, foi super preparado pro Caminho, com equipamento, treino, pesquisa e audiolivros pra não se entediar. Mas no meio da caminhada ele disse que começou a processar a morte do pai, um tema que ele tinha evitado durante anos. E diz ele que não foi voluntário. Os pensamentos começaram a vir, de maneira incontrolável e foi inevitável ter que lidar emocionalmente com eles. Segundo esse amigo, tem algo sobre o movimento de colocar um pé na frente do outro que mexe com sua cabeça. E depois de 200km, leva sua mente pra lugares que você nunca imaginou (ou sempre tentou evitar!).

Meus amigos intelectuais acham que eu vou sair dessa experiência com ideias pra livros e artigos acadêmicos. Minha mãe, que visitou Santiago de Compostela há alguns anos, disse que há muitos cartazes de gente que desapareceu pelo caminho. Como mãe, ela obviamente acha que há um psicopata escondido nas matas ao longo do trajeto, decepando e enterrando os corpos. Minha prima já tem uma hipótese mais plausível sobre os desaparecimentos: pessoas que decidiram se isolar do mundo durante a caminhada, e desaparecerem de propósito, como os monges do século XII. Se eu optar por isso, já escolhi até o destino: as Ilhas Mariana no meio do oceano pacífico! 

Enquanto a epifania não vem, vou deixar a vida monástica de lado e aproveitar a deliciosa comida e bebida da região!



sábado, 28 de novembro de 2015

A cidade lar


Em inglês, cidade natal é descrita como hometown. E há uma certa sabedoria implicita no termo. Não é a cidade onde você nasceu, mas sim a cidade onde você se sente em casa. Enquanto seu nascimento é um evento remoto e potencialmente pouco relevante pra você nesse momento, provavelmente a idéia de lar não é. Ao contrário, por mais que nos encontremos distantes do nosso local de nascimento, estamos sempre em busca de um lugar que "feels like home".

Apenas notei a sabedoria do termo em inglês quando me deparei com o fato de que eu sempre comparo as cidades onde estou morando com Brasília. E o exercício, em geral, é tentar achar as similaridades, em especial aquelas que me fazem me sentir em casa.

No verão que morei em Washington, não parava de admirar a organização lógica das ruas, avenidas e quadras. Afinal, quem cresceu com planejamento urbano matemático, nunca vai se acostumar com planejamento urbano orgânico, como em Toronto; ou falta de qualquer planejamento urbano, como em São Paulo. 

Outras coisas que sempre procuro são os espaços verdes e abertos. New Haven, uma cidade pequena nos Estados Unidos onde fiz meu doutorado, e os subúrbios de Toronto são cheios deles. E, assim como Brasília, eles vêem com um preço: é quase impossível viver lá sem um carro. Ou seja, ganhem-se as árvores e perdem-se os pedestres. Eu preferiria ter ambos, como nas superquadras de Brasília. Mas é difícil encontrar superquadras fora de Brasília...

Os prédios modernistas é um outro item que chama imediatamente minha atenção. Em qualquer selva de pedra com os mais variados estilos arquitetônicos, minha tendência é ignorar todo o resto no momento em que o prédio modernista se materializa na minha frente. Ao menos essa é a lembrança que mais me marca durante meus períodos vivendo em Boston, Londres e Toronto. 

E até recentemente eu não tinha achado um lugar com um céu tão azul quanto o de Brasília. Achei no mês passado: Sedona, no deserto do Arizona. E com o céu vêm também o tempo seco, a vegetação rasteira e esparsa e muitos calangos. 

Mas a melhor surpresa foi encontrar um prédio modernista, Chapel of Holy Cross, desenhado por uma discípula do Frank Lloyd Wright, no meio das lindas formações rochosas do Arizona.  Enquanto o modernismo parece não agradar a maioria das pessoas, eu ainda não conheci alguém que cresceu em Brasília e não gosta do estilo. Acho que quando você é constantemente -- e quase exclusivamente -- exposto a esse tipo de arquitetura nos seus anos de formação, é quase como se a estética ficasse impregnada no seu cérebro. Resultado: enquanto para o resto do mundo modernismo é exceção, para mim é norma. Se Sedona tivesse umas superquadras e uma universidade, me mudava pra lá no dia seguinte.

Na maior parte das vezes o português é muito mais poético que o inglês, mas hometown é uma exceção a essa regra. A palavra capta com muito mais sensibilidade essa conexão emocional inexplicável com a cidade onde nascemos e crescemos. Por mais estranha que ela seja -- e Brasília, convenhamos, é pra lá de estranha! -- nossa hometown acaba definindo, em grande parte, o que consideraremos, para o resto da vida, lar.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Meu pai é um lorde


Há exatamente um ano, visitei minha cidade natal e me reuni com vários amigos de infância. Muitos abraços e beijos depois, abriram-se as cervejas e começou a conversa. As histórias, como podem imaginar, eram muitas. Disputamos quem era a criança mais comportada e quem era a menos comportada. Debatemos também quem era a mais dissimulada - fingia-se de comportada entre os adultos, mas era o capeta quando ninguém estava vendo. As memórias eram boas, e concluímos todos que tivemos, de fato uma infância feliz. 

De repente, alguém na roda pergunta quem lembrava do meu pai. Foi uma avalanche de histórias. Tio C. levava a gente por parque, lembram?  Ele também levava a gente pra passear de bicicleta. Todos concordaram que era o máximo se aventurar de bicicleta acima dos limites geográficos normalmente permitido para crianças... E quando ele colocava todas as crianças no fusca e transformava as ruas da cidade na nossa montanha russa privada? Todo mundo gargalhou com a lembrança. 

A conclusão foi unânime: 
- O Tio C. era o melhor!
- Em especial quando comparado com os nossos pais, alguém menos tímido anunciou. 

E daí foi uma outra avalanche de histórias bem menos elogiosas. 

- É, nossos pais só queriam ver jogo de futebol da TV e beber cerveja. Em contraste, Tio C. descia no meio da tarde de sábado com melancia cortada pra gente comer. 
- O pior é a fixação dos nossos pais com os carros. Trocavam de carro todo ano. E davam mais atenção pro carro do que pra gente. O tio C. não! Teve o fusquinha por anos. E ainda levava a gente pra passear nele. Nunca vi tanta criança dentro de um carro... 

Daí veio a sentença final: tio C. era um lorde, perto dos ogros que chamamos de pais.

E o que a criançada não sabia era que, além de ser um lorde fora de casa, meu pai era um um lorde dentro de casa também. Um lorde vegetariano, praticante de yoga e amante da natureza. Portanto, não era só nas brincadeiras que ele era diferente dos outros pais. Ele nos ensinava a importância de comer bem, fazer alongamentos de manhã, relaxar os músculos com meditação antes de dormir, reciclar o lixo e economizar água. Ou seja, coisas que acabaram influenciando minha vida para sempre, e para melhor. 

Quando vejo meus amigos sendo pais hoje, tenho a impressão de que há bem menos ogros nesse mundo. Não sei se é porque eles tiveram a sorte de ver um tio C. em ação quando eram crianças, ou se meu pai estava muito a frente do seu tempo. Em qualquer um dos casos, quantos mais pais como meu pai, melhor! 















segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A irmã e o sistema

O aniversário da minha irmã caiu num dia em que eu queria distância do facebook. Ainda não consegui definir bem esses dias, mas eles são basicamente caracterizados por um completo ceticismo com relação a todo aquele exercício de interação social via internet.

Fato é que eu tentei colocar algo lá. Entrei várias vezes no site (o que tem sido cada vez mais raro pra mim hoje em dia). Rascunhei uns três posts, mas desisti de todos. A minha fórmula "feliz aniversário. tudo de bom!" funciona muito bem para o resto do mundo, mas minha irmã merece algo melhor. O problema é que não baixava a inspiração. E aquele feed na lateral da tela com updates incessantes não estava ajudando meu processo criativo.  

Resolvi então buscar umas fotos para ver se alguma lembrança do passado viria com uma frase que fizesse juz ao momento. Não achei nada. No ápice do desespero, resolvi ligar. Sabe aquela coisa privada que a gente fazia antigamente e a pessoa ficava super feliz? Pois é. Liguei. Minha irmã atende e fica surpresa com a ligação. Tomei como um sinal positivo. 

Parabéns pra cá, felicidades pra lá, e logo estamos colocando a conversa em dia. As duas trabalhando muito. Será que vale a pena? Com certeza não vale. Qual a opção? Mudar pra Cuba, talvez. Sim, porque Coréia do Norte não tem capitalismo, mas tem um louco governando. Entre louco no governo ou toda a loucura do livre mercado, preferimos ficar com a segunda opção. Sem dúvida. Mas temos Cuba, que não seria de todo mal. O problema é que não sabemos o quanto vai durar. Passamos mais uns minutos sonhando com nossa vida fora do sistema e desligamos.

Minha irmã voltou à opressão do sistema capitalista e eu voltei à opressão do facebook. Enquanto minha irmã é esmagada pelo motor produtivo, eu -- que não tenho que produzir nada, e recebo um salário pra pensar grandes ideias -- fiquei lá sozinha no meu escritório confabulando com meus botões: ligação sem o post no facebook não pega bem, né? Com certeza não pega. Estou até agora imaginando as pessoas horrorizadas com meu silêncio. "Você viu, Zezinho? Mariana não desejou feliz aniversário pra própria irmã..." Discussões em bares e dentro dos lares, durante o jantar. Uma vergonha! Afinal, parabéns que se preza precisa ser aquele que todo mundo vê. Senão, não conta. 

Mas eu sei que a minha irmã entendeu meu silêncio. Ela sabia que eu estava resistindo ao sistema. Precisavamos nós duas de um pouco de esperança. E esse foi meu modo de dar a ela um dia melhor: dando o pontapé inicial pra acabar com a opressão. A revolução começa com o facebook e termina com o fim do sistema capitalista! E conseguimos nesse histórico 24 de outubro essa grande vitória: passou-se o aniversário sem post. Agora, é só aguardar, que uma vida muito melhor está por vir.
 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Surpresa do Dia


https://m.youtube.com/watch?v=zag_Masf6FA

Descobri que essa música do CD da Carla Bruni é na verdade um poema:

Promises Like Pie-Crust

by Christina Georgina Rossetti
(1830-1894)



Promise me no promises, 
So will I not promise you: 
Keep we both our liberties, 
Never false and never true: 
Let us hold the die uncast, 
Free to come as free to go: 
For I cannot know your past, 
And of mine what can you know? 

You, so warm, may once have been 
Warmer towards another one: 
I, so cold, may once have seen 
Sunlight, once have felt the sun: 
Who shall show us if it was 
Thus indeed in time of old? 
Fades the image from the glass, 
And the fortune is not told. 

If you promised, you might grieve 
For lost liberty again: 
If I promised, I believe 
I should fret to break the chain. 
Let us be the friends we were, 
Nothing more but nothing less: 
Many thrive on frugal fare 
Who would perish of excess.


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Dia de jacaré

Nada melhor para descrever meu dia, do que essa fábula do querido Pratinha:

"Vivia a floresta na mais densa calmaria até aparecer a coruja, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas: "Como vocês podem se achar felizes se são paus mandados do leão? Como podem se achar livres se só fazem o que permite o leão? Como podem dormir tranquilos se correm o risco de, a qualquer momento, serem devorados pelo leão? Abaixo a ditadura leonina!". "Bravo!", gritou o coelho. "Apoiada!", bradou a gazela. "Ente, ente, ente, coruja presidente!", puxou o tatu.

Daí em diante, os animais passaram a viver revoltados, só pensando no absurdo que era estar continuamente sob o jugo daquela juba. A coruja, então, organizou uma assembleia. Depois de um caloroso debate, chegou-se à conclusão de que havia um único bicho, em toda a floresta, capaz de destronar o autoungido rei dos animais: o jacaré.


Boiando no rasinho, só com aqueles olhos melífluos pra fora d'água, o jacaré ouviu a explicação da coruja e as súplicas de seus companheiros silvícolas. "Vocês querem que eu ajude?" "Sim!", responderam todos. "Querem a paz na floresta?" "Siiim!" "Querem parar de sofrer com a supremacia leonina?" "Siiiiiim" -e, mal o coro suplicante terminou de ecoar por entre as copas das árvores, o jacaré arremeteu contra a coruja e, num bote certeiro, a engoliu inteirinha, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas." 


Estou agora ao sol, de barriga cheira.

Essa e outras fábulas estão disponíveis aqui: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/09/1515827-fabulas-monterrosianas-ii.shtml

sábado, 20 de setembro de 2014

Música do Dia


Em busca da perenidade

Perenidade? Não sabia qual era o substantivo de perene quando pensei no título para esse post. Talvez fosse perenez ( como em lucidez)? Quiça poderia ser perenice (Como velhice)? Não sei.

Sim, estou perdendo o português. E junto com a perda vem a preguiça de checar no dicionário. Fica aqui, portanto, a ressalva: sei o que busco, ainda que não saiba como descrevê-la (perenidade, perenez ou perenice?). Um problem de PPP: perda do português e preguiça...

Em contraste com as incertezas gramaticais, o tempo está começando a esfriar. Não há incerteza alguma sobre o fato de que o inverno logo estará aqui. Decidi então registrar a existência das plantas não perenes que vão desaparecer do quintal nas próximas semanas. 

Já falei antes da minha angústia com a situação. Talvez haja alguma ironia no fato de que perder as plantas me incomode mais do que perder meu português. Mas, como expliquei antes, não se trata de uma escolha no caso das plantas. Eis o problema.

Fica aqui, portanto, minha vã tentativa de eternizá-las:












quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Colocando a Santaella na faixa vermelha

Era fã da Santaella e da semiótica quando estudava na Escola de Comunicações e Artes. Mas o tempo passa e a gente amadurece. Hoje, sou fã da Marjorie, cujo texto recomendo (ver link no fim do post). 

Depois de passar quatro dias me locomovendo com uma bicicleta em Amsterdam em julho, além de não ter carro e usar a bicicleta quase todos os dias (weather permitting) pra ir trabalhar aqui em Toronto, concordo que precisamos de uma revolução em São Paulo.

 Guilhotina para acadêmicos desinformados. E que venham mais faixas vermelhas e toda a alegria que vem junto com elas!

http://m.huffpost.com/br/entry/5816142