domingo, 12 de fevereiro de 2012

Lindando com o vácuo

Sei muito pouco sobre física, mas até onde entendo, durante muito tempo, os físicos tentavam explicar a propagação da luz no espaço através de uma matéria chamada éter. Eles não conseguiam encaixar em nenhuma teoria o fato de que a luz se propagava por um espaço vazio, e argumentavam que "uma substância material preenchia o espaço, inclusive o espaço entre os planetas, entre as estrelas, em todo lugar onde parece que não há matéria haveria éter". Pois bem, graças ao Einstein, ou talvez apesar dele, hoje estamos todos reconciliados com a idéia de que a luz viaja no vácuo e tem um espaço vazio lá fora, no universo, que não está preenchido com nada. 

Parece irônico, todavia, que a gente se sinta confortável em pensar que nosso planeta está aqui flutuando no meio de um grande nada, mas a gente ainda resiste deixar espaços vazios em nossas rotinas. Essa foi a conclusão que tirei depois de ler esse post de uma blogueira que decidiu simplificar a vida e relata toda a experiência. Não só achei o post genial, mas me identifiquei muito com ela. Quando os brasileiros, acostumados com empregadas para cozinhar, lavar e passar, se mudam para o exterior, passam pelo mesmo processo que a blogueira teve que passar ao ter um bebê. Ou você torna sua vida mais simples, ou você enlouquece. 

Primeiro, você nota que as roupas que precisam ser passadas estão no armário há um tempão, pois não dá tempo de passar. Essas são as primeiras a ir embora. Depois você nota que o prédio onde você mora tem uma estante para troca de livros na lavanderia, pois ninguém tem espaço pra ficar acumulando livros indefinidamente. Os livros lidos vão rapidamente parar lá. Daí você começa a fazer o cálculo do quanto custa um carro (seguro, garagem, gasolina) e descobre que você consegue gastar muito menos se usar transporte público, uns táxis de vez em quando, e umas caminhadas para ir aonde quiser. E, de repente, você descobre que você não precisa limpar a casa todo dia, se tirar o sapato na entrada, assim que chegar. A sujeira da rua acaba não entrando, e você pode lidar com o pó uma vez por semana. E assim a vida vai ficando mais simples, quase sem você perceber. 


Tenho muita admiração por esse casal de brasileiros que passou por um processo similar, mas o fez de livre e espontânea vontade. Minha admiração vêm do fato de que eles fizeram todas as mudanças porque pararam para pensar. Pra mim simplificar era uma questão de sobrevivência, mas eles acordaram um dia e se perguntaram: quanto da nossa vida são coisas que a gente gosta e valoriza, e quantas delas são coisas que a gente acabou adquirindo por convenções sociais? E descobriram que podiam se livrar de muito do que eles tinham, e usar aquele dinheiro com coisas que gostavam, como morar um tempo no exterior, viajar mais e comer em restaurantes com maior frequência.

E não só os brasileiros sofrem desse medo do vácuo. Os canadenses tem uma absoluta fixação com casas. Sempre ficam horrorizados com o fato de que eu quero comprar um apartamento. O argumento deles é que vou ter menos espaço, pagando o mesmo preço. Não vou morar em uma casa com três andares, quintal e talvez uma piscina. Não, não vou. E não gostaria de morar em um lugar assim. Mais espaço significa mais horas limpando a casa. Um quintal significa finais de semana cuidando das plantas, ou um jardim decréptico graças à minha completa negligência. Os canadenses argumentam que posso pagar alguém pra fazer o serviço por mim. Sinceramente, prefiro gastar aquele tempo ou dinheiro indo a um restaurante. Uma piscina precisa ser mantida também. Eu prefiro acordar de manhã, no meio da cidade, passar uma hora limpando meu apartamento minúsculo e ter o resto do dia livre. Prefiro ter um Starbucks na esquina, um cinema a duas quadras e uma livraria aqui do lado. O contraste com a casa  espaçosa é claro: na casa, eu seria obrigada a pegar o carro porque eu acordei de manhã e descobri que acabou o leite. Isso sem falar que o carro é outra coisa que -- assim como a piscina -- precisa ser mantida. Ou seja, eu prefiro pagar para não ter que me preocupar com tudo isso. E os canadenses não entendem isso.  

No final do ano passado, vi o quanto a gente, sem perceber, está mais preparado para lidar com o vácuo do que imaginamos. Um belo dia, no meio do ano passado, meu ouvido deu um "ploc" e fiquei completamente surda de um lado. Fui na minha médica de família, que me mandou para um especialista, que me mandou fazer um exame. Demoraram algumas semanas para marcar o exame e, quando fizeram o teste, minha audição estava parcialmente restaurada. Ainda havia uma diferença entre um ouvido e outro, mas eu estava ouvindo. O resultado do exame disse exatamente isso: que eu havia perdido 1/3 da audição em um dos ouvidos. O médico disse que precisava investigar as causas e ia marcar um exame pra ver se era algo mecânico (dentro do ouvido) ou algo mais grave (dentro do meu cérebro). 

Você pode pensar que perder a audição de um lado não significa muita coisa. Você ainda ouve do outro lado. Mas não funciona assim. O fato de que eu lado está ouvindo e outro não cria uma série de ecos e "efeitos especiais", de tal maneira que você tem a maior dificuldade em distinguir de onde os sons estão vindo e a qual deles dar prioridade. É difícil dar aula assim. Conversar com alguém em uma festa, ou em qualquer ambiente aberto, vira um pesadelo. Portanto, ficar com a audição perfeita de um lado, mas não do outro, é um pouco complicado. Foi por isso que eu fiquei aliviada com o fato de que, aos poucos, as coisas pareciam estar voltando ao normal. De maneira quase imperceptível, minha audição parecia estar voltando e toda aquela confusão com os sons vindo de todos os lados estava desaparecendo aos poucos. Portanto, quando o dia do exame chegou, achei que o problema havia desaparecido. Fiz o exame, só pra certificar que nao estava com um tumor fatal no cérebro. Afinal, se fosse esse o caso, precisava curtir os meus últimos meses de vida em uma praia no Caribe e quanto antes eu programasse a viagem melhor!

Porém, ao pegar o resultado do exame, tive uma surpresa.  Meu médico disse que não havia nada para se preocupar: tudo estava funcionando dentro do meu cérebro. E eu respondi que não havia nada para se preocupar mesmo, pois eu estava ouvindo perfeitamente bem. Mas ele me disse que não. Eu ainda estava com uma perda de 1/3 da minha audição. Era só o meu cérebro que tinha se ajustado à mudança e por isso eu não notava mais a diferença. Achei aquilo absolutamente fascinante. É como se meu cérebro tivesse feito como os físicos, e tivesse aceitado o fato de que havia agora um vácuo, onde antes havia som. E tudo bem. 

Mas antes que você termine esse post pensando que você pode se livrar de quase tudo na vida, cuidado! Essa semana, por exemplo, perdi uma mão da minha luva. Tentei ver se meu cérebro conseguia programar uma mão pra sentir menos frio que a outra. Dois dias depois, quando a temperatura chegou a menos 12 celsius, eu declarei que o experimento tinha chegado ao fim. Afinal, eu não precisava do vácuo da luva naquele momento. Portanto, lembre-se: o céu é o limite. O vácuo pode existir depois do céu, mas se a gente tivesse vácuo na atmosfera terrestre, ao invés de deixar ele confinado ao espaço sideral, não estaríamos aqui. Ponha, portanto, mais vácuo na sua vida, mas se certifique que ele vai ficar no seu devido lugar.

2 comentários:

Anônimo disse...

adorei o post!
beijos da sua irmã

Marcelo disse...

Puxa, não soube do seu ouvido. Poderia tê-la consolado, desconsolando, contando do vácuo da nossa ignorância. Estou na profissão há 14 anos e raramente passa uma semana sem que eu me envergonhe profundamente do franzino conhecimento médico (das minhas próprias limitações, lembro todos os dias). Bendita a natureza, naturalmente bondosa com os jovens. Seu texto foi me puxando coisas da semana, a greve da PM baiana, aula prática de vácuo de poder, e também o estiolamento do PSDB em SP, e as reações histéricas à movimentação política arguta do Lula e do Kassab – aqui também há horror ao vácuo. Ah, que belo trabalho jornalístico sobre a guerra do contestado, no estadão. Há um probleminha no link do lacucinetta, um “ %20” após o “.html”. Simplificar, também estamos nessa. Dinheiro curtinho, vinho baratinho, sem TV a cabo, menos bacalhau, e igualmente contentes. Mas não aguento apartamento apertado, e nem cerveja popular, credo. E morro de medo de piscina em casa, pela fragilidade da vida. Beijo.