Há uns dois anos, recebemos a visita de um ilustre professor australiano que veio dar um curso aqui em Toronto. Eu fui encarregada de ciceronear o sujeito e estava a caminho do escritório dele, para ver se ele precisava de alguma coisa, quando encontrei ele saindo da faculdade. Era quarta-feira, 3 da tarde.
- Está tudo bem? Perguntei.
- Sim. Tá tudo ótimo. Só estou muito improdutivo agora. Então vou dar uma volta. Acho que vou no cinema.
- No cinema????
Acho que o tom da minha pergunta revelou meu espanto. Nunca tinha visto nenhum dos meus colegas sair da faculdade no meio da tarde para ir ao cinema. Tá certo que nosso emprego não tem chefe, nem ponto, nem horário. Desde que você faça suas pesquisas, publique seus artigos e dê as aulas, ninguém quer saber se você está no seu escritório, no cinema ou onde quer que seja. Mas o fato é que a maioria dos meus colegas está no escritório das 9 as 5pm de segunda a sexta, assim como eu. E vários de nós ficamos até tarde, quando temos que terminar algo.
Sair no meio da tarde para ir ao cinema, portanto, parecia um ato de rebeldia. E a justificativa tornava a coisa ainda mais enigmática pra mim. Apesar de ter abandonado a religião católica, a culpa ainda está arraigada dentro de mim como uma praga. Todas as tentativas de arrancá-la foram em vão. Portanto, a idéia de me divertir na quarta a tarde, ao invés de me trancar no meu escritório como penitência pela minha improdutividade, contraria muitos valores enterrados lá no fundo do meu ser. Acho que minha cara revelou minha desaprovação e meu espanto.
Dada minha reação, o visitante se sentiu compelido a se explicar:
- Se eu ficar aqui, vou demorar três ou quatro horas pra fazer algo que eu demoraria uma hora pra fazer. Então vou relaxar e amanhã eu faço isso em 1/3 do tempo que precisaria hoje.
Há momentos na vida em que é melhor não discutir. Como diz meu outro primo, "tá feliz? deixa". Deixei o cara ir ser feliz no cinema e fui lidar com minha culpa cristã no meu escritório. Mas a coisa não saia da minha cabeça. A idéia de que alguém pudesse viver assim, tão livre de amarras virou um enigma a ser desvendado.
Uma semana depois, durante um almoço, achei que tinha achado a solução para o enigma: o cara era surfista. Surfava regularmente, viajava para vários lugares do mundo pra surfar, etc. "É isso!", pensei. O cara não é o tradicional professor de direito. Ele, na verdade, é um surfista que ganha a vida como professor de direito. Por isso que ele tem esse desprendimento e consegue sair do escrtório no meio da tarde, com a desculpa de que ele não está sendo tão produtivo quanto poderia. "Típico pensamento de surfista! Aposto que fuma umas também...", pensei. Depois desse almoço, considerei o mistério resolvido e não pensei mais no assunto.
Isso aconteceu há uns dois anos. Na semana passada, todavia, descobri que eu estava totalmente errada. Estou lendo um livro chamado "Thinking Fast, Thinking Slow" de um pesquisador que ganhou o prêmio Nobel de economia, por descobrir como nosso cérebro funciona. No livro, ele discute o exemplo dos taxistas na cidade de Nova Iorque. Diz ele que os taxistas tem uma meta de renda diária. Portanto, quando está chovendo muito eles conseguem pegar passageiros com facilidade e vão pra casa mais cedo. Em contrapartida, quando o tempo está bom, eles precisam trabalhar longas horas para conseguir atingir a meta diária de renda. O livro mostra como nosso cérebro nos convence a fazer isso, e mostra como essa é uma alocação totalmente ineficiente de recursos.
O cálculo seria mais ou menos o seguinte: um taxista quer ganhar $100 por dia. Em geral, ele consegue $100 trabalhando 8 horas. Nos dias de chuva, todavia, ele consegue $100 trabalhando 4 horas. Nos dias de sol, em contraste, ele consegue $100 trabalhando 12 horas. Segundo a pesquisa, os taxistas fazem o seguinte:
Dia 1 (sol): $100 por 12 horas de trabalho
Dia 2 (chuva): $100 por 4 horas de trabalho
Total em dois dias: $200 por 16 horas de trabalho
Em contraste, se o visitante surfista estivesse dirigindo o táxi, ele iria fazer o seguinte:
Dia 1 (sol): $0 por zero horas de trabalho
Dia 2 (chuva): $200 por 8 horas de trabalho
Total em dois dias: $200 por 8 horas de trabalho (e um cineminha no dia improdutivo...)
Ou seja, a decisão do surfista era totalmente racional e economicamente eficiente. Não tinha nada a ver com irresponsabilidade, desprendimento, ou qualquer outro poder metafísico que é apenas dado as pessoas que aprendem a surfar. É um simples cálculo para alocação racional e eficiente de recursos.
Decidi, portanto, adotar a filosofia surfista na minha vida. Agora estou esperando chegar na parte do livro em que o prêmio Nobel explica como a gente se livra da culpa cristã, que é a única coisa que no momento me mantém presa ao escritório as 3 da tarde de uma quarta-feira...
3 comentários:
Fiquei bastante interessado no livro, e parece que é um memorial também. Sobre as nossas dissonâncias cognitivas, veja como os médicos tratam e como desejam ser tratados na hora H: http://zocalopublicsquare.org/thepublicsquare/2011/11/30/how-doctors-die/read/nexus/.
Ah, na minha época era fumar uns, não umas!
sessão de terapia em família:
além da culpa cristã, também sofro de falta de auto-confiança... quem me garante que no dia seguinte eu também não vou estar improdutiva?
mas se vc descobrir como se livrar da culpa, me conta que eu fico com um problema só!
beijos
Oi Mariana, gostei dessa filosofia de surfista. Alias, já fui um deles e posso comprovar, é muito bom! Mas tentei explicar essa idéia para o meu chefe na última sexta-feira para justificar a minha debandada na hora do almoço e ele não entendeu. Aliás, pelo que eu entendi ele detesta surfista. rsrsrs...
Seu tio.
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