sábado, 7 de abril de 2012

O segredo do sucesso acadêmico

Peço licença aos meus leitores para trazê-los por um momento para esse mundo estranho e frequentemente incompreensível da academia. Esse é o mundinho que eu habito e, por causa disso, queria deixar aqui uma janela para vocês poderem espiar esse universo estranho, habitado por gênios, loucos e gênios loucos. 

Na maior parte do tempo, o mundo acadêmico e o mundo real não se encontram. Passo boa parte do ano trancada no meu escritório escrevendo minhas idéias. Na outra parte do ano, viajo pelo mundo apresentando as idéias em conferências, que são frequentadas por pessoas que também ficam trancadas nos seus escritórios e pouco sabem da realidade lá fora. E daí o paper é publicado em journals (revistas acadêmicas), que basicamente tem um critério de seleção definido por acadêmicos e regras rígidas que também são únicas da academia. 


Para dar uma idéia da falta de contato com a realidade que temos, note-se que eu marquei office hours (horário em que alunos podem vir ao meu escritório solucionar dúvidas e fazer perguntas) na sexta-feira santa. Esqueci que era feriado. Apenas descobri que tinha algo errado quando cheguei na faculdade e encontrei o prédio trancado e as luzes apagadas. E não foi a primeira -- nem será a última -- vez que faço isso. Os alunos acham estranho, mas decidem não reclamar (o que é sempre uma boa política com alguém que vai te avaliar no fim do semestre...).

Mas a falta de conexão com o mundo não afeta apenas meus pobres alunos que tem que vir pra faculdade em pleno feriado. Às vezes ela acaba afetando as idéias que formulamos também. Não me esqueço do dia em que um professor de Yale deu uma palestra para os estudantes de pós-graduação e nos revelou o grande segredo do sucesso acadêmico. Ele disse: escreva um paper com uma idéia que seja 1) engenhosa, 2) controversa e 3) completamente errada. Esses são os três pontos que garantem que as pessoas vão prestar atenção no seu paper. 

A engenhosidade prova que você consegue pensar coisas que a maioria das pessoas teria dificuldade em imaginar. A controvérsia garante que muitas pessoas vão prestar atenção no que você está dizendo, caso contrário sua idéia pode ser engenhosa mas vai basicamente atrair a atenção de meia dúzia de gatos pingados que se importam com aquele tópico. Por fim, sua idéia precisa estar errada para as pessoas se animarem a escrever contra você. E esse último elemento é --- sem dúvida -- o mais importante. Pois na academia a importância do seu trabalho é avaliada por quantas vezes você é citado. E se muita gente estiver escrevendo contra seu paper, ele vai ser citado muitas vezes. 


Não é difícil ver que esses incentivos geram papers questionáveis. Um bom exemplo é um paper que meu primo M. citou em um comentário no mês passado. O paper argumenta que recém-nacidos não são pessoas e, portanto, podem ser tratados como fetos que não nasceram ainda. Assim, concluem os ilustres autores, se por alguma razão você não fez o aborto (apesar de estar legalmente autorizada a fazê-lo) você pode matar seu recém nascido. O que leva acadêmicos a publicar esse tipo de coisa é a busca pelo sucesso rápido e fácil. São os Michel Telós da academia. Eles provavelmente não acreditam em uma palavra do que estão falando, mas querem subir na vida. Daí optam por um paper controverso e absolutamente errado. Minha previsão, todavia, é que esse paper não vai fazer sucesso porque falta engenhosidade. Eles conseguiram atenção da mídia, mas minha hipótese é que vão ser ignorados pela comunidade acadêmica. Afinal, se você se der ao trabalho de responder a uma idéia estúpida, a conclusão é que você também não é lá muito inteligente.

Se alguém quiser um exemplo de um paper que poderia ser citado como um modelo desse tipo de método para o sucesso acadêmico imediato, veja esse texto que propõe um mercado para compra e venda de bebês. O texto argumenta que o sistema de adoção gera uma alocação ineficiente de recurso e, de alguma forma, pais ricos saem com vantagens que não são devidamente reguladas. Portanto, o texto propõe oficializar a existência de um mercado e propõe um modelo regulatório. O texto se tornou um verdadeiro clássico, por conter os três elementos que mencionei antes. 


Daí meu leitor se pergunta: e você, não vai fazer o mesmo? Pois é, depois de um mês terminando três paper (razão pela qual o blog ficou às moscas), descobri que meu primeiro paper não é engenhoso, o segundo não é controverso, e o terceiro não tem qualquer um dos três elementos. Ou seja, ainda sou aquele músico estupidamente talentoso (e pouco modesto!), que informalmente conhece todos os músicos famosos, mas ainda não chegou ao estrelato. E a não ser que eu queira ser um Michel Teló da academia, ainda vai demorar uns anos pra eu chegar lá...

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A louça e o choque de ordem

Antes de sair de férias e viajar para a Jamaica, minha faxineira me chamou na cozinha, apontou pra pia e falou: - lave a louça assim que usar. Se você fizer isso, sua pia sempre vai estar assim! Ela terminou a frase apontando com orgulho para sua obra-prima: a pia brilhante na minha cozinha. Eu já tinha deixado registrado aqui toda a sabedoria da minha faxineira em questões de segurança pessoal em um post em 2009. Mas mal sabia eu que ali estava ela, mas uma vez, compartilhando comigo seu vasto conhecimento de novo.

Primeira semana: lavei toda a louça, assim que usei. Chegava em casa, cozinhava o jantar e lavava a louça em seguida. Segunda semana: os prazos começaram a apertar. Eu era obrigada a deixar a louça para lá e voltar para o trabalho. Na manhã seguinte, todavia, eu tomava meu café da manhã e lavava tudo antes de sair. Na terceira semana, a memória da minha faxineira me dando instruções já estava meio vaga na minha memória. Eu estava definitivamente me sentindo menos pressionada pela figura daquela senhora baixinha e bem humorada que basicamente governa minha vida e dá todas as ordens na casa. Daí chegou o belo dia em que não deu pra lavar a louça depois do jantar e também não deu pra lavar de manhã. E a vaca foi para o brejo. A louça começou a acumular na pia. Eu levantava de manhã e tinha que procurar espaço pra fazer café. Um belo dia, não tinha mais talheres limpos. Eu tentava me convencer que o problema era a falta de tempo. Três papers para terminar até o fim do mês, sem tempo para  dormir, escrever no blog, lavar a louça ou manter a casa minimamente organizada. Essa era minha desculpa. 

Mas logo descobri que isso não passava de balela. E -- pasmem -- descobri isso um dia, tarde da noite, trabalhando no meu paper sobre abuso policial e segurança pública. Conhecida na literatura acadêmica sobre criminalidade como “teoria da janela quebrada” (broken window theory), a idéia básica é que uma pequena janela quebrada em uma casa é interpretada como sinal de que a casa está abandonada e faz com que as pessoas passem a se sentir a vontade para vandalizar a casa. Ou seja, uma pequena janela quebrada gera invasões, pichações e vandalismos de toda ordem. Nesse sentido, quanto mais pequenos desvios de comportamento são permitidos, mais aumenta o risco de que outros crimes ocorram naquele local. Por isso o Paes está proibindo absolutamente tudo na zona sul do Rio. A política faz parte da campanha Choque de Ordem que impôs restrições dacronianas ao comportamento do carioca na zona sul do Rio. Não se pode mais fazer xixi na rua, levar cachorros pra praia, jogar futebol na areia fora do horário determinado, ou fazer comércio ilegal.

Pois é. Ao mandar eu lavar a louça depois de usar, minha faxineira estava usando do mesmo mecanismo: choque de ordem. E funciona da mesma forma que o crime: se não tem nada lá, você não deixa louça suja na pia. Daí se você faz uma refeição e não lava aquela louça, é como a janela quebrada. Já não lavei aquela louça, então não preciso lavar essa também. E daí a coisa vai escalonando até o momento em que você não encontra uma colher limpa pra comer seu iogurte de manhã. A pior (pra mim) ou a melhor (pra minha faxineira) parte da história é que há um forte precedente a favor do choque de ordem.  O prefeito Rudy Giulliani ficou famoso por ter reduzido drasticamente os índices de criminalidade em Nova Iorque no início da década de 90 graças à sua política de tolerância zero . A cidade, segundo aqueles que tiveram a oportunidade de visitá-la antes e depois, mudou da água para o vinho. 

A questão é: se tudo que se fala sobre a política de segurança de Nova Iorque é verdade, como explicar esse vídeo, no qual um cineasta roubou a própria bicicleta três vezes antes de ser interpelado pela polícia? Note-se que a polícia interpelou ele somente quando ele estava em uma praça pública bem movimentada, usando uma serra elétrica (!) para quebrar a corrente.




 
Minha interpretação? O choque de ordem não dura pra sempre e não tem como durar. As coisas degringolam em algum momento. A não ser que haja policiais na rua o tempo todo vigiando tudo e todos, a política não é viável. Ou seja, a não ser que eu soubesse que minha faxineira estava lá pronta para me dar uma bronca no dia seguinte, os incentivos para lavar a louça são mínimos. Pra ter tolerância zero, alguém tem que estar lá manifestando intolerância. Pra ter choque de ordem, alguém tem que estar lá pra dar o choque quando a desordem começar a aparecer. E esse é o vídeo que eu vou mostrar pra minha faxineira quando ela voltar de férias e perguntar como minha pia ficou nesse estado...