Peço licença aos meus leitores para trazê-los por um momento para esse mundo estranho e frequentemente incompreensível da academia. Esse é o mundinho que eu habito e, por causa disso, queria deixar aqui uma janela para vocês poderem espiar esse universo estranho, habitado por gênios, loucos e gênios loucos.
Na maior parte do tempo, o mundo acadêmico e o mundo real não se encontram. Passo boa parte do ano trancada no meu escritório escrevendo minhas idéias. Na outra parte do ano, viajo pelo mundo apresentando as idéias em conferências, que são frequentadas por pessoas que também ficam trancadas nos seus escritórios e pouco sabem da realidade lá fora. E daí o paper é publicado em journals (revistas acadêmicas), que basicamente tem um critério de seleção definido por acadêmicos e regras rígidas que também são únicas da academia.
Para dar uma idéia da falta de contato com a realidade que temos, note-se que eu marquei office hours (horário em que alunos podem vir ao meu escritório solucionar dúvidas e fazer perguntas) na sexta-feira santa. Esqueci que era feriado. Apenas descobri que tinha algo errado quando cheguei na faculdade e encontrei o prédio trancado e as luzes apagadas. E não foi a primeira -- nem será a última -- vez que faço isso. Os alunos acham estranho, mas decidem não reclamar (o que é sempre uma boa política com alguém que vai te avaliar no fim do semestre...).
Mas a falta de conexão com o mundo não afeta apenas meus pobres alunos que tem que vir pra faculdade em pleno feriado. Às vezes ela acaba afetando as idéias que formulamos também. Não me esqueço do dia em que um professor de Yale deu uma palestra para os estudantes de pós-graduação e nos revelou o grande segredo do sucesso acadêmico. Ele disse: escreva um paper com uma idéia que seja 1) engenhosa, 2) controversa e 3) completamente errada. Esses são os três pontos que garantem que as pessoas vão prestar atenção no seu paper.
A engenhosidade prova que você consegue pensar coisas que a maioria das pessoas teria dificuldade em imaginar. A controvérsia garante que muitas pessoas vão prestar atenção no que você está dizendo, caso contrário sua idéia pode ser engenhosa mas vai basicamente atrair a atenção de meia dúzia de gatos pingados que se importam com aquele tópico. Por fim, sua idéia precisa estar errada para as pessoas se animarem a escrever contra você. E esse último elemento é --- sem dúvida -- o mais importante. Pois na academia a importância do seu trabalho é avaliada por quantas vezes você é citado. E se muita gente estiver escrevendo contra seu paper, ele vai ser citado muitas vezes.
Não é difícil ver que esses incentivos geram papers questionáveis. Um bom exemplo é um paper que meu primo M. citou em um comentário no mês passado. O paper argumenta que recém-nacidos não são pessoas e, portanto, podem ser tratados como fetos que não nasceram ainda. Assim, concluem os ilustres autores, se por alguma razão você não fez o aborto (apesar de estar legalmente autorizada a fazê-lo) você pode matar seu recém nascido. O que leva acadêmicos a publicar esse tipo de coisa é a busca pelo sucesso rápido e fácil. São os Michel Telós da academia. Eles provavelmente não acreditam em uma palavra do que estão falando, mas querem subir na vida. Daí optam por um paper controverso e absolutamente errado. Minha previsão, todavia, é que esse paper não vai fazer sucesso porque falta engenhosidade. Eles conseguiram atenção da mídia, mas minha hipótese é que vão ser ignorados pela comunidade acadêmica. Afinal, se você se der ao trabalho de responder a uma idéia estúpida, a conclusão é que você também não é lá muito inteligente.
Se alguém quiser um exemplo de um paper que poderia ser citado como um modelo desse tipo de método para o sucesso acadêmico imediato, veja esse texto que propõe um mercado para compra e venda de bebês. O texto argumenta que o sistema de adoção gera uma alocação ineficiente de recurso e, de alguma forma, pais ricos saem com vantagens que não são devidamente reguladas. Portanto, o texto propõe oficializar a existência de um mercado e propõe um modelo regulatório. O texto se tornou um verdadeiro clássico, por conter os três elementos que mencionei antes.
Daí meu leitor se pergunta: e você, não vai fazer o mesmo? Pois é, depois de um mês terminando três paper (razão pela qual o blog ficou às moscas), descobri que meu primeiro paper não é engenhoso, o segundo não é controverso, e o terceiro não tem qualquer um dos três elementos. Ou seja, ainda sou aquele músico estupidamente talentoso (e pouco modesto!), que informalmente conhece todos os músicos famosos, mas ainda não chegou ao estrelato. E a não ser que eu queira ser um Michel Teló da academia, ainda vai demorar uns anos pra eu chegar lá...
Um comentário:
Bom, a humanidade fede, não há dúvida, mas aquele paper foi revisto por pares, e um editor - que padece de utilitarismo raso, para dizer o mínimo - o publicou. É um conluio, portanto. Regozijei-me com o boicote dos matemáticos àquela editora que a gente sabe. Que não pare por aí.
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