segunda-feira, 22 de abril de 2013

Vidas Paralelas (2)

Recentemente terminei de ler o livro da Sheryl Sanderberg, Lean In, que foi traduzido no Brasil como Faça Acontecer. O livro apresenta, de maneira mais detalhada e cuidadosa, as idéias que a Sheryl já tinha apresentado na sua TED talk. 

Já tinha postado isso no blog, mas vale a pena ver de novo:


Diferentemente do vídeo, o livro tem sido alvo de críticas e debates. Um pequeno resumo dos debates saiu no New York Times, e depois a principal crítica da Sheryl escreveu pessoalmente um artigo sobre o assunto. Para os interessados, há uma possível resposta a essa crítica aqui. O debate, além de interessante, é super importante. 

Mas não é sobre isso que eu vim falar. Minha observação é muito mais mundana. Ou, como diriam em inglês, pedestrian. Depois de terminar a leitura, me aventurei pelos agradecimentos do livro e descobri ali três coisas. 

Primeiro, o livro tem uma co-autora cujo nome não está na capa. Nell Scovell, a jornalista que supostamente "ajudou" a Sheryl a escrever o livro, aparece na capa interna do livro, mas não na capa externa. A capa externa, não só omite o nome da co-autora, mas tem a foto da Sheryl  ocupando mais da metade do espaço. 

Segundo, a Sheryl contratou uma pesquisadora de Stanford que "ajudou" com todas as pesquisa interessantíssimas que ela cita no livro. Nos agradecimentos a Sheryl diz que ela foi a "coordenadora" ou "diretora" de todas as pesquisas conduzidas no processo de elaboração do livro. 

Terceiro, a Sheryl agradece a cunhada dela, que ficou tão animada com o projeto que passou a entrevistar todas as suas amigas-profissionais-que-viraram-mães. Segundo a Sheryl, ela coletou algumas das histórias contadas no livro, que ilustram bem claramente alguns pontos da autora, e fazem um contraponto refrescante aos parágrafos cheios de pesquisa e notas de rodapé. Afinal, ficar lendo só sobre pesquisa é coisa de acadêmico nerd, né? 

As palavras dos agradecimentos sugerem que essas três pessoas ajudaram muito a Sheryl. Mas para quem já escreveu um livro e ajudou outras pessoas a escrever livros, esses três agradecimentos revelam como que uma alta executiva do Facebook, que trabalha alucinadamente em tempo integral, além de ser mãe, conseguiu encontrar tempo para escrever. 

Basicamente, os agradecimentos sugerem -- ao menos para mim -- que a Sheryl se limitou a dar as diretrizes. Minha hipótese (que é meramente especulativa, vale frisar) é a seguinte: A jornalista escreveu todo o texto, as partir da estrutura determinada pela Sheryl. Daí, a pesquisadora mandou relatórios detalhados de pesquisa, que a Sheryl leu, selecionou o que seria incluído, e pediu para a jornalista encaixar no texto da melhor forma possível. Por fim, vieram as histórias de entretenimento, que foram coletadas e transcritas pela cunhada, lidas e selecionadas pela Sheryl, e incluídas no livro pela jornalista. E assim a Chief Operation Officer (COO) do Facebook escreve um livro -- sem tocar em uma única vírgula do que está ali, mas coordenando todo o processo do início ao fim. 

Há muitos acadêmicos que adotam esse mesmo sistema. Eu chama eles dos CEOs da academia. Eles arranjam financiamento para contratar um time no qual cada um tem um talento específico (escrever bem, fazer pesquisas cuidadosas ou ter suficiente contato com o mundo fora da academia para trazer anedotas ilustrativas) e fica encarregado de uma tarefa específica. Daí, como o regente de uma orquestra, ou o CEO de uma empresa, esses acadêmicos produzem papers, livros e fazem pesquisa, sem ter que colocar a mão na massa. 

Não condeno ninguém por fazer isso. Na academia, essa prática é o resultado de um mundo em que o nível de produção exigido dos pesquisadores é muito mais do que um ser humano conseguiria humanamente produzir sozinho.  Nesse publish or perish, quem não adota um sistema desses -- de algum modo, em algum momento -- acaba no olho da rua. E não deveria ser surpresa para ninguém que uma alta executiva de uma das maiores empresas dos Estados Unidos tenha ainda menos tempo que um acadêmico para escrever livros.

Fico desconfortável, todavia, com a idéia de que a Sheryl ganhe a fama e todas as outras pessoas que contribuiram de maneira tão significativa para o projeto -- e todas elas mulheres, vale notar! -- fiquem relegadas à obscuridade. Eu já estive de ambos os lados dessa equação e é meu sentimento de injustiça da época em que eu estava no lado mais fraco que me leva a colocar como co-autores os ajudantes de pesquisa que contribuem de maneira substantiva com o projeto. A Sheryl parece tentar reconhecer a importância da jornalista na capa interna, colocando-a como co-autora. Mas a capa interna é um lugar onde poucas pessoas vão olhar. Nos lugares de grande visibilidade, como a capa externa, a lombada do livro, e mesmo a descrição do volume na Amazon.com, tem apenas o nome da Sheryl.

Talvez a Sheryl me acuse de estar adotando uma postura essencialmente feminina, que é a de achar que todo meu sucesso e o produto do meu trabalho não se deve só a mim. Talvez ela sugira que eu volte a ler o livro dela, em especial o capítulo onde ela mostra que as mulheres precisam adotar uma postura mais assertiva sobre suas conquistas, como fazem os homens. Talvez ela esteja certa. 

Mas há uma pequena possibilidade de que eu esteja contribuindo pra criar uma geração que não vai mais se submeter a esse tipo de arranjo no qual as pessoas que trabalharam com a Sheryl se submeteram. E daí nos vamos ter livros com capas que incluem todas as pessoas que contribuiram para o projeto como co-autoras. E quem sabe nesse dia nós estejamos um pouco mais perto de alcançar um mundo onde haja igualdade de verdade, como tanto quer a Sheryl. 
 

2 comentários:

VGG disse...

M,
1)Pelo menos não era o trabalho do estagiário (ou seja, espero que o trabalho individual tenha sido financeiramente recompensado de forma adequada);
2) pelo menos ela fez o agradecimento!
;)
No mais, "I am awesome!" Sorte? A de ter pais que conseguiram passar muito bem o recado. :P

Anônimo disse...

Uma informação, talvez você já saiba: Em São Paulo, desde 2006 há mais mulheres do que homens formando-se (e registrando-se) médicas e médicos. No Brasil como um todo, acho que as curvas se cruzaram em 2009 (não me lembro se esse dado se refere aos que iniciam a formação, ou aos efetivamente formados). Mas não consigo alcançar o porquê da meta de que as mulheres sejam, na média, iguais aos homens, na média. Ou o inverso disso, a propósito. Há amplo espaço para casos individuais, para homens que são mães consumadas, e mulheres que lideram exércitos - mas homens são biologicamente diferentes das mulheres além das questões óbvias, e isso se manifesta (dentro de um enquadramento cultural) inelutavelmente na realidade. Acho que nem preciso entrar na conversa da incidência diferente de doenças - as mentais, muito especialmente, mas também as físicas - entre os gêneros. E na questão da longevidade feminina. A longevidade feminina é um fato brutal no meu cotidiano: dos 24 pacientes internados hoje aqui no hospital, apenas um terço é de homens (nosso público é de idosos, principalmente). Quanto à co-autoria: o fato de o livro não ter saído da lavra própria da autora é muito desanimante, acho que a informação não está na capa por uma questão de marketing, de malandragem. E a malandragem parece ser equitativamente distribuída entre os gêneros.