quarta-feira, 26 de junho de 2013

Plebiscito

Nesses épocas tão plebiscitárias, vale ler (ou reler) esse conto.

Plebiscito

Arthur Azevedo


A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio.

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

— Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

— Papai?

Pausa:

— Papai?

Dona Bernardina intervém:

— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

— Que é? que desejam vocês?

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

— Se soubesse, não perguntava.

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

— A senhora o que quer é enfezar-me!

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

— Mas se eu sei!

— Pois se sabe, diga!

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra:

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

— Plebiscito...

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Sobre a Pec 37: Entre Clérigos e Contrabandistas

Há um exemplo de reforma governamental nos Estados Unidos que nos ajuda a entender o debate sobre a PEC 37. O exemplo é conhecido como Clérigos e Contrabandistas. Para garantir que as pessoas compareceriam sóbrias às missas de domingo, e que observariam os preceitos religiosos de rezar e observar os mandamentos de Deus nesse dia, os clérigos propuseram que fosse proibida a venda de álcool nesse dia. Imediatamente a medida recebeu total apoio de um grupo que nada tinha em comum com os clérigos: os contrabandistas. Esses viram na proibição a oportunidade de ter um dia da semana na qual eles teriam o monopólio sobre a venda de álcool, o que aumentaria significativamente seus lucros. E assim a reforma passou, apoiada por dois grupos que, exceto por essa medida, não tem um único interesse em comum -- muito pelo contrário.

Os posts contra a PEC 37 que aparecem no facebook indicam, na sua vasta maioria, que a medida está sendo proposta pelos contrabandistas: políticos com interesses excusos que buscam na medida uma forma de continuar com suas atividades ilegais. Há, todavia, um outro lado da história: o dos clérigos. Ou seja, há aqueles que acreditam que a PEC 37 vai servir a um propósito válido: impedir que as investigações sejam guiadas pela mesma entidade que vai apresentar a acusação perante o judiciário. Por que isso é perigoso? Porque a investigação pode deixar de ser imparcial. Aquele que acusa alguém perante o judiciário fica tentado a apresentar apenas elementos que sustentem a tese da acusação, escondendo qualquer elemento que possa apoiar a inocência do acusado. E isso é, de fato, problemático. 

O problema é que os argumentos contra a PEC 37 também são fortes. Se há um monopólio do poder de investigação concentrado na polícia, casos que -- por alguma razão -- a polícia não tenha interesse de investigar acabam por passar incólumes. Por isso a independência do Ministério Público em iniciar a investigação sozinho seria importante. Isso permite que ele colete provas e procure evidências em casos em que, por exemplo, policiais corruptos podem estar recebendo algum tipo de pagamento para deixar a investigação de lado. Investigação de políticos corruptos seriam um importante exemplo aqui. 

Quais dos dois lados apoiar? A pergunta é difícil. Como toda reforma, cada um dos arranjos tem suas vantagens e suas desvantagens. A escolha, portanto, tem que ser pelo menor dos males. Talvez uma forma útil de pensar sobre o assunto seja notar que o Ministério Público já exerce o poder de investigar, ainda que não esteja expressamente autorizado a fazê-lo pela Constituição Federal. Portanto, já sabemos como as coisas funcionam quando o Ministério Público tem esse poder. Ou seja, se a PEC 37 não for aprovada, tudo continua como está. Isso ajuda a rebater grande parte dos argumentos sensacionalistas a favor da PEC 37 que prevêem um futuro tenebroso caso a mesma seja rejeitada, com o esvaziamento do poder de investigação da polícia e um estado de perseguições políticas infundadas. Já as mudanças positivas que são previstas a partir da aprovação da PEC 37 são mera especulação. Não sabemos se elas irão de fato ocorrer. Portanto, o risco é muito maior de um lado (aprovação da PEC 37) do que de outro (deixar as coisas como estão). 

Uma outra forma de decidir qual é o menor dos males é tentar fazer um cálculo de custos e benefícios. Quantas pessoas foram acusadas e presas de maneira arbitrária, porque o órgão de investigação era o mesmo de acusação, se comparado ao número de pessoas que foram investigadas pelo Ministério Público de maneira fundamentada (e não teriam sido investigadas pela polícia) se não fosse o poder de investigação dos promotores. Se o primeiro número for maior que o segundo, aprovamos a PEC 37. Se o segundo número for maior que o primeiro, rejeitamos a PEC 37. O problema é que, exceto por casos anedóticos, não temos como calcular isso de maneira precisa.

Em suma, a questão é espinhosa -- como são todas as questões de desenho institucional. A única certeza que devemos ter é que não faz sentido rejeitar uma proposta simplesmente porque ela é apoiada por contrabandistas. Ao fazer isso, corre-se o risco de jogarmos fora também as razões mais louváveis que levaram a proposta a ser formulada. Portanto, sempre procure os clérigos. Você irá encontrá-los em ambos os lados de qualquer proposta de reforma. E saiba que qualquer posição que você tome sempre te colocará, de alguma forma, ao lado de algum tipo de contrabandista.

Conversão Política

Quando o facebook deixa de ser um veículo de compartilhamento de filmes com filhotes de gatos para virar uma plataforma de debate político, quando o povo sai às ruas em massa exigindo reformas, e quando o nosso querido Patrinha deixa de publicar sua crônica semanal para falar dos protestos, você sabe que tem algo grande acontecendo. 

Por isso, fica esse blog convertido em uma plataforma política a partir de agora, e até que toda essa movimentação se dissipe. 

Quanto temos tantas coisas importantes pra discutir, não é hora de ficar escrevendo crônicas. 


A passeata 

Antonio Prata  

Sejamos francos: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes. Tinha punk de moicano e playboy de mocassim. Patricinha de olho azul e rasta de olho vermelho. Tinha uns barbudos do PCO exigindo que se reestatize o que foi privatizado e engomados a la Tea Party sonhando com a privatização de todo o resto. Tinha quem realmente se estrepa com esses 20 centavos e neguinho que não rela a barriga numa catraca de ônibus desde os tempos da CMTC. (Neguinho, no caso, era eu). Tinha a esperança de que este seja um momento importante na história do país e a suspeita de que talvez o gás da indignação, nas próximas semanas, vá para o vinagre. 

Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância.

Anteontem, depois da passeata, assisti ao "Roda Viva" com Nina Capello e Lucas Monteiro de Oliveira, integrantes do Movimento Passe Livre. Ficou claro que, embora inteligentes e bem articulados, eles tampouco compreendem onde é que foram amarrar seus burros. "Vocês começaram com uma canoa e tão aí com uma arca de Noé", observou o coronel José Vicente. Os dois insistiram que não, o que há é um canoão, e as mais de 200 mil pessoas que saíram às ruas no Brasil, segunda-feira, lutavam por transporte público mais barato e eficiente. A posição dos ativistas de não se colocarem como os catalisadores de todas as angústias nacionais e seguirem batendo na tecla do transporte só os enobrece --mas estarão certos na percepção? Duzentas mil pessoas de esquerda, de direita, de Nike e de coturno por causa da tarifa?

"Por que você tá aqui no protesto?", perguntou a repórter do "TV Folha" a uma garota na manifestação do dia 11: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui, na verdade", foi sua resposta. Corrupção, impunidade, a PEC 37, o aumento dos homicídios, os gastos com os estádios para a Copa, nosso IDH, a qualidade das escolas e hospitais públicos são todos excelentes motivos para que se saia às ruas e se tente melhorar o país --mas já o eram duas semanas atrás: por que não havia passeatas? Será porque a chegada do PT ao poder anestesiou os movimentos sociais, dificultando a percepção de que o Brasil vem melhorando, melhorando, melhorando e... continua péssimo? Ou será porque agora o Facebook e o Twitter facilitam a comunicação?

Se as dúvidas sobre as motivações --que brotam do solo minimamente sondável do presente-- já são grandes, o que dizer sobre o futuro do movimento? Marchará ou murchará? Caso cresça: conseguirá abaixar a tarifa? E, no longo prazo, terá alguma relevância? Mais ainda: adianta ir às ruas, fazer barulho? Ou a própria passeata extingue o impulso de revolta que a criou e voltamos todos para o mundinho idêntico de todos os dias, com a sensação apaziguadora de que "fiz a minha parte"?

Não tenho a menor ideia, estou mais confuso que o Datena diante da enquete (migre.me/f4UCh), mas num país injusto como o nosso, em que a única certeza parecia ser a de que, aconteça o que acontecer, o Sarney estará sempre no poder, as dúvidas dos últimos dias são muitíssimo bem-vindas.