Plebiscito
Nesses épocas tão plebiscitárias, vale ler (ou reler) esse conto.
Plebiscito
Arthur Azevedo
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar
para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita
atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o
que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe?
Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a
mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você
falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não
sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu
filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a
torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o
diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador
involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e
façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em
tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto
zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito
boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
2 comentários:
Engraçado que se vê nas ruas é a exigência de transporte público decente (e gratuito), ojeriza aos partidos políticos (sobretudo ao PT, obviamente, porque está no governo há 10 anos) e à corrupção endêmica, hostilidade aos gastos e empenhos para a copa, demandas de atendimento hospitalar de qualidade (comemoro diariamente como o povo é específico e oportuno nessa exigência - não é "saúde em geral"), cadeia para o José Dirceu, queda da PEC 37 (já caiu), etc, e violência. Ninguém está a pedir plebiscito, referendo, e nem reforma política. Claro que eu entendo, como tantos, que a desobrigação do voto, regrar as coligações, o voto distrital - e (gostei que o Joaquim Barbosa e o Roberto Freire falassem desse assunto), até mesmo a propositura de candidaturas independentes - trariam ar e energia para a política brasileira. Mas não é isso que a rua pede não, e eu acho que o governo está brincando com coisa séria. Achei interessante nessa quarta feira (26/06) a coluna do Roberto Damatta - quem começou a vandalizar? Quem depositou o bolsa família antecipadamente na CEF e soltou o boato de que seria o último, ou seria dobrado? Quem disse (foi o Gilberto Carvalho, para quem não sabe) que em 2013 "o bicho ia pegar". Quem tentou suprimir a candidatura da Marina Silva para 2014 pelo método mais vil? E eu acrescentaria ao Damatta: quem foi que pediu (foi a Dilma, para quem não sabe) o adiamento do aumento das passagens em SP (o estopim da crise) do começo do ano, como habitual, para meados do ano - tudo para maquiar índices inflacionários. Apreciei também o recado à Dilma do Contardo Calligaris a 27/06: "não acredito que os 'baderneiros' das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil". Pois é, também me parece que a violência (hobbesiano e durkheiminiano que sou) é intrinseca ao fenômeno - é a violência começou pelo Estado, pisando pesado demais na cabeça do cidadão
Mariana, a única coisa que eu posso falar é que Brasília no momento é a verdadeira Ilha de Lost! Estão totalmente desconectados do mundo real. Não sei se por conveniência ou por serem inaptos. Estou mais inclinado pela primeira opção e que julgo a mais perigosa! Eu acho que o segundo semestre de 2013 promete grandes emoções! Vamos torcer para o final ser menos dramático que eu estou imaginando.
Aires
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