terça-feira, 14 de abril de 2009

Teses, dissertações, mudanças e outros processos de enlouquecimento precoce


E por falar em partidas, tem mais uma a caminho: meus pais decidiram voltar para Santos. Eles mandaram fotos da mudança e deles, junto com a minha irmã, encaixotando tudo, inclusive os meus livros que eu pedi para eles guardarem quando fui fazer o mestrado nos EUA em 2001, e nunca mais voltei pra buscar...


São livros da época da faculdade, quando eu comecei a comprar muitos livros. Eram tantos, que minha família chegava a ficar preocupada. Minha vó uma vez me disse que no final dos cinco anos de faculdade eu provavelmente ia ter gastado o equivalente a um carro zero quilômetro em livros. Esse pensamento me assombra até hoje. E para piorar as coisas agora a cifra vem com juros e correção monetária: toda vez que eu estou no caixa de uma livraria eu penso - lá se foi meu apartamento...


Os meus pais, por outro lado, perguntavam se eu tinha tempo para ler os livros que eu comprava. Claro que não, eu respondia. Livro é como um fetiche -- vc precisa ter o negócio impresso, na sua frente, pra folhear, cheirar, guardar na estante, etc. Meu pai desconfiou durante muito tempo dessa tese, mas um dia ele achou um artigo no caderno Mais! da Folha de S. Paulo que dizia a mesma coisa e se acalmou um pouco. Afinal, se ele tinha uma filha louca, ao menos ela estava bem acompanhada...



E as fotos revelam mais uma coisa da minha época de faculdade: eu era uma pessoa dividida entre o mundo da vida e o mundo das idéias. Meu tempo era dividido entre direito tributário
e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant (foto acima). Ou entre títulos de crédito e ética, ou o conceito de norma jurídica (foto abaixo).



E assim ficava eu, tentando acreditar que alguém ia me pagar para viver no mundo das idéias, mas por precaução eu me preparava para o mundo da vida (i.e. arranjar um emprego como advogada). Afinal, não é todo dia que carreiras acadêmicas dão certo...

A boa notícia é que a carreira acadêmica deu certo (até agora pelo menos), mas a má notícia é que meus pais vão ter que carregar o peso da minha indecisão. Fico devendo mais uma pra vocês, pessoal!

E toda essa conversa sobre, partidas, mudanças e mundo das idéias, me lembrou de uma crônica que escrevi quando saí da New Haven e me mudei para o Canadá. Já que o blog era pra ser, supostamente, sobre minha vida canadense, achei mais do que apropriado dividir a crônica com vocês. O título original virou o título do post. Espero que gostem.


Teses, dissertações, mudanças e outros processos de enlouquecimento precoce

Pois é. Minha estadia nos E.U.A. finalmente se encerrou. Agora vem a mudança. Penso: -“Vou levar só livros e roupas. Vai ser tranquilo.” Reservo uma tarde de sábado para encaixotar as coisas, achando que é mais do que suficiente. Quarta-feira, cinco dias depois, encontro-me no meio de 44 caixas e o processo de encaixotamento ainda está longe de terminar…

Não consigo imaginar como um período de cinco anos escrevendo uma tese de doutorado poderia terminar de forma mais irônica. O processo de mudança é tão similar ao processo de escrever uma tese que eu estou quase acreditando que existe uma força divina que nos rege e que certamente está, nesse exato momento, se divertindo às minhas custas.

Tudo começa com o planejamento. Sempre mais otimista do que deveria. Tanto na tese quanto na mudança você calcula que tem que fazer menos do que de fato acaba sendo necessário, e consequentemente você acha que será necessário menos tempo do que de fato acaba precisando.

Daí vem a execução. Mais cedo do que qualquer lei de Murphy poderia prever, seu planejamento vai direto para a lata do lixo, pois você vê que não vai servir para nada. As caixas que você comprou são ou grandes ou pequenas demais. A distribuição das coisas nas caixas precisa ser feita e refeita inúmeras vezes, e se perde um tempo danado tentando lembrar onde se colocou isso, ou aquilo, ou qualquer coisa que de repente se torna imprescindível e sumiu no meio da confusão, como a tesoura para abrir as caixas. Para quem nunca escreveu um doutorado, pense nas caixas como capítulos, e nas roupas e livros que você tem que distribuir nelas como o conteúdo dos mesmos, o que inclui milhares de artigos, livros e outros papéis, que se perdem com a mesma facilidade que a tesoura na mudança. Em algum lugar eu li um cara falando disso… Onde foi mesmo?

A sua relação com o processo também evolui da mesma forma. No início, tudo é feito com um cuidado que beira a perfeição. Tudo é colocado dentro das caixas na mais perfeita ordem, as coisas estão sendo distribuídas nas caixas de acordo com um critério pré-estabelecido (livros de culinária aqui, livros de viagem ali, roupas de frio acolá) e tudo é pacientemente refletido à exaustão. Depois de desfazer a primeira caixa (porque era muito grande ou ficou pesada demais) se começa a ser mais pragmático. Tem espaço aqui, então enfia. Critério? Algum, mas sem muito rigor. Livros com livros e roupas com roupas. Depois de cinco dias nessa tortura, você só quer ver tudo dentro das caixas, não interessa como, não interessa em que caixa. Roupas com livros, qual o problema?

A tese é a mesma coisa. O primeiro capítulo que se tenta escrever é tão cuidadoso que parece que vai ser uma obra-prima da literatura acadêmica. Depois de refazê-lo umas três vezes, você começa a perceber que não adianta se ater aos cuidados, pois nada -- absolutamente nada -- do que você está escrevendo nesse momento vai ficar na versão final. Então você começa a escrever de uma maneira, digamos, “mais solta”, na esperança de que um quinto daquilo que vocês está dizendo seja aproveitado no final. Depois de cinco anos, você só quer ver aquele monstrengo que você criou virar uma caixa, com tudo que você precisa dentro. Só isso. Sem rompantes de genialidade, sem uma linguagem de fazer inveja, sem firula. Desnecessário dizer que tanto na mudança quanto na tese você acaba jogando metade das coisas fora.

Infelizmente, acho que essas semelhanças não são peculiares ao meu caso. Quantas pessoas você conhece que adoraram o processo da mudança, ou adoraram o período em que elas estava escrevendo o mestrado, o doutorado, ou qualquer monografia? Ninguém. Absolutamente ninguém consegue descrever esses processos com prazer. É claro que o produto final, às vezes, compensa. A mudança pode ser para um lugar onde a vida é melhor. Algumas teses viram livros famosos e trazem uma importante contribuição para a humanidade. Talvez nesses casos as pessoas relevem quão doloroso foi o processo, mas o fato é: ninguém está imune. No início parece uma grande idéia. Todo mundo empolgado. Do meio para o final, a coisa só degringola. Não há exceções.

Bom, no meu caso o processo de encaixotamento foi fechado com chave de ouro. Depois de finalizado, contactei a empresa de mudança, que me enviou instruções por e-mail. O primeiro conselho deles: não encaixote nada sozinho. O encaixotamento deve ser feito por profissionais, sob o risco de se prejudicar o processo de mudança (com caixas muito pesadas ou mal acondicionadas), e de se danificar seus bens.

Acho que as teses e dissertações também deviam vir com um aviso desses: deixe para os profissionais… Ou talvez as pessoas que pretendem escrever uma tese devessem passar um período intensivo de treinamento em uma empresa de mudanças. Com certeza elas estariam mais preparadas para enfrentar esse processo sem perder muito da sua sanidade mental. Eu, em contrapartida, vou sair da mudança direto para um psiquiatra, antes que eu decida fazer outra tese…ou outra mudança…

3 comentários:

Anônimo disse...

Boa, mais uma crônica. Ótima, por sinal. Quem diria hein, Kant ao lado de um "resumo" de direito tributário!

Um beijo,


Augusto

Anônimo disse...

Muito bom (re)ler sua crônica! Já não me lembrava dela nem do processo de mudança. Passei mais de um mês repetindo "nossa mudança vai ser muito tranquila, temos muito pouca coisa. Em um dia encaixoto tudo!"
E cá estamos, exatamente como você descreve. Ainda ontem, o funcionário da transportadora esteve aqui: "O Sr. não deveria ter encaixotado nada; nós temos pessoas especializadas para isso".
Bem, como consolo, ou seja lá o que for, processos de mudança ativam novas sinapses! (ao menos é o que dizem os neurocientistas).

Bj.
your dad.

claudio disse...

Mariana,

precisamos agradecer à Sarah pelo acondicionamento de seus livros, classificando-os em literatura e "sanfranciscanos".
(só uma observação: depois de tudo encaixotado, sua mãe ponderou que o peso de algumas caixas tornava impossível seu transporte. Resultado: caixa1 = caixa1A + caixa1B + caixa1C, caixa2 = ...). Espero que você não precise localizar nenhuma obra com urgência.

bj.