sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Um barzinho e uma boa birita, sem violão

Sexta-feira a noite, estou indo pra um bar com minha família. Pela conversa, ainda em casa, a noite promete:

- Você consegue sentir meu perfume?, pergunta minha tia.
- Não, respondo eu.
- Pois é. Comprei esse perfume caríssimo, passei litros e mais litros e nada de cheiro.
- Você só precisa passar perfume onde quiser ser beijada, segundo Coco Chanel.

A sabedoria (ou audácia) da minha mãe -- que entrou na conversa de supetão, com uma frase inesperada -- deixa todo mundo em silêncio. Minha mãe quebra o gelo apontando para o fato de que tanto eu quanto minha tia estávamos de listras, no melhor estilo Coco Chanel. Achei que listras a la Coco Chanel estavam de bom tamanho para uma acadêmica que pouco se preocupa com estilo e moda, e resolvi não pensar onde eu tinha passado perfume...

Saímos em direção ao bar.

Três mulheres bem informadas andando por ruas escuras em uma cidade no Brasil. Não deu outra: começamos a discutir a possibilidade de sermos assaltadas. Era alta, todas concordavam. Minha tia propõe que devemos voltar de táxi. A proposta se perde no meio de histórias de horror sobre assaltos a todos os membros da família. No meio dos relatos (que apenas reforçaram minhas impressões de estar em uma zona de guerra), minha mãe declara:

- Tenho dez reais.
- Tenho vinte, responde minha tia.
- Gente, se alguém assaltar a gente eles vão levar tudo, não só o dinheiro, respondo eu.

Minha mãe calmamente explica que elas estava discutindo se tinham dinheiro para voltar de táxi. E eu resignadamente pensei que ainda tenho um longo caminho a percorrer antes de conseguir acompanhar esse raciciocínio não linear das mulheres. Porque devo eu ligar a frase sobre dinheiro à proposta de pegar um táxi (que tinha se perdido há algum tempo na conversa) e não aos relatos de assalto que precederam a frase? Não sei. Preciso de um estágio intensivo nessa conversa arbustiva...

Chegamos ao bar. Típico boteco brasileiro: muitas mesas de madeira na calçada, e muita gente nas mesas. Um calor agradável para alguns, mas excessivo para outros. Ainda assim, as pessoas não se acanham com as altas temperaturas e a falta de ar condicionado: há fila para pegar mesas. Todos querem curtir a sexta-feira a noite no boteco com ventiladores da década passada.

Enquanto esperamos, minha tia reclama que desde que minha avó morreu não se joga mais baralho na família. Eu fico sem poder oferecer ajuda: não sei jogar cartas. Resta-nos, portanto, nos afogar na bebida, já que não dá pra jogar baralho e não ganhamos na loteria.



A tradição da família, todavia, não é apenas beber. Há que se beber, e se resolver os problemas do mundo ao mesmo tempo. E hoje não foi diferente. Começo a conversa perguntando porque a educação no Brasil não melhora. Resposta: está melhorando. Há mais pessoas prestando vestibular. Há quotas nas universidades. E há um mercado sedento por profissionais qualificados. Ou seja, tanto os incentivos quanto as oportunidades estão lá.

Eu pressiono mais: mas essas mudanças são muito pequenas! Quero saber porque não se promove uma reforma radical no ensino básico no Brasil. Por que não elegem um Presidente que promete erradicar o analfabetismo? Minha tia sugere que é "uma bola de neve descendo a montanha": com a demanda por pessoas com ensino superior, o ensino básico tende a melhorar. Meu tio proclama que o mercado vai resolver tudo. Minha mãe responde com ceticismo: depois de ver mudanças na política educacional do Distrito Federal a cada quatro anos (quando um novo governador era eleito), ela perdeu a esperança de ver qualquer coisa coerente ser feita no setor. Segundo ela, político tem incentivo pra construir ponte, não pra reformar a educação. Para minha mãe, portanto, a reforma tem que vir de baixo, mas ela não sabe de quem.

Pausa para fotos.


O tópico muda para o estado calamitoso da cidade de São Paulo. Meu tio conta uma história de horror sobre uma enxurrada com muito lixo descendo a ladeira da rua onde ele mora, e ameaçando o carro dele. E propõe uma tese: ele acha que São Paulo está assim por causa da ocupação urbana descontrolada (que aterrou várzeas de rios) e por causa do lixo acumulado nas ruas, que entopem os esgotos. Minha tia defende a idéia de que excesso de asfalto impede a absorção de água.

Nesse meio tempo, minha mãe olha para meu segundo copo de pinga, e me lança um olhar reprovador. Eu como mais um pedaço de toucinho e respondo:

- Que foi? Virei diabética (o que me impede de tomar cerveja), mas não virei monja.


- Párem a nave, que eu quero descer, responde minha mãe.



Todos riem e voltamos a São Paulo. Eu apresento minha tese: eu acho que o problema todo foi a falta de reforma agrária. Reação da mesa: todos de cabelo em pé. Explico ao leitor: reforma agrária é quase palavrão na minha família. Eu insisto no ponto: acho que a ditadura militar acreditava que desenvolvimento era produzido por industrialização. Eles promoveram, portanto, a mecanização da agricultura e fizeram investimentos massivos na industria de base. Resultado? Êxodo rural. Em nenhum lugar do mundo se encontra megalópolis como São Paulo e a Cidade do México. Se tivessemos feito reforma agrária, esse povo tinha ficado no campo e não tinhamos que lidar com crescimento urbao descontrolado.

Eu sabia que a resposta ia ser dura. Afinal, minha família é classe média, não classe baixa. Não deu outra.

Meu tio responde prontamente: - Isso parece discurso de estudante petista, Mariana. Você não vai mudar o mundo. As coisas não são simples assim.


Eu esclareço: - É uma análise histórica, não atual. Não sei qual o impacto que reforma agrária iria produzir no país agora, ainda que eu ache que poderia ajudar a reduzir os níves indecentes de desigualdade de renda...


Resposta unânime: - Não. Isso não ia resolver o problema. As pessoas pegam os lotes, revendem e mudam para a cidade do mesmo jeito. Brasileiro não tem uma cultura de trabalho e esforço. Brasileiro tem uma cultura de tentar conseguir almoço de graça.


Eu pergunto: - Se o problema é cultural, como resolver?
- Cultura não é imutável, responde minha tia.
- Acho que o problema é que aqui é muito quente, diz meu tio.
- O Brasil precisa de educação, é a resposta de todos.

Eu volto à minha pergunta original: se todos estão de saco cheio com os problemas do país (como que tenho a impressão que estão) e se todos concordam que devemos investir na educação, porque isso não está acontecendo? Meu tio sugere que as elites no poder querem apenas garantir benefícios próprios. Minha tia sugere que esse papo de elite no poder é coisa do passado. Meu tio insiste que países desenvolvidos não querem ajudar os países pobres, mas sim se aproveitar deles. Eu digo que, ainda que isso seja verdade, não temos uma explicação de porque o Brasil não está ajudando a si mesmo.

- Porque não estamos investindo mais em educação?
- Porque é muito complicado, diz minha tia.
- Complicado como?, pergunto eu.

Daí todo mundo virou a mesa. Decidiram perguntar o que eu achava. Queriam saber se o Canadá tinha problemas. Eu disse que sim: desde problemas políticos (o primeiro ministro fechou o parlamento), problemas de criminalidade urbana, acidentes de trânsito (14 pessoas atropeladas em Toronto só no mês de fevereiro), até problemas com sindicatos e monopólios de telecomunicações mal regulados. Mas ainda assim é um país com um nivel de desenvolvimento humano (IDH) altíssimo.

Minha tia repete a pergunta: - O que você acha que devemos fazer no Brasil? E acrescenta:- Se você colocar qualquer coisa no seu blog, vou avisar seus leitores que você já tinha tomado três doses de pinga!

Para não ser desacreditada por alto teor alcóolico, vou deixar minha opinião sobre os problemas brasileiros para uma outra oportunidade. Mas vale relatar que toda a família chegou em casa pouco perfumada, mas sã e salva.

5 comentários:

Theresa Miedema in Toronto disse...

It sounds like you had a fun night out, complete with good drinks and interesting conversation swfavbl;

Theresa Miedema in Toronto disse...

Ooops. Sorry about that last post. Dave the cat got in the way, added his own commentary, then managed to hit "post". I didn't think he could read the instructions since they are in Portuguese. I guess he's brighter than I thought.

Anyway, it sounds like you had an interesting evening. My family also spends its timing discussing how to solve the problems of the world. There should be a think tank composed of families who believe they can solve the problems of the world.

Last note: the telecom lawyer in me objects to the reference to unregulated telecom monopolies in Canada. The monopoly companies are regulated except in markets that are sufficiently competitive to discipline telecom service providers. The primary problems in Canada relate to low population density (low incentives to enter the market) and restrictions on the level of foreign ownership and control of carriers (service providers who own or operate transmission facilities). But I haven't had enough rum this evening to debate this matter more fully or to propose solutions.

By the way, Dave says "Boa noite!" What a show-off. Crazy cat...

Theresa Miedema in Toronto disse...

One last comment...I love the addition of the photos. Of course, one of the first things that I noticed was that the TV in the bar was showing curling from the Olympics. I can't tell who was playing, though. I have a suspicion that you were not even aware that the game was on.

Anônimo disse...

somehow i agree with your family on this one.. maybe this is a good excuse for me to go and join the party.

p.s. i think education is over-rated. i'd elaborate, but i'd like to think of this as a place to leave fun comments ;)

n

Anônimo disse...

Juscelino é pai e mãe desta m.... toda. Alguém podia fazer a gentileza de ensinar isso para o Lula?