Estou na Itália. E agora eu sei porque a América Latina ganhou esse nome: porque nós temos uma cultura latina! E nada como ir até a fonte dessa cultura, pra descobrir que tudo que a gente tem de latino no Brasil não chega nem perto da latinidade italiana.
Já no aeroporto, dá pra perceber alguns traços da cultura latina. Depois da imigração, tive que esperar pela minha mala. E organização e eficiência definitivamente não é o forte dos italianos. Colocaram dez (literalmente!) vôos na mesma esteira de bagagem. Não tinha, portanto, espaço pra sequer ver que malas estavam passando. Mas mesmo que desse pra ver as malas no meio da muvuca, não ia fazer qualquer diferença: eles demoraram uma hora e meia (!) pra colocar as malas do meu vôo na esteira. Nem em Cuba, onde não há caminhões e os carregadores têm que puxar os carrinhos até o saguão as malas demoraram tanto…
Mas a demora das malas ficou no chinelo quando eu tive a oportunidade de pegar um vôo interno de Roma para Palermo com a falida Allitalia. O portão mudou três vezes. Acho que na hora do check-in eles não fazem idéia de qual portão a aeronave vai parar e chutam um número qualquer, e depois ficam tentando advinhar onde o avião vai parar.
Depois, mudaram a aeronave. Como era uma aeronave com uma distribuição diferente de assentos, todas as pessoas que estava no vôo tiveram que ser realocadas para outros assentos. Isso aconteceu comigo no Brasil uma vez, e o pessoal da empresa aérea teve presença de espírito para anunciar que o vôo teria assentos livres. Mas na Itália não. Eles decidiram emitir novamente todos os cartões de embarque. E resolverem pedir para todas as pessoas comparecerem no balcão – ao mesmo tempo -- pra trocar os cartões. Foi aqui que eu descobri que italianos não fazem fila. Esse conceito não existe aqui. Ser atendido basicamente depende da sua perseverança e capacidade de acotovelar outras pessoas (e isso vale para cafés e museus também, não só o aeroporto). Resultado? Uma confusão generalizada no portão de embarque com italianos gritando muito uns com os outros e também com os funcionários da empresa, que não se acanhavam em gritar de volta em resposta.
Uma hora e meia depois do horário previsto para o vôo partir, iniciou-se o embarque. Caminhei para o portão achando que eu já tinha passado pela minha cota de desorganização italiana. Minha doce ilusão que não durou muito para se esvair. Assim que entramos no avião, os comissários de bordo não apenas descobriram que o pessoal de terra tinha emitido bilhetes duplicados (ou seja, duas pessoas estavam no mesmo assento), como tinham também colocado crianças pequenas longe de seus pais, e pessoas com dificuldade de locomoção (incluindo um senhor com cadeira de rodas) no fim do avião. Começou o troca-troca. E os comissários não falavam uns com os outros. Portanto, um mandava o passageiro para o fundo do avião, e o outro mandava o mesmo passageiro para frente. Os italianos, por sua vez, não ficaram quietos: começaram a brigar com os comissários seja porque estavam bravos de ficar indo pra lá e pra cá; seja porque não tinham sentado onde gostariam. E os comissários, como bons italianos, não se acanhavam em gritar em resposta aos impropérios que ouviam.
Ficar quarenta minutos dentro de um avião com quarenta pessoas aos berros antes de decolagem não foi fácil. Quando minha mala chegou, uma hora depois do avião pousar em Palermo, minha dor de cabeça ainda não tinha passado. Tudo que eu mais queria, portanto, era chegar no hotel, me trancar no meu quarto e ficar 24 horas sem interagir com outros seres humanos (e com italianos em especial). Mas eu ainda tinha que chegar no hotel. E pegar um taxi foi mais uma lição de cultura latina.
Peguei o táxi com dois colegas da universidade que estavam indo para a mesma conferência e, portanto, para o mesmo hotel. Perguntamos para o taxista quanto custava a viagem. O taxista falou que ele não podia prever, pois a viagem era calculada pelo taximetro. Mentira. O governo fixou as tarifas do aeroporto até a cidade, mas eu e meus colegas só descobrimos isso depois. E o taxista se aproveitou da nossa ignorância para tirar vantagem. Ou seja, aqui eu já estava deixando de experimentar a ineficiência e desorganização italiana, pra voltar a experimentar a falta de qualquer respeito pelas regras. E essa coisa de não levar a sério as leis e normas é visível no trânsito aqui, que é um salve-se quem puder.
Mais do que isso, com o taxista eu estava começando a aprender que, muito mais do que os brasileiros, os italianos estão o tempo todo tentando ser mais espertos e tiram vantagem de você. Por exemplo, um outro colega que estava indo para a conferência sabia que havia um preço fixo e insistiu no preço fixo. O taxista concordou a princípio, mas no meio do caminho falou que o carro dele tinha pifado e obrigou esse outro colega a pegar um novo táxi, pagando pelo taximetro. Ou seja, apesar de saber da tarifa, ele foi enganbelado também.
E os taxistas não são o único exemplo disso. Quando peguei um ônibus para visitar a catedral de Montreale, o ônibus estava relativamente vazio. Em um certo ponto, entra um grupo relativamente grande de pessoas, e todas se aglomeram diante da máquina pra validar o ticket. A pequena aglomeração dura algumas paradas, quando de repente quatro das pessoas que tinham subido descem em uma parada próxima de onde haviam embarcado. Não demorou muito para o casal que estava no meio da aglomeração descobrir que eles tinham sido assaltados. E não demorou muito para a mulher começar a fazer um escândalo, pedindo para o motorista parar e chamar a polícia. O motorista começou a gritar de volta algo que eu não entendi. De repente, estavam todos no ônibus participando da discussão. E assim eu tive a oportunidade de presenciar mais quarenta minutos de pessoas berrando dentro de um meio de transporte público. A essa altura, eu já estava quase decidindo que era melhor ser roubada por taxistas desonestos do que usar meios coletivos de transporte…
E a outra faceta de cultura latina é que a falta de respeito pelas regras é acompanhada de uma absoluta ineficiência da polícia e das autoridades locais. A senhora foi aos berros até o ponto final, onde desceu pra falar com alguns guardas na esquina. Os guardas deram de ombros. O que eles podia fazer? Ela argumentou que eles podiam voltar com ela pra tentar achar o grupo. Eles argumentaram que não iam achar ninguém. A senhora parecia determinada a procurá-los, mas os guardas não queriam saber de ajudar. Ela saiu pelas ruas aos berros, gritando que a Sicília era a vergonha nacional.
Apesar da mulher “argumentar” que o problema era a Sicília (que tem fama de ser menos desenvolvida que o resto da Itália) vi a mesma coisa acontecer em Roma. Aqui há policiais em todas as esquinas, mas eu sempre vejo eles conversando entre si e prestando muito pouca atenção ao que está ocorrendo ao redor. Não é a toa que meu guia aconselha tomar cuidado com furtos, que provavelmente acontecem debaixo do nariz desses guardas que estão muito entretidos com suas conversas pra prevenir qualquer incidente.
E a falta de qualquer preocupação das autoridades com as regras é visível no controle de imigração. Pra mim, nunca foi tão fácil entrar em um país. Não me pediram visto. Nada de peregrinação até o consulado com entrevistas que te tratam como a filha do Bin Laden. Nada de vistos elaborados, que parecem um trabalho de arte no seu passaporte, mas custam uma fortuna. Achei que, assim como a Inglaterra, os italianos iam transferir o interrogatório para o setor de imigração do aeroporto. Mas não aconteceu. O sujeito nem olhou o passaporte pra ver se era eu na foto. Ele pegou meu passaporte, abriu uma página em branco, carimbou e devolvou pra mim sem dizer uma palavra. O Bin Laden podia ter entrado na Itália com meu passaporte, sem problemas.
E a história se repetiu mais uma vez assim que sai do aeroporto. Quando peguei um trem do aeroporto para o centro da cidade, o condutor descobriu que dois rapazes sentados do meu lado tinham comprado os tickets para outro trem, mais barato. Ele tentou cobrar a passagem, mas os passageiros falaram que não tinham dinheiro. Ele então pediu documentos para ambos. Me lembrei que nos Estados Unidos eles pedem um documento pra mandar a cobrança para sua casa, com uma pequena multa pela inconveniência. Eles fazem isso nos pedágios, nas auto-estradas, por exemplo. Mas nesse caso não adiantou. Os sujeitos não tinham documentos. O condutor falou que ia chamar a polícia e sumiu. Os dois fizeram uma viagem tensa, e desceram bastante rápido do vagão quando chegamos no centro de Roma. Eu demorei pra retirar minha bagagem e, ao descer do vagão, vi o condutor reclamando que os guardas demoraram muito pra chegar. Assim como a senhora do ônibus, ele insistia para que procurassem, pois os dois ainda deviam estar na estação. Os guardas, de novo, deram de ombros. O condutor se exasperou e ouviu um – se acalme e mostre um pouco de respeito – também aos berros dos guardas. A essa altura, eu desisti de pegar o metrô e resolvi ser enganada por um táxi. Não queria correr o risco de presenciar duas discussões em transportes públicos no mesmo dia.
No dia seguinte, decidi adotar essa cota: só vou presenciar uma única discussão em transportes públicos por dia. Mas não demorou muito pra eu abandonar essa idéia. Minha primeira tentativa de pegar um ônibus urbano na manhã seguinte foi coroada com uma discussão entre os passageiros que esperavam para embarcar e os motoristas. Ninguém conseguia informar os passageiros qual era o próximo veículo que ia sair, dentre os que tinham acabado de chegar no ponto final.
Cheguei, portanto, à seguinte conclusão: pra calcular o preço do transporte até um certo lugar, preciso sempre incluir o custo adicional. No caso de transporte público, preciso adicionar o custo da dor de cabeça. No caso do táxi, preciso adicionar o custo de ser roubada. E pra economizar um pouco na próxima visita, vou trazer tapa ouvidos, aspirinas e uns euros adicionais. Nesse meio tempo, nunca mais reclamo do Brasil…
Um comentário:
I think the Sicilians are more related to the Arabs than the Latins (they were part of the Islamic Empire for few hundred years).. but I must say, out of experience, only disorganized cultures have good food and taste in clothing. Nothing that a good meal with a good glass of wine can't fix!
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