quarta-feira, 23 de junho de 2010

Um tapa com luva de pelica

Meu último post sobre o Brasil não foi muito bem recebido, como dá pra perceber pelos dois comentários. Mas a melhor crítica que eu recebi foi esse vídeo, que foi a crítica mais sutil e elegante que eu já recebi na vida. E, como não podia deixar de ser, veio da pessoa mais elegante e sutil que já conheci, minha mãe.



segunda-feira, 21 de junho de 2010

Pedintes, Paes e Pronto-Socorros

A primeira vez que pensei seriamente sobre moradores de rua foi quando eu conheci uma pessoa que vivia assim. Nosso primeiro encontro aconteceu em 1996, em um ponto de ônibus em São Paulo. Eu tinha acabado de me mudar, e essa era o novo local onde eu pegava condução de manhã para ir para a faculdade. Ela veio caminhando decidida na minha direção, parou bem perto de mim, me olhou nos olhos, estendeu a mão e pediu um trocado. Respondi que não tinha dinheiro e ela respondeu com uma expressão de desprezo que ficou marcada na minha memória até hoje. Lembro do olhar dela me acusando de mentir descaradamente. Aquele rosto ficou me assombrando o dia todo.

Foi com medo que eu vi ela caminhando na minha direção no dia seguinte, no mesmo ponto de ônibus. Achei que eu ia ouvir alguns impropérios se dissesse que não tinha trocado. Saquei rapidamente algumas moedas do bolso e entreguei assim que vi a sua mão subindo na minha direção. Fiquei esperando um sorriso, ou um obrigada, mas recebi a mesma careta de desprezo do dia anterior. Minha primeira reação foi ficar indignada. Depois, com o passar do dia, minha indignação virou curiosidade. Por que teria ela tido a mesma reação que teve no dia anterior? Será que ela sentia raiva de nós, pessoas com dinheiro, com uma casa para morar, e com um emprego (ou, no meu caso, uma faculdade) para nos manter ocupados?

No terceiro dia, no mesmo ponto de ônibus, resolvi fazer um experimento. Esperei de novo ela vir na minha direção e, como no primeiro dia, recusei a esmola. A reação foi como no primeiro dia. A partir daí, continuei experimentando. Tentei falar que tinha dado dinheiro para ela no dia anterior. Tentei oferecer um café da manhã na padaria da esquina. Dei uma moeda de 10 centavos e uma nota relativamente alta (aos menos para meus padrões de estudante). E a reação era sempre a mesma. Cara de desprezo.

Comecei a perceber também que além da reação ser sempre a mesma, ela não parecia ter qualquer lembrança das nossas interações. Eu estava, a essa altura, interagindo com essa mulher todos os dias da semana e não havia qualquer sinal de familiaridade. Pelo contrário, o modo como ela se dirigia a todas as pessoas no mesmo ponto de ônibus era absolutamente idêntico ao modo como ela se dirigia a mim. Comecei a suspeitar de algum tipo de distúrbio mental.

As suspeitas se confirmaram quando descobri onde ela “morava”. Ao fim do dia, depois de perambular pelos pontos de ônibus do quarteirão, a mulher se recolhia em um ponto específico da rua onde ficava meu prédio. Era uma rua pequena, que ocupava apenas um quarteirão. Ali ficavam seus pertences: um cobertor, uma trouxa de roupas, e uma vassoura. Ao retornar ao seu ponto, ela se comportava como se estivesse em casa. Varria o chão, arrumava suas coisas, e conversava com alguém. Às vezes ela gritava, como se tivesse chegado em casa irritada, depois de um dia duro no trabalho, para descobrir que quem quer que fosse que morasse com ela não tinha feito algo que ela esperava, como lavar a louça. Agora eu tinha certeza que tratava-se de algum tipo de distúrbio mental.

Todas as vezes que volto ao Brasil, me surpreendo ao encontrá-la no mesmo lugar. A única coisa que parece ter mudado é que ela “sai de casa” mais tarde e “volta pra casa” mais cedo. Talvez a idade esteja pesando. Ainda assim, continua um mistério como uma pessoa assim é capaz de sobreviver tantos anos na rua. Nunca vi ela comendo, por exemplo. Como é praticamente impossível que ela consiga sobreviver sem comida, imagino que deve comer em algum momento, mas não sei quando. Também acho improvável que ela não tenha problemas de saúde. De 1996 a 2010 se passaram 14 anos e eu desenvolvi vários problemas de saúde durante esses anos. Seria surpreendente se eu tivesse tido tantos problemas enquanto ela estivesse com a saúde intacta enquanto vivia na rua.

Em uma conversa com meu primo M., o mistério da saúde dos moradores de rua se esclareceu. Ele trabalha em um pronto socorro da rede pública e disse que uma grande parte dos pacientes que atende são moradores de rua. Chegam ao pronto socorro com todos os tipos de problema, que freqüentemente são vários e graves. São tratados e liberados para voltar à rua. Diz meu primo que não demoram muito a retornar ao pronto-socorro já que não seguem as prescrições médicas e raramente têm dinheiro para comprar a medicação receitada. Me pergunto se, ainda assim, esse atendimento precário e pouco efetivo não é suficiente para prolongar a vida desses pacientes. Me assustava a idéia da senhora da minha rua ter ficado 14 anos sem ver um médico. Por mais que seja um atendimento precário, fico aliviada de saber que provavelmente ela chegou a consultar um em algum momento.

Outra coisa que fiquei sabendo recentemente é que uma parte dos moradores de rua não sofre de distúrbios mentais. Do grupo “mentalmente são” há um universo vasto e variado de pessoas que acabam na rua pelas mais diversas razões. Uma reportagem da revista Piauí do mês passado entrevistou vários moradores de rua de Ipanema, no Rio. Um senhor tinha tido emprego, casa e família, mas perdeu tudo no final da década de 80 e não conseguiu se recuperar. Chorou enquanto dava a entrevista. Uma senhora tinha casa e família (filhos e netos) e morava na rua apenas de quinta a domingo, quando arrecadava cerca de 80 reais. Era o suficiente para sustentar sua família, e muito mais do que ela conseguira ganhar em todos os empregos que teve na vida. Um moleque de 15 anos morava na rua com a namorada grávida. Não lembrava quando tinha ido pra rua ou se tinha tido uma casa em algum momento da vida. Não sabia diferenciar meses ou dias da semana. Controlava a passagem do tempo apenas com os ciclos de enfeites de rua, como Natal, Páscoa e etc. Um outro, com as pernas amputadas, andava com um skate e declarou ter um barraco no morro, para onde volta quando dá vontade. Mas prefere dormir na rua a maior parte dos dias.

A reportagem da revista analisava a política do novo prefeito do Rio, Eduardo Paes. Ele anda recolhendo os moradores de rua no meio da madrugada e mandando para a Ilha do Governador, longe dos olhos da classe alta de Ipanema. O problema é que há apenas 2500 vagas em abrigos para uma população estimada de 8500 mendigos. Ou seja, as senhoras do Leblon não olham mais para mendigos nas suas calçadas, mas alguém vai olhar para eles em algum outro lugar, pois a política não está eliminando as causas de mendicância. Ou seja, é como se estivemos colocando band-aid em um melanoma.

O artigo da Piauí me fez voltar à conversa com meu primo. Ele me disse que atualmente grande parte dos pacientes que atende no pronto-socorro são viciados em crack. E a droga não só causa danos significativos para a saúde destes pacientes, mas causa também danos na parte frontal do cérebro, que é responsável pelo discernimento moral e juízo. Portanto, segundo meu primo, parte desses pacientes viraram psicopatas, ou seja, são pessoas que não tem a capacidade de reconhecer valores acolhidos pela sociedade e de discernir certo de errado. Por isso, são freqüentemente expulsos de casa e vão parar na rua.

E para quem acha que só há moradores de rua no Brasil se engana. Quando cheguei no Canadá fiquei espantada com a quantidade de mendigos na rua. Eles não morrem de frio aqui porque há albergues para todos -- ou quase todos. Mas ainda assim há muitas pessoas na rua. Alguns acabam na rua por causa de problemas mentais. Outros, porque as coisas não deram muito certo na vida. E há também os que acabam na rua por causa de drogas e álcool. Mas a minha história favorita de mendigos é a de um cara que deu a volta por cima. Depois de passar anos morando na rua por causa do álcool, Frank O'Dea saiu do fundo do poço se reergeu e fundou a maior rede de cafés do Canadá, chamada Second Cup. É a Starbucks canadense. Em uma entrevista no rádio, perguntaram pra ele como ele conseguiu sobreviver tantos anos na rua. Como ele conseguia ver a vida dele daquele jeito e não tomar uma atitude para melhorar as coisas. E a resposta dele foi: - É fácil se acomodar, em especial se você está em um lugar em que sempre tem alguém que está pior que você. Quando você vê essas pessoas, você pensa: não cheguei no fundo do poço ainda. Então está tudo bem.

Mas uma das coisas mais interessantes dos mendigos canadenses é que há muitos jovens também. Meninos e meninas de dezesseis a trinta anos, aparentemente saudáveis, ficam na rua. A primeira vez que vi esses jovens pensei que tinha problemas com drogas. Mas descobri depois que não é o caso. Muitos decidem passar um tempo na rua como "um rito de passagem" para a vida adulta. Eu achei estranho. Como a família pode deixar uma coisa dessa acontecer, sem intervir? E a resposta para essa pergunta eu encontrei em no livro de uma das minhas escritoras canadenses favoritas: Carol Shields. O livro -- chamado Unless -- é narrado pela mãe de uma menina que um dia decide morar na rua. A mãe e o pai passam o livro todo tentando convencer a menina a voltar para a faculdade e para sua vida. Mas fora a persuasão e os cuidados semanais, não havia muito que eles podiam fazer. Afinal, os jovens na América do Norte, depois dos 18 anos, são considerados adultos e não só tem que sair de casa, mas também tem que se sustentar. Portanto, eles ficam foram da esfera de proteção, mas ficam fora também de qualquer ingerência materna ou paterna. Só no final do livro a autora revela as razões para a menina ter decidido morar na rua (e dessa vez eu não vou contar o final!).

Quando eu li esse livro, muitos anos depois de sair de São Paulo, percebi que toda minha interação com a senhora que morava na minha rua tinha um propósito. Eu queria descobrir porque ela estava ali. Queria saber o que tinha motivado ela a tomar a decisão de viver sem um lar. Queria entender -- como o reporter que entrevistou Frank O'Dea -- porque ela não decidia sair dali. Eu precisava, de alguma forma, de uma explicação que fizesse um pouco de sentido. Mas diferentemente da história da Carol Shields, essa ficou sem um final...



domingo, 20 de junho de 2010

Indo e voltando do aeroporto

Cheguei no aeroporto de Guarulhos na sexta-feira a tarde e embarquei em um ônibus para Santos as 3:30pm. Cheguei em Santos quatro horas depois, as 7:30pm. No domingo, embarquei as 3pm em Santos, nesse mesmo ônibus, para voltar a esse mesmo aeroporto. Cheguei no aeroporto 4:45pm, uma hora e quarenta e cinco minutos depois.

Essas duas pequenas viagens ilustram claramente duas coisas. Uma é como o Rodoanel e a expansão da marginal não melhoraram o problema de trânsito. Outra é como os brasileiros são loucos por futebol: não tinha uma alma viva na rua durante a partida no domingo.

Eu ainda estou sem entender como que a nação se mobiliza dessa forma em função de um jogo, mas permanece deitada em berço esplêndido, roncando, quando se trata de qualquer outro assunto...

América Latina, essa ilustre desconhecida – Parte II

Depois de passar pelo Brasil, minha segunda caixinha de surpresas foi o Chile, que se parece muito pouco com um país latino americano. As diferenças visíveis são ruas limpas, uma cidade com planejamento urbano e trânsito fluindo bem. A coisa é tão organizada que os cachorros de rua esperam o sinal fechar e atravessam na faixa! Além disso, há diferenças que um turista desavisado talvez não perceba, que são aquelas conquistadas com as políticas sociais e econômicas do governo chileno. Como eu tinha falado em um post anterior, o Chile tem índices de desenvolvimento impressionantes e é atualmente o país com o maior PIB per capita e os menores indices de pobreza da América Latina.

Mas há, momentos, todavia, em que os Chilenos revelam sua latinidade. Primeiro, tem muita demonstração pública de afeto (i.e. casais de beijando na rua), também conhecida como PDA. Isso talvez passe desapercebido para os brasileiros que estão acostumados com PDA, mas é notório para estrangeiros que vêm de lugares onde as pessoas têm dificuldades de te dar um mero abraço. Também foi notório pra mim, mas não sei se é porque eu já virei estrangeira ou se é porque eu nunca me senti muito confortável com PDA….


Segundo, os taxistas dirigem feito uns loucos. Em geral, as pessoas na América Latina dirigem de maneira mais agressiva que em outros países. Mas os taxistas tem um nível especialmente alto de agressividade. Eles tiram finas de outros carros, correm como uns loucos e não hesitam em passar sinais vermelhos enquanto falam no celular. O pior é que eles fazem tudo isso ainda que você avise que não está com pressa de voltar para o hotel. Eu tinha eleito os taxistas do Peru os piores que eu já tinha encontrado, mas acho que os do Chile estão lá no alto do pódio, junto com os peruanos.


O terceiro sinal da latinidade chilena é que a copa do mundo pára o país. Eu achei que o Brasil dava tanta atenção para a copa porque nosso time é bom. Nós temos alguma razão para acreditar que vamos ganhar o mundial. Nossa seleção é mundialmente famosa e – apesar das infindáveis controvérsias sobre a escalação -- em geral um das favoritas. Ou seja, o Brasil tem uma longa tradição no futebol. Em contraste, o Chile tem um time fraco, que nem sempre se qualifica para a copa. Além disso, nas poucas copas em que eles se classificaram, conseguiram apenas perder ou empatar. Ainda assim, encontrei o mesmo fervor e a mesma paixão pela copa no Chile. A cidade pára para ver o jogo da seleção. Há telões em praças públicas. Todos estão com camisas do time, e as fachadas cheias de bandeiras chilenas. Ou seja, a paixão pela copa vem da latinidade chilena, e não das chances reais do time deles conseguir qualquer conquista efetiva.


E o mais legal da minha visita foi ver essa latinidade chilena no seu pico. Quando cheguei em Santiago no dia 10 de junho, fazia 48 anos (!) que o Chile não ganhava um jogo da copa. Mas isso mudou no dia 16 de junho. Assim que o jogo terminou, o povo tomou as ruas. A principal avenida foi fechada e pessoas com as caras pintadas com as cores da bandeira dançavam, se abraçavam e se beijavam descontroladamente. Os motoristas não ficaram pra trás. O carros ziguezagueavam pelas ruas, com pessoas penduradas nas janelas gritando a plenos pulmões. O barulho era ensurdecedor e a alegria era contagiante, como não pode deixar de ser em qualquer celebração latino americana que se preze.


Observei as comemorações da entrada do hotel, enquanto esperava o motorista que ia me levar para o aeroporto. Como o motorista estava atrasado, passei o tempo conversando com um funcionário. Perguntei se ele estava feliz com a vitória do Chile.


- Não há dinheiro no mundo que poderia ter levantado a moral do nosso país e ter feito o nosso povo reconquistar a autoconfiança e andar de novo de cabeça erguida dessa forma. Depois daquele terremoto, a gente precisava dessa vitória. E eu estou feliz porque acho que veio em boa hora.


Pensei naquela propaganda: “tem coisas na vida que não tem preço. Pra todas as outras existe mastercard”. Mas antes que tivesse tempo de fazer a piada, o funcionário emendou:


- Seu carro chegou, mi corazón.


Depois de ouvir o vocativo, conclui que por mais que o Chile alcance níveis inesperados de desenvolvimento, eles sempre vão fazer parte dessa coisa única e indescritível que é a América Latina.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

América Latina, essa ilustre desconhecida - Parte I

A América Latina é sempre uma caixinha de surpresas. O Brasil, sozinho, sempre me surpreende, mas nem sempre positivamente.

Cheguei no Brasil quando a seleção já estava na África do Sul, se preparando para o primeiro jogo. Achei impressionante como o noticiário da globo passou os primeiros 15 minutos falando sobre a rotina dos jogadores (o que eles comeram, quantas horas dormiram, se sairam ou não do hotel) para depois dedicar meros 5 minutos ao fato de que o crescimento do PIB brasileiro atingiu 9%. Um crescimento econômico deste nível não é pouca coisa: a China é um dos poucos países que atualmente consegue ter (e manter) esse nível de crescimento. E uma pergunta importante é como conseguimos chegar nesse patamar, e se será possível mantê-lo. Mas não era esse o foco do noticiário. Depois de meros 5 minutos sem oferecer qualquer informação relevante, o jornal voltou para a África do Sul e gastou mais uma quantidade valiosa de tempo com os jogadores, apesar de não se ter qualquer notícia sobre os mesmos.

Depois disso, a segunda coisa que me surpreendeu foi a excessiva preocupação com a aparência. Em especial as mulheres (mas os homens não ficam muito pra trás). Eu nunca fui muito de notar roupas e apetrechos. Ultimamente, todavia, tenho prestado mais atenção nisso. E foi com espanto que vi todas as pessoas no avião e depois na Paulista com roupas todas combinando, acessórios de última moda, com cabelos cortados e arrumados. Daí quando a pessoa abre a boca, ouve-se ou um português horrível, ou uma conversa absolutamente desinformada sobre algo completamente irrelevante. É absolutamente incrível a inversão de prioridades nesse país. Falar corretamente e conversar sobre assuntos sérios parece ser coisa de gente antipática e prepotente. Sorrir bastante, fazer piadinhas infantis e comprar roupas caras é a ordem do dia! De vez em quando, ouço algum comentário sobre como os americanos se vestem mal. Eu não me importo. Pelo menos eles conseguem ter uma conversa minimamente inteligente...
Como não frequento desfiles de moda (e para tornar tudo ainda pior, sou uma acadêmica), em geral o que a pessoa pensa me parece mais relevante do que a forma como ela está vestida.

Vale dizer que em ambos os países muitas pessoas só parecem estar preocupadas em mostrar que são classe média ou alta. A diferença é que no Brasil você mostra isso com roupas, enquanto nos EUA você mostra isso com sua sofisticação intelectual.
E não é difícil entender por que. Qualquer um consegue comprar roupas caras no país do consumo, onde o crédito é abundante e o sistema financeiro tem o maior prazer de acolher a todos sem discriminação (desde que gerem lucros!). No Brasil, apesar da recente inclusão das classes D e E na economia (graças ao fim da inflação e à maior oferta de crédito), os pobres ainda estão usando as benesses do capitalismo para comprar fogões, geladeiras e TV. Portanto, a classe média ainda consegue se diferenciar com roupas e carros. Além disso, em um país onde corrupção rola solta, dinheiro é poder, infelizmente. Portanto, mostrar que você tem dinheiro ainda ganha mais pontos nesse meu Brasil brasileiro.

Por fim, o Brasil me impressionou pela quantidade de obras públicas. Na minha última visita, estavam terminando a expansão da marginal. Agora a bola da vez é o Rodoanel. O trânsito de São Paulo continua parado, e eu não vi qualquer melhora, apesar das grandiosas e vistosas obras do governo do estado. Por que? Acho que uma boa explicação foi uma pesquisa que eu vi na conferência em Yale. A pesquisa mostrava que em países com altos índices de corrupção, há muitas obras de infraestrutura e poucas políticas públicas. Isso ocorre porque não há incentivos para se resolver o problema, mas sim para beneficiar alguns poderosos (como as empreiteiras) para conseguir apoio político, em geral financeiro, para as próximas eleições. Além dos políticos embolsarem um tiquinho também. E bem ou mal o eleitorado vê a obra e acha que alguma coisa foi feita. Ou seja, se eles tivessem gastado metade do que gastaram com a expansão da marginal com uma equipe de especialistas, hoje provavelmente teríamos um plano para resolver o problema de transporte em São Paulo cujo resultado teria sido mais efetivo. Porém isso não dá ibope, nem dinheiro para campanha...

Ainda sobre o trânsito em São Paulo, acho que também não ajuda nada o fato de que a classe média e alta faz questão de andar de carro. Carro é símbolo de status. Portanto, política que desafoga o trânsito ganha apoio desse povo. Todavia, política que melhora o transporte público não tem ibope junto às classes mais abonadas, que querem se diferenciar das classes D e E. Essa atitude também não ajuda muito.

E assim vai o Brasil, se afundando cada vez mais nesse buraco que eles mesmo estão cavando pra se enterrar. E quando eu achei que já tinham cavado o mais fundo possível, eu chego aqui para descobrir que infelizmente eu estava errada...

domingo, 6 de junho de 2010

Um Aniversário Acadêmico

Recebi um convite para apresentar um dos meus papers em uma conferência em Yale no dia do meu aniversário. Quando eu recebi o convite, pensei que para qualquer pessoa normal um convite desses não ia ser bem recebido. Afinal, quem quer ficar trancado em uma sala com acadêmicos discutindo papers no seu aniversário? Para mim, todavia, o convite foi um presente. E eu explico porque.

A conferência é um encontro anual de pessoas que trabalham com uma metodologia de pesquisa chamada Direito e Economia (“Law and Economics”). Essa metodologia importa conceitos e métodos de análise da economia para tentar explicar fenômenos jurídicos. Por exemplo, o Direito e Economia afirma que as pessoas violarão a lei com maior frequência se os benefícios da violação forem maiores que seus custos. Esses custos são calculados pela sanção, multiplicada pela probabilidade de ser sancionado. Traduzindo: é mais provável que um motorista cruze um sinal vermelho se a multa for 5 reais, do que se a multa for 5.000 reais. Todavia, se a chance de ser multado for inexistente (probabilidade zero), o valor da multa não faz a menor diferença, pois violar a lei não tem qualquer custo e pode gerar benefícios (chegar mais cedo em casa, evitar assaltos, etc). Nesse caso, é muito provável que os motoristas cruzem o sinal vermelho.

Uma das discussões que tivemos na conferência, à luz desse pressuposto, é o fato de que a legislação anti-corrupção em muitos países não tem sanções proporcionais ao benefício obtido pelo oficial corrupto. Qual o resultado? As sanções que existem coibem corrupção para pequenas quantias, mas as pessoas continuam a se apropriar indevidamente dos recursos fiscais do estado em grandes quantias. Devemos concluir, portanto, que aumentar a pena reduziria os níveis de corrupção? Não necessariamente, pois a efetividade da solução depende da probabilidade da pessoa ser descoberta e punida, o que é baixa em muitos países. Devemos concluir portanto que os países como o Brasil deveriam investir mais na polícia e orgãos de investigação para garantir que violadores da lei sejam punidos? Não necessariamente. Monitorar e punir as pessoas é custoso, e talvez o estado deva fazer uma análise de custo-benefício antes de investir mais recursos para garantir a efetividade da aplicação da lei. Por que? Porque pode ser que o estado acabe gastando mais dinheiro com essas punições do que o dinheiro que estaria perdendo deixando agentes corruptos passarem incólumes. Portanto, antes de aumentar penas ou investir mais em operações especiais da polícia federal precisamos ver se esse é de fato o melhor uso dos recursos públicos.

Essa e outras discussões interessantíssimas foram os tópicos dos papers que discutimos nos dois dias de conferência. Mas além dos papers a conferência também houve três jantares deliciosos, em restaurantes de primeira, com conversas informais tão interessantes quanto os papers. Um exemplo: sentei do lado de um professor de uma universidade Americana que estava indo para o Brasil nos próximos meses. Ele me fez várias perguntas sobre o Brasil no jantar e, em um determinado ponto, chegamos no plebiscito de 1992. Expliquei para ele que os brasileiros tiveram que escolher entre três opções: monarquia parlamentarista, república parlamentarista, ou república presidencialista. Ele ficou estupefado com a idéia de um país pudesse estar seriamente contemplando a possibilidade de virar uma monarquia em pleno século XX. Ele perguntou quais eram os argumentos para oferecer essa opção no plebiscito. Falei que eu era pequena naquela época, e provavelmente não tinha nenhum tipo de sofisticação intelectual para entender os debates. Mas eu lembro que várias pessoas diziam que se nós já estamos sustentando a família real, é melhor colocar eles pra trabalhar. Ele riu e falou: " Se vocês não querem mais sustentar a família real a solução é simples: parem de sustentar a família real. Vocês não precisam mudar todo o regime político do país pra resolver esse problema".

Isso nos levou a tentar imaginar por que razão a monarquia foi incluida no plebiscito. A hipótese mais interessante saiu a seguinte conversa. Ele perguntou se o Brasil era presidencialista porque o presidencialismo venceu o plebiscito. Eu disse que sim. Daí ele me perguntou se muitas pessoas tinha votado para monarquia. Eu falei que não lembrava os percentuais, mas tinha sido um número significativo e surpreendentemente alto para um plebiscito no século XX. Daí ele perguntou se havia alguma possibilidade das pessoas terem inserido a opção monarquia parlamentarista apenas para garantir que o presidencialismo venceria. Como assim? Perguntei. Ele explicou: se as escolhas fosse apenas duas, presidencialismo ou parlamentarismo, por exemplo, talvez o parlamentarismo ganhasse porque 60% das pessoas preferiam parlamentarismo e apenas 40% escolheriam presidencialismo. Todavia, ao inserir uma terceira opção (monarquia), que também era parlamentarista, o pessoal que desenhou o plebiscito pode ter dividido os votos parlamentaristas. Por exemplo, se 21% votou para monarquia, e 39% votou para republica parlamentarista, o presidencialismo pode ter ganhado com 40% simplesmente porque a maioria parlamentarista estava dividida. Achei a hipótese interessante e preciso ver o percentual e depois ver se alguém já investigou isso. Mas mais do que especular sobre a história política do Brasil, o propósito d a história é mostrar como toda a conferência foi uma série de coisas intelectualmente estimulantes, do início ao fim.

Ainda assim, eu imagino que pessoas normais provavelmente iam preferir não passar o dia do aniversário delas trancada numa sala com acadêmicos discutindo corrupção. E acho que parte da explicação pra isso pode ser encontrada em um conceito econômico interessante chamado custo de oportunidade. Qualquer coisa que as pessoas fazem tem um custos: por exemplo, ir até a conferência implica custos de transporte. Mas ainda que as pessoas que te convidaram cubram esses custos (como normalmente acontece), ir para conferência tem um custo de oportunidade, que é o custo de deixar de fazer algo que eu teria oportunidade de fazer caso não tivesse ido para a conferência. Portanto, imagino que para a maioria das pessoas ir para a conferência implica altos custos de oportunidade, pois elas conseguem imaginar várias outras coisas que elas prefeririam fazer, ao invés de ficar trancadas em uma sala das 9 da manhã as 6 da tarde discutindo “direito e economia”. Algumas pessoas iam preferir dormir até tarde, outras iam preferir passar o dia na praia, outras iam preferir virar a noite anterior se embebedando em uma boate, dançando até o sol nascer. Portanto, para elas o custo de oportunidade de ficar na conferência seria altíssimo. Em contraste, a probabilidade de eu preferir (ou de fato tentar) fazer qualquer uma dessas coisas é minima. Portanto, ir para a conferência teve um custo de oportunidade quase zero, e gerou muitos benefícios pra mim. Por isso foi um presente!