Foi com medo que eu vi ela caminhando na minha direção no dia seguinte, no mesmo ponto de ônibus. Achei que eu ia ouvir alguns impropérios se dissesse que não tinha trocado. Saquei rapidamente algumas moedas do bolso e entreguei assim que vi a sua mão subindo na minha direção. Fiquei esperando um sorriso, ou um obrigada, mas recebi a mesma careta de desprezo do dia anterior. Minha primeira reação foi ficar indignada. Depois, com o passar do dia, minha indignação virou curiosidade. Por que teria ela tido a mesma reação que teve no dia anterior? Será que ela sentia raiva de nós, pessoas com dinheiro, com uma casa para morar, e com um emprego (ou, no meu caso, uma faculdade) para nos manter ocupados?
No terceiro dia, no mesmo ponto de ônibus, resolvi fazer um experimento. Esperei de novo ela vir na minha direção e, como no primeiro dia, recusei a esmola. A reação foi como no primeiro dia. A partir daí, continuei experimentando. Tentei falar que tinha dado dinheiro para ela no dia anterior. Tentei oferecer um café da manhã na padaria da esquina. Dei uma moeda de 10 centavos e uma nota relativamente alta (aos menos para meus padrões de estudante). E a reação era sempre a mesma. Cara de desprezo.
Comecei a perceber também que além da reação ser sempre a mesma, ela não parecia ter qualquer lembrança das nossas interações. Eu estava, a essa altura, interagindo com essa mulher todos os dias da semana e não havia qualquer sinal de familiaridade. Pelo contrário, o modo como ela se dirigia a todas as pessoas no mesmo ponto de ônibus era absolutamente idêntico ao modo como ela se dirigia a mim. Comecei a suspeitar de algum tipo de distúrbio mental.
As suspeitas se confirmaram quando descobri onde ela “morava”. Ao fim do dia, depois de perambular pelos pontos de ônibus do quarteirão, a mulher se recolhia em um ponto específico da rua onde ficava meu prédio. Era uma rua pequena, que ocupava apenas um quarteirão. Ali ficavam seus pertences: um cobertor, uma trouxa de roupas, e uma vassoura. Ao retornar ao seu ponto, ela se comportava como se estivesse em casa. Varria o chão, arrumava suas coisas, e conversava com alguém. Às vezes ela gritava, como se tivesse chegado em casa irritada, depois de um dia duro no trabalho, para descobrir que quem quer que fosse que morasse com ela não tinha feito algo que ela esperava, como lavar a louça. Agora eu tinha certeza que tratava-se de algum tipo de distúrbio mental.
Todas as vezes que volto ao Brasil, me surpreendo ao encontrá-la no mesmo lugar. A única coisa que parece ter mudado é que ela “sai de casa” mais tarde e “volta pra casa” mais cedo. Talvez a idade esteja pesando. Ainda assim, continua um mistério como uma pessoa assim é capaz de sobreviver tantos anos na rua. Nunca vi ela comendo, por exemplo. Como é praticamente impossível que ela consiga sobreviver sem comida, imagino que deve comer em algum momento, mas não sei quando. Também acho improvável que ela não tenha problemas de saúde. De 1996 a 2010 se passaram 14 anos e eu desenvolvi vários problemas de saúde durante esses anos. Seria surpreendente se eu tivesse tido tantos problemas enquanto ela estivesse com a saúde intacta enquanto vivia na rua.
Em uma conversa com meu primo M., o mistério da saúde dos moradores de rua se esclareceu. Ele trabalha em um pronto socorro da rede pública e disse que uma grande parte dos pacientes que atende são moradores de rua. Chegam ao pronto socorro com todos os tipos de problema, que freqüentemente são vários e graves. São tratados e liberados para voltar à rua. Diz meu primo que não demoram muito a retornar ao pronto-socorro já que não seguem as prescrições médicas e raramente têm dinheiro para comprar a medicação receitada. Me pergunto se, ainda assim, esse atendimento precário e pouco efetivo não é suficiente para prolongar a vida desses pacientes. Me assustava a idéia da senhora da minha rua ter ficado 14 anos sem ver um médico. Por mais que seja um atendimento precário, fico aliviada de saber que provavelmente ela chegou a consultar um em algum momento.
Outra coisa que fiquei sabendo recentemente é que uma parte dos moradores de rua não sofre de distúrbios mentais. Do grupo “mentalmente são” há um universo vasto e variado de pessoas que acabam na rua pelas mais diversas razões. Uma reportagem da revista Piauí do mês passado entrevistou vários moradores de rua de Ipanema, no Rio. Um senhor tinha tido emprego, casa e família, mas perdeu tudo no final da década de 80 e não conseguiu se recuperar. Chorou enquanto dava a entrevista. Uma senhora tinha casa e família (filhos e netos) e morava na rua apenas de quinta a domingo, quando arrecadava cerca de 80 reais. Era o suficiente para sustentar sua família, e muito mais do que ela conseguira ganhar em todos os empregos que teve na vida. Um moleque de 15 anos morava na rua com a namorada grávida. Não lembrava quando tinha ido pra rua ou se tinha tido uma casa em algum momento da vida. Não sabia diferenciar meses ou dias da semana. Controlava a passagem do tempo apenas com os ciclos de enfeites de rua, como Natal, Páscoa e etc. Um outro, com as pernas amputadas, andava com um skate e declarou ter um barraco no morro, para onde volta quando dá vontade. Mas prefere dormir na rua a maior parte dos dias.
A reportagem da revista analisava a política do novo prefeito do Rio, Eduardo Paes. Ele anda recolhendo os moradores de rua no meio da madrugada e mandando para a Ilha do Governador, longe dos olhos da classe alta de Ipanema. O problema é que há apenas 2500 vagas em abrigos para uma população estimada de 8500 mendigos. Ou seja, as senhoras do Leblon não olham mais para mendigos nas suas calçadas, mas alguém vai olhar para eles em algum outro lugar, pois a política não está eliminando as causas de mendicância. Ou seja, é como se estivemos colocando band-aid em um melanoma.
O artigo da Piauí me fez voltar à conversa com meu primo. Ele me disse que atualmente grande parte dos pacientes que atende no pronto-socorro são viciados em crack. E a droga não só causa danos significativos para a saúde destes pacientes, mas causa também danos na parte frontal do cérebro, que é responsável pelo discernimento moral e juízo. Portanto, segundo meu primo, parte desses pacientes viraram psicopatas, ou seja, são pessoas que não tem a capacidade de reconhecer valores acolhidos pela sociedade e de discernir certo de errado. Por isso, são freqüentemente expulsos de casa e vão parar na rua.
E para quem acha que só há moradores de rua no Brasil se engana. Quando cheguei no Canadá fiquei espantada com a quantidade de mendigos na rua. Eles não morrem de frio aqui porque há albergues para todos -- ou quase todos. Mas ainda assim há muitas pessoas na rua. Alguns acabam na rua por causa de problemas mentais. Outros, porque as coisas não deram muito certo na vida. E há também os que acabam na rua por causa de drogas e álcool. Mas a minha história favorita de mendigos é a de um cara que deu a volta por cima. Depois de passar anos morando na rua por causa do álcool, Frank O'Dea saiu do fundo do poço se reergeu e fundou a maior rede de cafés do Canadá, chamada Second Cup. É a Starbucks canadense. Em uma entrevista no rádio, perguntaram pra ele como ele conseguiu sobreviver tantos anos na rua. Como ele conseguia ver a vida dele daquele jeito e não tomar uma atitude para melhorar as coisas. E a resposta dele foi: - É fácil se acomodar, em especial se você está em um lugar em que sempre tem alguém que está pior que você. Quando você vê essas pessoas, você pensa: não cheguei no fundo do poço ainda. Então está tudo bem.
Mas uma das coisas mais interessantes dos mendigos canadenses é que há muitos jovens também. Meninos e meninas de dezesseis a trinta anos, aparentemente saudáveis, ficam na rua. A primeira vez que vi esses jovens pensei que tinha problemas com drogas. Mas descobri depois que não é o caso. Muitos decidem passar um tempo na rua como "um rito de passagem" para a vida adulta. Eu achei estranho. Como a família pode deixar uma coisa dessa acontecer, sem intervir? E a resposta para essa pergunta eu encontrei em no livro de uma das minhas escritoras canadenses favoritas: Carol Shields. O livro -- chamado Unless -- é narrado pela mãe de uma menina que um dia decide morar na rua. A mãe e o pai passam o livro todo tentando convencer a menina a voltar para a faculdade e para sua vida. Mas fora a persuasão e os cuidados semanais, não havia muito que eles podiam fazer. Afinal, os jovens na América do Norte, depois dos 18 anos, são considerados adultos e não só tem que sair de casa, mas também tem que se sustentar. Portanto, eles ficam foram da esfera de proteção, mas ficam fora também de qualquer ingerência materna ou paterna. Só no final do livro a autora revela as razões para a menina ter decidido morar na rua (e dessa vez eu não vou contar o final!).
Quando eu li esse livro, muitos anos depois de sair de São Paulo, percebi que toda minha interação com a senhora que morava na minha rua tinha um propósito. Eu queria descobrir porque ela estava ali. Queria saber o que tinha motivado ela a tomar a decisão de viver sem um lar. Queria entender -- como o reporter que entrevistou Frank O'Dea -- porque ela não decidia sair dali. Eu precisava, de alguma forma, de uma explicação que fizesse um pouco de sentido. Mas diferentemente da história da Carol Shields, essa ficou sem um final...
Um comentário:
Oi Mariana:
A moradora de rua da Fausto Ferraz tem alguma noção das coisas, pq sempre vai para o ponto de ônibus nos horários de pico.Sofre porém de algum
problema mental, pq sempre que está de pé, conversa e gesticula para alguém menor que ela ( talvez uma criança).Deve se alimentar bem, visto
que suas coisas ficam ao lado do Restaurante Fausto...
Como sobrevive até hoje, não sei. Caso para tese ! Quem se habilita?
Beijos
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