quinta-feira, 8 de março de 2012

O neurótico é um péssimo economista

Para alegria do povo e felicidade geral dos colaboradores e leitores desse blog, o Antônio se redimiu. Estamos agora eu, ele e minha irmã em busca da cura para a culpa cristã (vide meu post anterior). Espero que vcs se deliciem com o texto tanto quanto eu!

ANTONIO PRATA

Inveja dos finlandeses

Entro no bar, a vejo, vejo que ela me vê -e, durante o longo segundo que dura o resvalar de nossas pupilas, vivo aquele microdilema da vida social: vou até lá e dou oi ou abaixo a vista e finjo que não a reconheci?

Não lembro seu nome. Marcela? Margarida? Maristela, talvez. Faz uns dez anos, namorou um conhecido meu. Naquela época, dividimos a mesa duas ou três vezes, trocamos algumas frases -nunca os telefones-, mas ela sabe quem eu sou, eu sei quem ela é, e isso é razão suficiente para que eu tenha que dar oi. Ou não?

Ah, ser brasileiro dá um trabalho! Aposto que um finlandês de seis anos já sabe exatamente quem precisa cumprimentar, diante de quem pode passar reto, qual o grau de proximidade que permite apenas um tchauzinho, de longe.

Aqui, contudo, estamos sempre tropeçando nos cadarços desamarrados de nossa cordialidade. Um tchauzinho de longe é quase um insulto. Um oi deve necessariamente ser seguido por uma conversinha sobre o tempo, lamentos sobre o longo intervalo desde o último encontro, uma breve entrevista acerca dos parentes, cônjuges, amantes, amigos, inimigos, o cachorro e o papagaio, promessas de nos vermos mais, um convite para o almoço semana que vem, quem sabe restabelecer aquele futebol das terças, fundar uma revista literária ou voltar pra Caraiva; ah, 1997, aquilo sim é que foi Réveillon!

A brasilidade não admite meios tons: ou se é ou não se é, e com todo o peso de nossa desfraldada sociabilidade sobre minhas cansadas retinas, decido não ser; as volto para o chão, dou uma coçada na barriga, simulo grande interesse no piso, passo reto e sento no fundo do bar.

A culpa, contudo, é como uma espinha na bunda: espeta assim que botamos as nádegas na cadeira, e como o neurótico é um péssimo economista, que prefere pagar dez de juros aos cinco da dívida, tenho a ideia de jerico de ir até a garota -não apenas para dar oi, mas pedir desculpas e explicar que passei reto pois não a reconheci.

Mal termino de cumprimentá-la, vejo em seus olhos o brilho opaco do horror. Claro, ela tampouco pretendia me dar oi -e se um olá de passagem já seria trabalhoso, o que dizer dessa missão diplomática de Brancaleone?

O que se segue é uma cena de cartoon, os dois fugindo do silêncio como personagens subindo uma escada a desmilinguir-se: falamos sobre o tempo -"O dia mais quente em março, desde 1943!"-, sobre "o pessoal" -"A Ju? Agora, assim, não tô lembrando..."-, ela me diz que vai para o interior, na Páscoa- "Nossa, Páscoa, já? O ano voa!"- e que sua filha, Gabriela, vai ficar com a mãe. Empenhados em alimentar o papo, apressado e chocho como uma fogueira de jornais, não deixamos pausa para uma retirada. Estamos num labirinto, afundando na areia movediça da afabilidade e é ao me ouvir elogiando a qualidade das estradas paulistas que me dou conta: é tarde demais, jamais conseguirei romper aquele laço, estou condenado a continuar a conversa para sempre, adotar a tal Gabriela, aceitar a nova sogra, ir pro interior na Páscoa, conhecer a Ju -e torcer para que, até lá, eu lembre o nome daquela mulher. Marcela? Margarida? Maristela, talvez.

Às vezes, tenho inveja dos finlandeses.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Quando a maré não está pra peixe...

Há uns dois anos, recebemos a visita de um ilustre professor australiano que veio dar um curso aqui em Toronto. Eu fui encarregada de ciceronear o sujeito e estava a caminho do escritório dele, para ver se ele precisava de alguma coisa, quando encontrei ele saindo da faculdade. Era quarta-feira, 3 da tarde. 

- Está tudo bem? Perguntei.
- Sim. Tá tudo ótimo. Só estou muito improdutivo agora. Então vou dar uma volta. Acho que vou no cinema. 
- No cinema????

Acho que o tom da minha pergunta revelou meu espanto. Nunca tinha visto nenhum dos meus colegas sair da faculdade no meio da tarde para ir ao cinema. Tá certo que nosso emprego não tem chefe, nem ponto, nem horário. Desde que você faça suas pesquisas, publique seus artigos e dê as aulas, ninguém quer saber se você está no seu escritório, no cinema ou onde quer que seja. Mas o fato é que a maioria dos meus colegas está no escritório das 9 as 5pm de segunda a sexta, assim como eu. E vários de nós ficamos até tarde, quando temos que terminar algo. 

Sair no meio da tarde para ir ao cinema, portanto, parecia um ato de rebeldia. E a justificativa tornava a coisa ainda mais enigmática pra mim. Apesar de ter abandonado a religião católica, a culpa ainda está arraigada dentro de mim como uma praga. Todas as tentativas de arrancá-la foram em vão. Portanto, a idéia de me divertir na quarta a tarde, ao invés de me trancar no meu escritório como penitência pela minha improdutividade, contraria muitos valores enterrados lá no fundo do meu ser. Acho que minha cara revelou minha desaprovação e meu espanto.  

Dada minha reação, o visitante se sentiu compelido a se explicar:

- Se eu ficar aqui, vou demorar três ou quatro horas pra fazer algo que eu demoraria uma hora pra fazer. Então vou relaxar e amanhã eu faço isso em 1/3 do tempo que precisaria hoje. 

Há momentos na vida em que é melhor não discutir. Como diz meu outro primo, "tá feliz? deixa". Deixei o cara ir ser feliz no cinema e fui lidar com minha culpa cristã no meu escritório. Mas a coisa não saia da minha cabeça. A idéia de que alguém pudesse viver assim, tão livre de amarras virou um enigma a ser desvendado. 

Uma semana depois, durante um almoço, achei que tinha achado a solução para o enigma: o cara era surfista. Surfava regularmente, viajava para vários lugares do mundo pra surfar, etc. "É isso!", pensei. O cara não é o tradicional professor de direito. Ele, na verdade, é um surfista que ganha a vida como professor de direito. Por isso que ele tem esse desprendimento e consegue sair do escrtório no meio da tarde, com a desculpa de que ele não está sendo tão produtivo quanto poderia. "Típico pensamento de surfista! Aposto que fuma umas também...", pensei. Depois desse almoço, considerei o mistério resolvido e não pensei mais no assunto.

Isso aconteceu há uns dois anos. Na semana passada, todavia, descobri que eu estava totalmente errada. Estou lendo um livro chamado "Thinking Fast, Thinking Slow" de um pesquisador que ganhou o prêmio Nobel de economia, por descobrir como nosso cérebro funciona. No livro, ele discute o exemplo dos taxistas na cidade de Nova Iorque. Diz ele que os taxistas tem uma meta de renda diária. Portanto, quando está chovendo muito eles conseguem pegar passageiros com facilidade e vão pra casa mais cedo. Em contrapartida, quando o tempo está bom, eles precisam trabalhar longas horas para conseguir atingir a meta diária de renda. O livro mostra como nosso cérebro nos convence a fazer isso, e mostra como essa é uma alocação totalmente ineficiente de recursos. 

O cálculo seria mais ou menos o seguinte: um taxista quer ganhar $100 por dia. Em geral, ele consegue $100 trabalhando 8 horas. Nos dias de chuva, todavia, ele consegue $100 trabalhando 4 horas. Nos dias de sol, em contraste, ele consegue $100 trabalhando 12 horas. Segundo a pesquisa, os taxistas fazem o seguinte:


Dia 1 (sol): $100 por 12 horas de trabalho
Dia 2 (chuva): $100 por 4 horas de trabalho
Total em dois dias: $200 por 16 horas de trabalho


Em contraste, se o visitante surfista estivesse dirigindo o táxi, ele iria fazer o seguinte:


Dia 1 (sol): $0 por zero horas de trabalho
Dia 2 (chuva): $200 por 8 horas de trabalho
Total em dois dias: $200 por 8 horas de trabalho (e um cineminha no dia improdutivo...)


Ou seja, a decisão do surfista era totalmente racional e economicamente eficiente. Não tinha nada a ver com irresponsabilidade, desprendimento, ou qualquer outro poder metafísico que é apenas dado as pessoas que aprendem a surfar. É um simples cálculo para alocação racional e eficiente de recursos. 


Decidi, portanto, adotar a filosofia surfista na minha vida. Agora estou esperando chegar na parte do livro em que o prêmio Nobel explica como a gente se livra da culpa cristã, que é a única coisa que no momento me mantém presa ao escritório as 3 da tarde de uma quarta-feira...

quinta-feira, 1 de março de 2012

Ah, se eu te pego, Antônio!

Depois da minha declaração de amor ao Antônio Prata, quero matar o sujeito. Estou aqui, na maior correria, sem tempo para respirar, fazendo um esforço pra preservar meu precioso sono e obviamente sem tempo para escrever no blog (como vocês devem ter notado). Apesar disso, reservo um momento semanalmente para ler o Antônio. Sempre alegra meu dia. Quando ele está inspirado, alegra minha semana toda. Mas essa semana, o Antônio me deixou na mão. Escreveu uma droga de uma crônica que transcrevo abaixo.  

Crônica decepcionante para uma fã estressada que estava aguardando ansiosamente a leitura? Imperdoável. Um amigo, poeta, ainda tentou defender o sujeito. Disse que ninguém acerta toda vez. Em especial quando se escreve semanalmente. Trouxe como exemplo as crônicas do João Ubaldo no Estadão. Ainda assim, não perdoei o Patrinha (apelido carinhosamente dado a ele pelo meu primo). Erra a mão qualquer outro dia, meu amigo. Mas essa semana, não!

Dada a gravidade do assunto, resolvi declarar guerra. Segue aqui minha respota à coluna da semana anterior, na qual o tal do Patrinha, muito jocosamente, tira um sarro do pessoal que se recusa a ouvir recados no celular e pede para as pessoas não gravarem mensagens. Diz ele que a moda pegou, graças a crença de todos de que estão tão ocupados, com tarefas tão importantes, que sequer sobra tempo para pegar um mero recado. Não se trata disso, meu amigo. Ninguém está em busca de eficiência e bom uso do tempo. O pessoal está em busca de paz. 


Há tempos que eu eliminei o telefone da minha vida. Primero, só tenho celular. Não tenho telefone em casa. E não dou meu número para ninguém, exceto para as pessoas que sabem que não devem ligar a não ser em caso de emergência. Semana passada, um amigo com quem encontro quase toda semana brincou comigo, falando que até hoje não tem meu telefone. Eu disse que não gostava que as pessoas me ligassem. Ele disse que notou isso no dia que a gente se conheceu, pois ele me passou o telefone dele e eu dei meu email, acrescentando: - esse é o jeito mais fácil de entrar em contato comigo. 


Anti-social? Não. Sou anti-caroneiros (free-riders em inglês). As pessoas tendem a achar que seu ouvido e seu tempo livre estão à completa disposição delas. E daí tomam carona no seu tempo, sem seu consentimento. E o telefone, infelizmente, é uma tecnologia que tornou essa -- falsa -- crença em uma realidade dolorida. As pessoas ligam e perguntam o que você está fazendo. Se a resposta é: "- nada, estava lendo uma revista no sofá", elas se sentem na liberdade de engatar em uma conversa contigo. O pressuposto é sempre que a não ser que você esteja ocupada, você quer falar com a pessoa -- nunca o contrário. Mas a verdade, ao menos para mim, é sempre o contrário: eu não quero falar com as pessoas, em especial quando aproveitando meu tempo livre!

O problema todo é que a gente criou regras sociais em que não é aceitável você virar pra pessoa e falar: - "Eu prefiro continuar a ler a minha revista, cujas reportagens são infinitamente mais interessantes do que seus problemas pessoais. Com licença." Resultado? Angústia. Milhares de pessoas, permaneciam lá, presas naquela ligação, sem poder usufruir de suas revistas, do sofá, ou do silêncio, por causas desses pentelhos que usam e abusam da maravilha tecnológica que é a telefonia. Por causa disso, alguém inventou a secretária eletrônica. Bem me lembro do dia no qual eu pude, sentada no sofá, lendo minha revista, ficar apenas esperando o recado, ver quem estava ligando, e decidir se eu queria falar com a pessoa ou não. Um maravilhoso mundo novo -- um mundo cheio de paz e liberdade -- se abriu com as secretárias eletrônicas. 


A liberdade recém adquirida com essa maquininhas parecia não ter mais fim, até chegarem os celulares. E aqui é que está o cerne do problema. Quando as mensagem ficam na sua casa, você liga de volta quando der (leia-se, quando você quiser). As desculpas são as mais variadas: estava viajando, passei o dia fora, cheguei em casa e não vi a luzinha piscando, etc. O problema é que com o celular não dá pra escapar. A pessoa espera que você ligue de volta. E ligue logo. E ela sabe que você vai ver que tem um recado e vai ouvi-lo. E daí você está perdido, de novo. Voltamos, portando, à prisão que existia no momento pré-secretária eletrônica. Exceto que agora esse pentelhos te acham mesmo quando você não está em casa. Não há local onde você esteja salvo. O momento de ler a revista no sofá talvez possa até ser preservado, por uma hora ou duas, mas nada mais que isso. 

Portanto, acho muito natural que as pessoas estejam tentando fugir disso com o pedido de não deixarem recados. Sim. Mensagens de texto não exigem resposta tão pronta, e facilitam escapatórias, pois tornam as desculpas esfarrapadas menos gaguejantes. Mais importante: as mensagens de texto (e os emails, no meu caso) preservam intacta todas essa nossa hipocrisia. Afinal, ninguém quer sair por aí falando diretamente na cara dos outros "não quero falar contigo, cai fora!". Então, continuamos a procurar maneiras diplomáticas de fazê-lo. A mensagem de texto hoje é a secretária eletrônica de ontem. 

Portanto, se liga, Pratinha: o pessoal só não quer que você fique enchendo o saco. Em vez de ficar ligando para as pessoas e perdendo tempo no telefone, você devia mesmo é trabalhar mais tempo nas crônicas pra não escrever de novo um desastre, como o dessa semana. Fica a dica. 

***






Antonio Prata
Plano

Juntar dinheiro; montar um bunker; roubar exemplares de Hamlet e, neles, inserir a frase 'Ai, se eu te pego...'
Descobrir qual é a atividade profissional mais bem remunerada. Fazer cursinho. Prestar vestibular para a área. Ser o primeiro da classe. Arrumar um emprego. Ralar, sem pensar em outra coisa, até juntar 20 milhões de dólares. Pedir demissão.

Comprar um sítio em Jundiaí. Construir um galpão subterrâneo. Adquirir as mais modernas impressoras industriais. Contratar excelentes artistas e produtores gráficos. Instalá-los no bunker.
Descobrir quais são os dez países em que mais se estuda e se monta peças de Shakespeare. Contratar quadrilhas especializadas em roubo nos dez países. Surrupiar das bibliotecas públicas e privadas, lenta e discretamente, o maior número possível de edições de Hamlet. Mandá-las para Jundiaí.

Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, do couro da capa ao amarelo das páginas, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Devolver as edições adulteradas às bibliotecas. Queimar as originais.

Comprar anônima e paulatinamente, nos sebos destes mesmos países, todas as edições de Hamlet que se puder encontrar. Mandá-las para Jundiaí.

Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, dos furos das traças às manchas de café, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Doar as obras adulteradas aos mesmos sebos em que foram compradas. Queimar as edições originais.

Comprar o silêncio das quadrilhas e dos artistas gráficos. Se preciso for, pagar mais às quadrilhas para matar os artistas gráficos e, depois, exterminar as quadrilhas.

Contratar hackers para adulterar as versões on-line de Hamlet e incluírem a frase "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!", no final do segundo ato. Comprar o silêncio dos hackers. Se preciso for, matar os hackers.

Sequestrar o crítico literário Harold Bloom. Mandá-lo para Jundiaí. Obrigá-lo a inventar uma explicação qualquer para a omissão do trecho "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego", em diversas edições da peça. O erro de uma gráfica londrina, em 1756? A mão pesada de um editor marselhês, em 1809? Obrigá-lo a escrever um ensaio sobre Hamlet e citar, numa nota de rodapé, a omissão do trecho. Mandar o ensaio para a Oxford Literary Review. Dinamitar o bunker -com Harold Bloom dentro.
Esperar duas décadas.

Viajar para a Inglaterra. Reservar um camarote para assistir Hamlet, no Royal Shakespeare Theatre, em Stratford-upon-Avon. Mandar fazer um smoking sob medida. Contratar uma acompanhante eslava, loira, de olhos azuis e 1,82 m. Ir ao teatro com Nadia ou Milka ou Zora. Pedir uma garrafa de champanhe Cristal. Dar o último gole três segundos antes do final do segundo ato e ouvir o melhor ator da Royal Shakespeare Company recitar, para 1.500 homens de paletó e mulheres cobertas de brilhantes: "Oh, if I catch you, oh, oh, if I catch you!".

 Voltar para Jundiaí e passar o resto dos meus dias criando curiós.