Antes de sair de férias e viajar para a Jamaica, minha faxineira me chamou na cozinha, apontou pra pia e falou: - lave a louça assim que usar. Se você fizer isso, sua pia sempre vai estar assim! Ela terminou a frase apontando com orgulho para sua obra-prima: a pia brilhante na minha cozinha. Eu já tinha deixado registrado aqui toda a sabedoria da minha faxineira em questões de segurança pessoal em um post em 2009. Mas mal sabia eu que ali estava ela, mas uma vez, compartilhando comigo seu vasto conhecimento de novo.
Primeira semana: lavei toda a louça, assim que usei. Chegava em casa, cozinhava o jantar e lavava a louça em seguida. Segunda semana: os prazos começaram a apertar. Eu era obrigada a deixar a louça para lá e voltar para o trabalho. Na manhã seguinte, todavia, eu tomava meu café da manhã e lavava tudo antes de sair. Na terceira semana, a memória da minha faxineira me dando instruções já estava meio vaga na minha memória. Eu estava definitivamente me sentindo menos pressionada pela figura daquela senhora baixinha e bem humorada que basicamente governa minha vida e dá todas as ordens na casa. Daí chegou o belo dia em que não deu pra lavar a louça depois do jantar e também não deu pra lavar de manhã. E a vaca foi para o brejo. A louça começou a acumular na pia. Eu levantava de manhã e tinha que procurar espaço pra fazer café. Um belo dia, não tinha mais talheres limpos. Eu tentava me convencer que o problema era a falta de tempo. Três papers para terminar até o fim do mês, sem tempo para dormir, escrever no blog, lavar a louça ou manter a casa minimamente organizada. Essa era minha desculpa.
Mas logo descobri que isso não passava de balela. E -- pasmem -- descobri isso um dia, tarde da noite, trabalhando no meu paper sobre abuso policial e segurança pública. Conhecida na literatura acadêmica sobre criminalidade como “teoria da janela quebrada” (broken window theory), a idéia básica é que uma pequena janela quebrada em uma casa é interpretada como sinal de que a casa está abandonada e faz com que as pessoas passem a se sentir a vontade para vandalizar a casa. Ou seja, uma pequena janela quebrada gera invasões, pichações e vandalismos de toda ordem. Nesse sentido, quanto mais pequenos desvios de comportamento são permitidos, mais aumenta o risco de que outros crimes ocorram naquele local. Por isso o Paes está proibindo absolutamente tudo na zona sul do Rio. A política faz parte da campanha Choque de Ordem que impôs restrições dacronianas ao comportamento do carioca na zona sul do Rio. Não se pode mais fazer xixi na rua, levar cachorros pra praia, jogar futebol na areia fora do horário determinado, ou fazer comércio ilegal.
Pois é. Ao mandar eu lavar a louça depois de usar, minha faxineira estava usando do mesmo mecanismo: choque de ordem. E funciona da mesma forma que o crime: se não tem nada lá, você não deixa louça suja na pia. Daí se você faz uma refeição e não lava aquela louça, é como a janela quebrada. Já não lavei aquela louça, então não preciso lavar essa também. E daí a coisa vai escalonando até o momento em que você não encontra uma colher limpa pra comer seu iogurte de manhã. A pior (pra mim) ou a melhor (pra minha faxineira) parte da história é que há um forte precedente a favor do choque de ordem. O prefeito Rudy Giulliani ficou famoso por ter reduzido drasticamente os índices de criminalidade em Nova Iorque no início da década de 90 graças à sua política de tolerância zero . A cidade, segundo aqueles que tiveram a oportunidade de visitá-la antes e depois, mudou da água para o vinho.
A questão é: se tudo que se fala sobre a política de segurança de Nova Iorque é verdade, como explicar esse vídeo, no qual um cineasta roubou a própria bicicleta três vezes antes de ser interpelado pela polícia? Note-se que a polícia interpelou ele somente quando ele estava em uma praça pública bem movimentada, usando uma serra elétrica (!) para quebrar a corrente.
Minha interpretação? O choque de ordem não dura pra sempre e não tem como durar. As coisas degringolam em algum momento. A não ser que haja policiais na rua o tempo todo vigiando tudo e todos, a política não é viável. Ou seja, a não ser que eu soubesse que minha faxineira estava lá pronta para me dar uma bronca no dia seguinte, os incentivos para lavar a louça são mínimos. Pra ter tolerância zero, alguém tem que estar lá manifestando intolerância. Pra ter choque de ordem, alguém tem que estar lá pra dar o choque quando a desordem começar a aparecer. E esse é o vídeo que eu vou mostrar pra minha faxineira quando ela voltar de férias e perguntar como minha pia ficou nesse estado...
3 comentários:
Que fazer constar em ata que a "senhora baixinha e bem humorada que basicamente governa minha vida e dá todas as ordens na casa" não sou eu. Grata,
J.
O privilégio de lavar a louça, o paper vai se trabalhando sozinho, a mente limpa. Como tomar mais um banho, sem aquela responsabilidade toda de cuidar do santo corpo, é louça apenas. Você conhece o intrépido pensador, Pierre Clastres? Filósofo por formação, etnógrafo por astúcia, teórico sem limites. Uma inspiração quando o assunto é controle social e violência.
Fausto Ferraz , o retorno: quem se habilita a lavar a louça?...Vc muda de país e o problema continua atual!
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