sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Em busca do seu verdadeiro eu




Já li vários artigos de que estamos em um era de consumo personalizado. Bastar olhar para o iPhone que todo mundo carrega hoje em dia. É o mesmo aparelho, mas nenhum aparelho é igual a outro. A idéia de que podemos baixar applications que atendem às nossas necessidades torna cada um dos iPhone que circula por aí uma coisa única. 

A mesma revolução aconteceu com o modo como consumimos música hoje. Aqui nos Estados Unidos há um programa gratuito chamado Pandora, no qual basicamente você seleciona o tipo de música que você gosta e eles tocam para você, como uma rádio. A diferença entre o Pandora e uma rádio é que você pode indicar se gosta ou não de uma determinada música e, com base nas suas seleções, eles ajustam as seleções futuras para melhor refletir seu gosto. Portanto, duas pessoas podem escolher uma rádio chamadas "clássicos do jazz", mas se uma indicar que odeia o Chet Baker e a outra indicar que adora, as duas passam a ouvir tipos bem distintos de jazz.

Nesse mundo, o que fazer com produtos que são mais padronizados, como uma xícara de café? A Starbucks personaliza para você. Sim, essa é a grande sacada da rede. Você quer um mocha (leite, café e chocolate)? Mas você gosta do seu mocha com leite desnatado, e com dois shots de café espresso ao invés de um, e com chantilly em cima mas sem a calda de caramelo? Só precisa avisar o caixa, e a Starbucks produz um mocha igualzinho ao que sua avó faria para você (ou talvez até melhor, pois avós podem achar que leite desnatado não é nutritivo, ou que dois shots de espresso vão fazer mal para seu estômago, e podem boicotar seu mocha sem você saber...). 

Para separar o que é de quem, o Starbucks adotou um sistema no qual eles usam seu nome para identificar seu café. Assim, além da bebida personalizada, você tem um copo personalizado e o atendimento é personalizado, pois o barista grita seu nome quando sua bebida está pronta. O problema é que na maioria das vezes o nome sai errado. Um grupo de pessoas criou um website para postar as confusões feitas pelos caixas (aqui). E a moda parece que pegou, pois outros sites fizeram a mesma coisa (veja aqui e aqui e aqui). 

Eu mesma já tinha desistido de conseguir um copo com meu nome (já veio Mary, Maryanne, Mary Anna e todas as variações possíveis), quando ontem, para minha surpresa, fui contemplada com o copo que está aqui na foto. Quase guardei o copo para posteridade... 

Agora, diria meu leitor, só falta achar o meu nome na lata de Coca-Cola. Afinal, como uma empresa que entende seu mercado consumidor, a Coca-Cola entendeu que a experiência de consumo personalizada é a moda agora. 

O problema é que (1) eu não tomo refrigerante, (2) eu não acho que minha experiência fica personalizada quando o líquido é o mesmo para todo mundo, mas tem meu nome na latinha e (3) se eu quisesse mesmo uma latinha com meu nome, tem um application que personalizada a latinha e cria uma foto para você postar no facebook (não basta personalizar a experiência, mas tem que compartilhar a experiência personalizada com os amigos também).



Portanto, se você ainda não encontrou seu verdadeiro eu na Coca-Cola, aqui vai a solução para todos seus problemas. Eu, por outro lado, encontrei meu verdadeiro eu na Starbucks ontem e agora estou em paz comigo mesma.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quem precisa de amor, quando se tem ordem e progresso?

Reza a lenda que meu avó sempre chorava quando ouvia o hino nacional. A ironia e que ele era um português que nunca se naturalizou, apesar de ter morado no Brasil a maior parte da sua vida. Portanto, não era nacionalismo. Era puro amor pelo país mesmo. Não pude, portanto, deixar de lembrar dele quando li o texto da Denise Fraga hoje na Folha de S. Paulo, que compartilho com vocês aqui. 

 Folha de S. Paulo, P 19/02/2013 - 03h30

Amor, ordem e progresso 

Denise Fraga

Tenho uma vontade danada de pôr a mão no peito quando eu canto o hino nacional. Não ponho. Fico constrangida. Nosso material cívico foi um tanto manchado pelo ufanismo do governo militar, e demonstrações de amor à pátria usando o hino e a bandeira ainda têm certo peso para mim. Sou legítima filha do golpe.

Nasci em 1964 e, apesar da letra difícil, aprendi nosso hino inteirinho e em detalhes. Na minha escola, ele era cantado todos os dias. O castigo que minha professora dava para a bagunça da turma era o pedido de cópias da letra em folhas pautadas de papel almaço. Quem errasse uma vírgula tinha de refazer.

Foi por conta disso que Tia Eda e minha mãe, também professora, tiveram longa querela, me fazendo carregar livros pra cá e pra lá, a respeito da existência ou não de crase no "as margens plácidas". Negativo. As margens do Ipiranga saíram de sua placidez e ouviram mesmo o brado retumbante.
Mas, apesar dos militares e do trauma causado pelas centenas de cópias da Tia Eda, eu sempre adorei cantar o hino. Hino une. É a canção que todo mundo sabe, é quase uma reza. Eu me arrepio quando tenho a oportunidade de cantá-lo em coro. Se sua poesia não fosse tão truncada e pudéssemos todos entender que nossa vida tem mais amores nesta mãe gentil que é o Brasil, seria ainda mais emocionante.

Por falar em amor, recentemente eu descobri de onde vem o nosso "ordem e progresso", que eu sempre associara ao meu vizinho que saía fardado todas as manhãs, mas que nada tem a ver com os militares.

Para quem não sabe, as palavras de nossa bandeira vêm da frase positivista do filósofo francês Augusto Comte [1798-1857]: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Simplesmente tiraram o amor. Apenas o amor!

A frase original faz total sentido pra mim. Você ama uma coisa, se organiza e ela progride. Mas acharam que o amor não fazia falta. Ou que já estava implícito. Vai ver foi até por falta de espaço.
Fico imaginando a reunião dos barbudos: "Não cabe tudo, vamos tirar a 'ordem'". "Não, sem ordem não se chega a lugar algum." "'Progresso' não dá pra tirar, é mau agouro..." "Tira o 'amor'. Amor todo mundo tem."

Amor todo mundo tem?? Era apenas uma palavra, mas, mesmo que não se importassem em garantir o amor, não custava nada deixá-lo na bandeira para, no mínimo, nos ajudar a lembrar que ela é o tal do lábaro estrelado, o símbolo de amor eterno que o Brasil ostenta.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/denisefraga/1232738-amor-ordem-e-progresso.shtml

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Conhecendo os Joneses

Os passáros sobreviveram. E os vizinhos também. Depois da tempestade, tive a oportunidade de conhecer os famosos Joneses. O termo vem da expressão idiomática: "keeping up with the Joneses".  A expressão se refere a essa ânsia que temos de ter um padrão de vida tão ou mais alto do que o do vizinho. Jones é um sobrenome bastante comum por aqui. É o equivalente do Silva no Brasil. E eles colocam o sobrenome no plural para se referir à família toda. Assim, Jones vira Joneses.  

Pois no sábado de manhã, depois da tempestade, assim que a neve parou de cair, saíram todos os Joneses de todas as casas e começaram o longo processo de escavação. Sim, retirar neve é um processo de escavação. Com uma pá cada um, aos poucos, íam todos conseguindo ver primeiro a escada da casa, depois um pouco da calçada e, por fim, os carros. E o que eu descobri, depois de passar várias horas escavando com os Joneses, é que keeping up with the Joneses é uma tarefa difícil

A primeira Jones com quem encontrei foi a minha locadora, que mora no andar de baixo da casa. Sem pá, na sacada da casa dela, ela agitava os braços, gritando a plenos pulmões: 

- Isso aqui é tão melhor que a batalha da normandia. Eu tava de saco cheio da batalha da normandia!

Eu quase retruquei que aquele processo massivo de escavação não deixava de ser uma batalha, mas depois descobri que, durante a tempestade, ela ficou lendo um livro sobre a segunda guerra mundial. Portanto, ela estava mais se referindo ao alívio de poder sair de casa do que ao esforço físico que a retirada de toda aquela neve ia demandar. E ainda que ela estivesse se referindo ao esforço físico, o processo de limpeza certamente seria, pra ela, muito melhor que a batalha da normandia. Enquanto todos limpavam, ela se limitou a dar ordens, tirar fotos, e gritar que aquilo era melhor que a batalha.

E a primeira ordem dela foi para jogarem toda a neve no meio da rua, que tinha sido limpa por um trator para que os carros pudessem transitar. Imediatamente apareceu o segundo Jones para protestar. Se jogássemos a neve no meio da rua, ele não conseguiria sair com o carro. A primeira Jones respondeu que ele não tinha para onde ir com o carro, pois a cidade estava toda interditada. Além disso, argumentou ela, o trator ia passar novamente, com certeza. Ele, todavia, achava que o trator nunca mais daria o ar da graça e vetava a proposta da primeira Jones.

A discussão acalorada chamou a atenção da terceira Jones, que limpava sua casa do outro lado da rua. Ela veio se juntar ao grupo, visivelmente perturbada:

- Não tenho onde colocar toda a neve. Queria jogar na rua, mas também quero poder sair com o carro. Se eu não jogar na rua, não tenho mais onde jogar, pois meu jardim está entulhado. 

Ao chegar à constatação sobre o jardim entulhado, ela voltava à frase inicial, afirmando que não tinha onde colocar tanta neve. E repetia tudo de novo até chegar no jardim entulhado de novo. E daí começava do início, sem lugar para tanta neve. O monólogo seria quase uma reza, se ela não estivesse ficando cada vez mais perturbada cada vez que repetia as frases e descobria, ao final da sequência, que nenhuma solução para o problema tinha sido encontrada. Tive vontade de pegar o livro sobre a batalha da normandia e começar a ler em voz alta para acalmá-la.


Para alívio de todos, em especial da terceira Jones (que a esse ponto já estava quase delirante com aquele quebra-cabeça da neve), o segundo Jones disse que ele ia construir um castelo de neve na entrada da casa dele. Trata-se de um adulto, pai de duas crianças, cidadão com emprego que paga suas contas em dia. Mas ele decidiu que naquele dia ele precisava de um castelo de neve. Portanto, toda a neve da rua seria acumulada na calçada na frente da casa dele. 

Ninguém pareceu se assustar ou estranhar a proposta. Ao contrário. A primeira Jones aprovou prontamente:

- Você é um artista! Isso é tão melhor que a batalha da normandia! E voltou a tirar fotos. 

A terceira Jones também gostou da idéia:

- Quer dizer que eu posso tirar a neve da minha calçada e jogar na sua?  

Ela deu um suspiro profundo, aliviado. Parecia não acreditar que, de repente, o problema dela estava resolvido. Havia, afinal, um terceiro lugar que não era nem o jardim dela nem a rua. E ela não parecia se importar com o fato de que aquela solução implicava trabalho extra para ela, que agora tinha que atravessar a rua com uma pá carregada de neve, para soterrar o vizinho. 

Quando as duas casas ficaram acessíveis e a terceira soterrada com a neve das duas primeiras, os três Joneses notaram que havia surgido mais ao fim da rua a quarta Jones. Uma senhora com seus sessenta anos, que aos poucos ia jogando pequenas pás de neve no seu quintal. Os Joneses que tinham acabado seu serviço (exceto pelo castelo de neve ainda a ser construído com toda aquela matéria prima) decidiram ajudar a senhora. Mas ela recusou a ajuda, alegando que a vizinha dela e o marido, que moravam na última casa da rua e ainda não haviam aparecido, precisam de mais ajuda que ela: 

- Estou com saúde e consigo fazer isso sozinha. Os Joneses da outra casa, em contraste, não estão bem de saúde. Limpem, portanto, a casa deles. 

Interessante notar que o diálogo não era informado por gentileza e cortesia. Ou seja, a quarta Jones não recusava a ajuda por educação. Na verdade, ela estava verdadeira e sinceramente protestando contra todos aqueles Joneses, que estavam privando ela do privilégio de poder limpar sua própria casa. Para ela, aquilo era um verdadeiro absurdo. 

Os Joneses ignoravam solenemente o protesto e continuavam limpando a casa da quarta Jones quando o trator passou na entrada da rua. A primeira Jones correu para o meio da rua, acenando com os dois braços e gritando para que o trator entrasse. Todos pararam. O trator parou na entrada da rua, olhou cuidadosamente para a neve e para os Joneses, como que decidindo se entrava ou não e, depois de um longo minuto, fez a manobra indicando que ia entrar. 

A terceira Jones imediatamente começou a jogar a neve da quarta Jones no meio da rua. Jogava de maneira frenética. Sim, aquele era o momento para evitar que aquela pobre mulher se encontrasse diante do dilema que ela tinha enfrentado. A essa altura, não cabia mais neve na calçada do segundo Jones e era pouco provável que mais alguém na rua iria se aventurar a construir um castelo de neve. A quarta Jones, todavia, gritava a plenos pulmões para que a terceira parasse.

O problema foi que o trator entrou e começou a ir na direção da montanha de neve na frente da casa do segundo Jones. Esse, ao ver que seu sonho de ter um castelo ia ser destruído por aquele troglodita sem imaginação manobrando o trator, se jogou entre o trator e seu futuro castelo, pedindo para ele parar. 

- Isso é melhor que a batalha da normandia! Gritava a primeira Jones, enquanto fotografava a cena. 

Uma vez explicado que aquela montanha não deveria ser removida, o trator se dirigiu para a casa da quarta Jones, com o intuito de limpar a garagem e entrada de carros. Mas ela protestou. Queria tirar a neve ela mesma. Estava com saúde. Que a deixassem em paz! 

Quando o trator se dirigiu então para a casa dos que não estavam bem de saúde, a quarta Jones protestou também, alegando que se ele tirasse a neve de lá, os outros Joneses iam continuar limpando a casa dela. Um verdadeiro absurdo! 

O trator se resignou então a retirar o pouco de neve que a terceira Jones tinha conseguido jogar no meio da rua. Feito isso, foi embora. A terceira Jones viu o trator partir desolada. Não tinha dado tempo de jogar muita neve na rua. O segundo Jones, por outro lado, estava aliviado. Seu castelo não estava mais sob risco de ser destruído. A quarta Jones parecia tristemente resignada com o fato de que todos continuavam a retirar a neve da sua casa, apesar de seus protestos. A única que não contribuia com a escavação era a primeira Jones, que continuava a tirar fotos no meio da confusão, achando tudo aquilo infinitamente melhor que a batalha da normandia. 

E assim alguns viveram felizes para sempre, enquanto outros nem tanto. Afinal, é difícil keep up with the Joneses!  


P.S. As fotos são cortesia da primeira Jones. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

E os pássaros?

Eu cresci ouvindo as lindas histórias de migração dos pássaros que moravam no hemisfério norte, quanto o inverno se aproximava. Tive, inclusive, minha própria experiência migratória: há duas semanas, consegui viajar para um workshop na Flórida, onde a temperatura de 25 graus positivos foi um grande alívio para os 15 graus negativos que eu deixara para trás. E o fato de que havia golfinhos nadando na baía que banhava o resort me fez esquecer de quão ruim é a comida naquele lugar.... Enfim, seja pela lógica, seja por experiência própria, é difícil pensar em alguma razão para não migrar para terras com temperaturas mais amenas durante o inverno.

Quando me mudei para o Canadá, descobri que não eram apenas os pássaros que migravam durante o inverno. Os aposentados seguiam na mesma direção, passando de quatro a seis meses do ano ao sul da fronteira com os Estados Unidos. Muitos vão para o México, onde os dólares da aposentadoria canadense combinada com a desigualdade de renda, permite a eles viver uma vida para lá de confortável. Ao fim do inverno, voltam para suas raízes, descansados, bronzeados e prontos para enfrentar a curta primavera e o longo verão canadense. Não os culpo. Na verdade, meu plano é fazer exatamente o mesmo quando me aposentar. Exceto que meu destino será a cidade maravilhosa, ao invés do México. 

Mudei esse ano para Cambridge, e estou morando em uma casa, cercada de pássaros que me acordam cantando todas as manhãs. Sempre usufrui da melodia assumindo que a mesma iria acabar assim que chegasse o inverno. Mas me enganei. Quando o inverno chegou, para minha surpresa, os pássaros insistiram em ficar. Acordo todas as manhãs ouvindo o alvoroço deles no quintal da vizinha (que parece prover algum tipo de alimentação diária para os que decidiram ficar na cidade), independente de quão baixa esteja a temperatura. Todos os dias ainda acho estranho encontrar aqueles pássaros todos por ali -- pombas, pardais e mais uma séries de outras espécies. Passo várias manhãs tentando entender como eles sobrevivem durante o inverno e porque diabos eles não migraram. Mas quem sou eu para questionar a sabedoria da mãe natureza, ou as evidências científicas do aquecimento global? Se estão ali, devem saber o que estão fazendo, pensava eu. 

Hoje de manhã, todavia, eles pareciam particularmente agitados. Pareciam pressentir que havia algo de errado. E estavam certos. Uma tempestade de neve gigantesca, que promete entrar para a história como uma das maiores já vistas na Nova Inglaterra, se aproximava da cidade. Enquanto eu observava o alvoroço particularmente alvoroçado hoje de manhã, eu pensava na diferença entre eu e eles. Desde terça-feira, estou recebendo emails da administração da universidade alertando sobre a tempestade que chegaria na sexta-feira. Na quarta-feira, todas os eventos e aulas de sexta-feira foram cancelados. Recebemos um email aconselhado-nos a trabalhar em casa. Mas o alerta veio mesmo na quinta-feira. Harvard, que é famosa por não cancelar aulas e manter a universidade aberta no matter what, declarou que as aulas e atividades na tarde de sexta-feira (mas não na manhã, vale notar) estavam canceladas. E quando Harvard cancela alguma coisa, é porque o bicho vai pegar! 

Enquanto eu estava sendo alertada desde terça-feira sobre tudo isso, os pássaros estavam lá, acordando em plena sexta-feira para descobrir que era tarde demais para tentar migrar para qualquer lugar com um clima minimamente mais decente. Enquanto eu tive alguns dias para enfrentar as longas filas no supermercado, comprando tudo que pudesse me manter viva durante alguns dias (no caso de falta de água e/ou luz, ou diante da impossibilidade de sair de casa ou de encontrar algum estabelecimento comercial aberto), os pássaros estavam lá, fazendo o que talvez fosse a última refeição da vida deles. Em contraste com as manhãs em que eu tomei meu café refletindo sobre a resistência desses animais ao inverno, hoje eu segurava minha xícara, olhando pela janela, desolada com o triste destino que a vida iria dar a todos aqueles que tinham tomado a decisão equivocada de não migrar nesse inverno.

Saí para correr as 8am, antes da neve começar a cair, mas quando a ventania já estava marcando sua presença. Não foi a corrida mais agradável do mundo (o vento deixa a temperatura ainda mais fria), mas eu precisava passar um tempo fora de casa. Não faz muito tempo, o furacão Sandy atingiu Boston e nos deixou todos presos dentro de casa durante um dia inteiro. E eu lembro que naquele dia eu entendi o conceito de cabin fever. Ficar muito tempo trancado dentro de casa é uma ótima forma de deixar alguém maluco. Eu quase perdi as estribeiras. Portanto, depois do furacão Sandy, eu decidi que, se havia o risco de eu ficar trancada em casa até sábado a tarde, eu precisava passar ao menos uma hora ao ar livre para respirar ar fresco e carregar minhas baterias mentais. 

Quando voltei, uma hora e meia depois, a neve tinha começado a cair e o vento estava ainda mais forte. E os pássaros estavam ainda mais alvoroçados. Um casal de Blue Jays chamava atenção. O Blue Jay é o pássaro azul na foto que coloquei no início do post. Ele dá nome ao time de baseball de Toronto e, por isso, tenho um apego especial a eles. O casal de Blue Jays, junto com um Pica-Pau (a quem tenho um apego por causa do desenho animado), fazem parte do grupo que se reune na frente da minha janela todas as manhãs para alegramente celebrar sei lá o que. Mas hoje, quando cheguei em casa, eles voavam sem rumo de uma árvore a outra, sem saber o que fazer. Os pardais, em um grupo super numeroso, estavam igualmente perdidos, mas ao invés de voarem de uma árvore a outra, iam do chão para a árvore e da árvore de volta para o chão. 

Quando saí do banho, os pássaros tinha desaparecido. E os carros também. Não havia uma alma viva na rua. Estamos, desde então, todos os humanos, enfurnados em casa, tentando de alguma forma não ficar com cabin fever (ainda bem que existe internet!). E eu, pessoalmente, estou torcendo para que os pássaros estejam bem e protegidos em algum lugar. Seria muito triste ver sair o sol que sai depois de uma tempestade como essa (a manhã depois do furacão Sandy foi uma das manhã mais bonitas que eu já vi) e não ouvir aquele alvoroço alegre que passou a ser parte de todas as minhas manhãs. E seria mais triste ainda pensar que tudo isso aconteceu só porque os pássaros não tem acesso a internet...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Não estou sozinha mesmo!

A coluna do Schwartzman hoje na Folha de São Paulo (abaixo) analisa um dos maiores problemas de se impressionar com histórias: elas nos tornam cegos para os riscos que corremos (que são melhor analisados através de números). As consequências são nefastas: as histórias de tragédias concretas como Santa Maria ou quedas de aviões nos levam a tomar precauções exageradas para eventos com menor probabilidade de ocorrer, em detrimento das precauções que poderíamos tomar para eventos que são mais prováveis de nos afetar. O Kaheman explora isso no livro dele, através do conceito de availability bias

Deixo vocês, portanto, em muito boas mãos:

07/02/2013 - 07h00

Lições de Santa Maria

Precisamos aproveitar casos como o da tragédia de Santa Maria para entender o que não entendemos acerca do risco em geral --uma informação valiosa tanto para compreender melhor a mente humana como para aprimorar a gestão da defesa civil.
O primeiro ponto a esclarecer é que nossa espécie é péssima em estimar as chances de ocorrência de qualquer fenômeno que fuja à escala de nossa experiência cotidiana. Como escrevi numa coluna para a edição impressa publicada na semana passada, "quando lidamos com riscos que não fazem parte de nosso dia a dia, ou agimos como se eles não existissem ou como se fossem uma sentença de morte. O mais realista meio-termo desaparece".
Há sólidas razões darwinianas para isso. Pelo menos desde Platão, gostamos de nos imaginar como um animal racional, que pauta suas principais decisões pela lógica. A verdade, contudo, é que as funções cognitivas ditas superiores são uma aquisição evolutiva muito recente. Só chegamos perto do ponto de contar com um cérebro grande e que pode exercitar a razão porque, a exemplo de todos os outros animais, já possuíamos um sistema de detecção de perigos que garantiu a sobrevivência de alguns indivíduos e perpetuação da espécie.
Quando você dá de cara com um leão, simplesmente sai correndo. Não se preocupa em saber se ele está ou não faminto ou mesmo se é realmente um leão. Tudo o que tenha um formato que lembre vagamente o do predador já basta para colocar-nos em alerta máximo. São reações automáticas moldadas por milhões de anos de evolução e que se traduzem em emoções viscerais como medo, pânico, nojo etc. Não precisamos pensar antes de recusar comida estragada ou fugir de um touro bravio.
Esse sistema mais animalesco não foi desligado com o advento da razão, que apenas acrescentou um segundo modo de percepção do risco, baseado em algoritmos, cálculo probabilístico e lógica formal. É um sistema analítico, abstrato, lento e que exige reflexão antes de traduzir-se em ações.
A simples existência de dois modos distintos já explica algumas de nossas idiossincrasias: temos um pavor injustificado de ameaças que sabemos quase inexistentes em ambientes urbanos modernos, como cobras e tubarões, mas nos expomos prazerosamente a perigos reais, como tabaco e carros velozes.
E isso é apenas parte da história. Mesmo o sistema analítico, supostamente racional, muito por interferências do modo visceral, carrega uma série de vieses que o tornam um verdadeiro campo minado. Nos últimos anos, após os trabalhos pioneiros de Daniel Kahneman e Amos Tversky na área da ciência cognitiva, acumulamos um impressionante catálogo das falhas de raciocínio que vêm embutidas na nossa forma de pensar.
Um de meus exemplos favoritos diz respeito à dificuldade de processar porcentagens. Num já clássico experimento de 1997, médicos treinados julgaram uma doença que mata 1.286 pessoas de cada 10.000 --12,86%-- como mais grave do que uma com taxa de mortalidade de 20%. Aqui, eles se deixaram enganar pela concretude das 1.286 vítimas contra a abstração da frequência de 20%.
É nesse contexto neuronal muito pouco promissor que tentamos dar sentido às informações que recebemos sobre tragédias como a de Santa Maria. Apenas ouvir a notícia já ativa o sistema automático. O destaque aí são as amígdalas, estruturas cerebrais localizadas nos lobos temporais associadas à memória e ao aprendizado emocionais, notadamente o medo. Elas são um órgão meio paranoico de sobrevivência. Estão sempre esperando pelo pior e prontas a disparar para nos dar uma chance de sobreviver.
O problema com as amígdalas é que elas não sabem fazer contas nem estimar riscos e voltam a ser ativadas a cada nova notícia dramática que lemos sobre o incêndio da discoteca. Como o modo experiencial é emocionalmente intenso, muitos de nós ficam com a sensação de que o fogo em boates (ou qualquer outra tragédia da hora) são uma ameaça iminente e não um risco ponderável.
É claro que as amígdalas não são soberanas --o cérebro, vale lembrar, é uma cacofonia de módulos e sistemas onde vence quem grita mais alto. Com um pouco de treino, sua atividade pode ser inibida por ordem do sistema racional, sediado no córtex pré-frontal. Quem exercita muito essa área pode facilmente se convencer de que incêndios quase nunca são um problema.
O risco de fato não é dos mais elevados. De acordo com o Datasus, morreram no Brasil em 2010 (último ano disponível) 953 pessoas em consequência da exposição à fumaça ou ao fogo. Isso representa 0,08% do total de 1.136.947 óbitos registrados no país naquele ano, ou 0,66% das 143.256 mortes provocadas por causas externas.
O sujeito que quiser ganhar alguns cobres deixando de comprar equipamentos e materiais antifogo tem grande possibilidade de se dar bem, já que incêndios são relativamente raros. A esmagadora maioria das pessoas vive seus setenta e tantos anos de vida sem passar por nenhum incêndio. Mesmo o administrador público bem-intencionado não costuma dar muita atenção a esse capítulo. Ele consegue um retorno maior tanto em termos econômicos como humanos se dedicar seus esforços a combater riscos que provocam maior número de óbitos como quedas (10.426 mortes em 2010), atropelamentos (9.944) ou afogamentos (5.548).
O problema com esses eventos mais ou menos raros é que, mesmo ocorrendo poucas vezes, podem produzir perdas catastróficas, como se verificou em Santa Maria. Trata-se, portanto, de um assunto que não será resolvido pelas chamadas forças de mercado. Individualmente, faz sentido apostar que não ocorrerá nenhum incêndio neste ou naquele estabelecimento
específico e embolsar a economia resultante. Em termos atuariais, entretanto, sabemos que, num dado período, ocorrerá um certo número de desastres. É como a loteria. A chance de eu ou qualquer outra pessoa em particular ganhar o prêmio é irrisória, mas é quase certo que alguém o faturará.
O jogo só muda se houver uma regulamentação em nível de Estado e prefeituras que seja cumprida sob pena de multas relativamente pesadas. Aí já não estamos falando de um risco abstrato e relativamente pequeno, mas sim da experiência mais cotidiana de lidar com fiscais e autos de infração.
Voltando a nossos cérebros, as amígdalas não ficam, é claro, disparando para sempre. À medida que o tempo passa, nos habituamos ao noticiário que também vai ficando cada vez mais esparso até quase desaparecer. Hoje autoridades de todo o Brasil estão escarafunchando discotecas em busca de falhas de segurança e fechando estabelecimentos, mas esse é um estado transitório. Dentro de mais algumas semanas, tudo deverá voltar mais ou menos à situação anterior. Já vimos esse filme diversas vezes e com vários enredos: o naufrágio do "Bateau Mouche" no Rio em 1988, a explosão do Osasco Plaza Shopping em 1996 e as repetidas tragédias provocadas pelas chuvas, como as de Ilha Grande, em 2010, ou da região serrana do Rio, no ano seguinte. Em todas essas situações, encenamos uma grande reviravolta que prometia mudanças profundas e duradouras na regulação e fiscalização, mas não tardou até que esquecêssemos o assunto, com avanços que ficam em algum ponto entre o nulo e o modesto.
A pergunta é: como proceder nessas situações? O que podemos fazer para que as ações se tornem mais efetivas? Daniel Kahneman, no livro "Rápido e Devagar", traz um bom resumo de a quantas anda o debate sobre o papel de especialistas na percepção do risco. Pincelei essa questão na coluna "A psiocologia da tragédia", à qual já aludi alguns parágrafos acima.
Paul Slovic, que é provavelmente a maior autoridade do mundo em psicologia do risco, apresenta uma visão moderadamente pessimista do problema. Para ele, o especialista é um sujeito com os mesmos vieses do cidadão comum, mas com maior capacidade de nos engambelar. Não devemos confiar neles.
Para Slovic, a própria noção de risco objetivo é menos objetiva do que parece. Ele demonstra isso descrevendo de nove maneiras diferentes a mortalidade associada à poluição. Se utilizamos a notação de mortes por milhão de habitantes, obtemos um determinado efeito na opinião pública, mas, se recorremos à noção de mortes por milhão de dólares produzidos, o resultado é bem diferente. Qual o conceito mais objetivo? Aqui não existe resposta certa.
Slovic sustenta que não há melhor juiz do que o senso comum. Em muitos casos, a percepção dos cidadãos, ao introduzir noções meio metafísicas intraduzíveis em fórmulas, como mortes boas ou ruins, é até mais sofisticada do que a visão dos especialistas, fortemente restringida pela mensurabilidade.
Na ótica do psicólogo, devemos aproveitar casos de comoção motivados por catástrofes para melhorar um pouco o marco regulatório e reservar quinhões do orçamento para reduzir os perigos. A democracia é necessariamente um pouco confusa e os avanços vêm através de surtos de pânico.
Cass Sunstein, originalmente um jurista, mas que se tornou um dos mais influentes especialistas em economia comportamental, tem um projeto mais iluminista. Ele acha que especialistas têm algo a ensinar e que apenas reagir instintivamente às notícias de jornal pode causar mais mal do que bem.
Um exemplo real: após os atentados de 11 de Setembro, muitos norte-americanos acabaram desenvolvendo um medo meio irracional do terrorismo, o que os fez trocar o mais seguro transporte aéreo por longas e perigosas viagens de carro, gerando um excesso de mortes desnecessárias.
O papel do especialista, na visão de Sunstein, é alertar para os vieses que marcam a nossa percepção do risco, como o fato de tendermos a negligenciar informações estatísticas.
Conhecendo melhor as formas pelas quais nossas mentes gostam de errar, criamos as oportunidades para corrigir nossas falhas e tomar atitudes mais consistentes. Mesmo que o risco objetivo seja uma ficção, ainda existem maneiras mais ou menos fantasiosas de abordá-lo.
Como o leitor já deve ter percebido, eu pendo mais para o lado de Sunstein do que o de Slovic, ou não me teria dado ao trabalho de escrever tão longamente sobre o assunto.
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

As histórias, de novo

No meu último post, eu argumentei que as pessoas se sentem mais atraídas (e acham mais convincentes) histórias concretas e cheias de detalhes, em contraste com números abstratos e impessoais. Depois de escrever o post, lembrei que o livro do Kaheman, que eu já tinha mencionado aqui, oferece uma explicação da razão pela qual gostamos tanto de histórias. Basicamente, as histórias se ligam com facilidade com uma das formas através das quais frequentemente raciocinamos, que é através de atalhos, ou o que Kaheman chama de heuristics.

Um boa ilustração é o diálogo com o qual abri meu penúltimo post. Para quem jocosamente me chama de canadense ao me ver colocar o cinto no banco de trás do carro, eu conto uma história pessoal, da minha avó. Ao invés disso, eu poderia perfeitamente responder com a estatística, ou seja o número de pessoas que morre anualmente no Brasil em acidentes devido ao fato de que estão no banco de trás sem cinto. Segundo Kaheman, minha escolha é acertada, pois minha estratégia é muito mais efetivam convencer meu interlocutor, apesar de ser absolutamente irracional acreditar mais em histórias do que em estatísticas. 

Por que deveríamos preferir estatísticas a histórias? Se você perguntar para qualquer acadêmico, a resposta vai ser: porque os dados agregados te dão um retrato mais completo do que está acontecendo. O fato de que uma pessoa morreu porque estava sem cinto no banco de trás não significa necessariamente que esse seja um risco que todas as pessoas correm. Pode ser que as circunstâncias daquele acidente, que são únicas e pouco prováveis, causaram aquela morte. Se isso for verdade, pouquíssimas pessoas correm o risco de morrer do mesmo jeito. Portanto, para que o dado tenha um mínimo de credibilidade, é preciso que haja um número significativo de casos. Daí a importância de estatísticas, regressões e todo tipo de recurso que temos para processar uma quantidade grande de dados e conseguir usar esses dados para prever riscos, etc. Sobre isso, um ex-professor meu de Yale escreveu um livro fascinante, chamado Super Crunchers.  Ele argumenta que números é a estratégia ideal para compreender melhor o mundo e os riscos que corremos nele. 

Em contraste, Kaheman mostra que na realidade (e em especial na realidade da pessoa que não está desenvolvendo pesquisa acadêmica, e mesmo no mundo de alguns acadêmicos...) é muito difícil processar esses números no nosso cérebro. Nós geralmente raciocinamos através de atalhos, interpretando o mundo de acordo com algumas regras e pré-conceitos que temos. Por que fazemos isso? Porque é a única alternativa viável. Segundo Kaheman, seria impossível, cada vez que recebemos informações, tentar pensar na informação que está faltando, e ir buscá-la antes de tirar qualquer conclusão. Portanto, nós preenchemos a lacuna construindo uma história a partir dos dados que temos. Fazemos isso para conseguir cheguar mais rápido a alguma conclusão. Por isso que, ao invés do meu interlocutor pensar que a história da minha avó pode ser uma exceção à regra, e que ele precisa ver as estatísticas do IBGE, ou precisa saber mais detalhes do acidente, ele aceita aquele dado como verdadeiro (que a causa da morte foi falta de cinto, e isso se aplica a toda e qualquer pessoa no banco de trás de um carro).

Segundo Kaheman, uma narrativa nos apresenta a mesma informação que os números apresentariam, mas de uma forma que é mais familiar e mais fácil de digerir. Esse é a razão pela qual as pessoas preferem receber informações na forma de histórias. O problema, como diz o próprio Kaheman, é que histórias são baseadas em simplificações e pré-conceitos, e portanto acabam sendo tendenciosas e parciais. Ou seja, elas são uma representação pouco acurada da realidade. 

Sobre isso, vale assistir o Tyler Cowen, um economista que escreveu um livro chamado Descubra o Economista Dentro de Você, que nos alerta para os riscos das histórias: 


Antes que vocês saiam por aí questionando toda e qualquer história, devo alertá-los para o fato de que esse tipo de simplificação, através de histórias, tem na verdade dois formatos. O livro Why Nations Fail é cheio de histórias, mas são todas elas baseadas em evidências estatísticas da mais alta qualidade, publicada em artigos acadêmicos pelos dois autores do livro. Portanto, enquanto eles usam histórias para conseguir passar a mensagem para uma audiência não-acadêmica, o recurso não está fundado em heuristics. Muito pelo contrário. 

O segundo formato, que é mais danoso, é o formato que circula pela internet, em especial no facebook. Nesses meios, as pessoas tem acesso a um lado da história, a uma informação, e adotam a mesma como verdade, usando os atalhos irracionais sobre os quais Kaheman nos alerta. Quem andou vendo as discussões sobre o aumento da gasolina e a redução do preço da eletricidade essa semana, tem uma coleção de bons exemplos deste tipo de comportamento. 

Qual a lição que devemos tirar sobre isso? Copio aqui o parágrafo final de um artigo interessantíssimo que li recentemente sobre o assunto:

"Ultimately, we need to remember what philosophers get right. Listen and read carefully; logically analyze arguments; try to avoid jumping to conclusions; don’t rely on stories too much. The Greek playwright Euripides was right: Question everything, learn something, answer nothing."

 P.S.: e entram na minha lista de livros para ler os seguintes títulos: 

1) The Seven Basic Plots: Why We Tell Stories

2) The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion

3) An Economist Gets Lunch: New Rules for Everyday Foodies (by Tyler Cowen, a foodie, like me!)