A coluna do Schwartzman hoje na Folha de São Paulo (abaixo) analisa um dos maiores problemas de se impressionar com histórias: elas nos tornam cegos para os riscos que corremos (que são melhor analisados através de números). As consequências são nefastas: as histórias de tragédias concretas como Santa Maria ou quedas de aviões nos levam a tomar precauções exageradas para eventos com menor probabilidade de ocorrer, em detrimento das precauções que poderíamos tomar para eventos que são mais prováveis de nos afetar. O Kaheman explora isso no livro dele, através do conceito de availability bias.
Deixo vocês, portanto, em muito boas mãos:
07/02/2013
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07h00
Lições de Santa Maria
Precisamos aproveitar casos como o da tragédia de Santa Maria para
entender o que não entendemos acerca do risco em geral --uma informação
valiosa tanto para compreender melhor a mente humana como para aprimorar
a gestão da defesa civil.
O primeiro ponto a esclarecer é que nossa espécie é péssima em estimar
as chances de ocorrência de qualquer fenômeno que fuja à escala de nossa
experiência cotidiana. Como escrevi numa coluna para a edição impressa
publicada na semana passada, "quando lidamos com riscos que não fazem
parte de nosso dia a dia, ou agimos como se eles não existissem ou como
se fossem uma sentença de morte. O mais realista meio-termo desaparece".
Há sólidas razões darwinianas para isso. Pelo menos desde Platão,
gostamos de nos imaginar como um animal racional, que pauta suas
principais decisões pela lógica. A verdade, contudo, é que as funções
cognitivas ditas superiores são uma aquisição evolutiva muito recente.
Só chegamos perto do ponto de contar com um cérebro grande e que pode
exercitar a razão porque, a exemplo de todos os outros animais, já
possuíamos um sistema de detecção de perigos que garantiu a
sobrevivência de alguns indivíduos e perpetuação da espécie.
Quando você dá de cara com um leão, simplesmente sai correndo. Não se
preocupa em saber se ele está ou não faminto ou mesmo se é realmente um
leão. Tudo o que tenha um formato que lembre vagamente o do predador já
basta para colocar-nos em alerta máximo. São reações automáticas
moldadas por milhões de anos de evolução e que se traduzem em emoções
viscerais como medo, pânico, nojo etc. Não precisamos pensar antes de
recusar comida estragada ou fugir de um touro bravio.
Esse sistema mais animalesco não foi desligado com o advento da razão,
que apenas acrescentou um segundo modo de percepção do risco, baseado em
algoritmos, cálculo probabilístico e lógica formal. É um sistema
analítico, abstrato, lento e que exige reflexão antes de traduzir-se em
ações.
A simples existência de dois modos distintos já explica algumas de
nossas idiossincrasias: temos um pavor injustificado de ameaças que
sabemos quase inexistentes em ambientes urbanos modernos, como cobras e
tubarões, mas nos expomos prazerosamente a perigos reais, como tabaco e
carros velozes.
E isso é apenas parte da história. Mesmo o sistema analítico,
supostamente racional, muito por interferências do modo visceral,
carrega uma série de vieses que o tornam um verdadeiro campo minado. Nos
últimos anos, após os trabalhos pioneiros de Daniel Kahneman e Amos
Tversky na área da ciência cognitiva, acumulamos um impressionante
catálogo das falhas de raciocínio que vêm embutidas na nossa forma de
pensar.
Um de meus exemplos favoritos diz respeito à dificuldade de processar
porcentagens. Num já clássico experimento de 1997, médicos treinados
julgaram uma doença que mata 1.286 pessoas de cada 10.000 --12,86%--
como mais grave do que uma com taxa de mortalidade de 20%. Aqui, eles se
deixaram enganar pela concretude das 1.286 vítimas contra a abstração
da frequência de 20%.
É nesse contexto neuronal muito pouco promissor que tentamos dar sentido
às informações que recebemos sobre tragédias como a de Santa Maria.
Apenas ouvir a notícia já ativa o sistema automático. O destaque aí são
as amígdalas, estruturas cerebrais localizadas nos lobos temporais
associadas à memória e ao aprendizado emocionais, notadamente o medo.
Elas são um órgão meio paranoico de sobrevivência. Estão sempre
esperando pelo pior e prontas a disparar para nos dar uma chance de
sobreviver.
O problema com as amígdalas é que elas não sabem fazer contas nem
estimar riscos e voltam a ser ativadas a cada nova notícia dramática que
lemos sobre o incêndio da discoteca. Como o modo experiencial é
emocionalmente intenso, muitos de nós ficam com a sensação de que o fogo
em boates (ou qualquer outra tragédia da hora) são uma ameaça iminente e
não um risco ponderável.
É claro que as amígdalas não são soberanas --o cérebro, vale lembrar, é
uma cacofonia de módulos e sistemas onde vence quem grita mais alto. Com
um pouco de treino, sua atividade pode ser inibida por ordem do sistema
racional, sediado no córtex pré-frontal. Quem exercita muito essa área
pode facilmente se convencer de que incêndios quase nunca são um
problema.
O risco de fato não é dos mais elevados. De acordo com o Datasus,
morreram no Brasil em 2010 (último ano disponível) 953 pessoas em
consequência da exposição à fumaça ou ao fogo. Isso representa 0,08% do
total de 1.136.947 óbitos registrados no país naquele ano, ou 0,66% das
143.256 mortes provocadas por causas externas.
O sujeito que quiser ganhar alguns cobres deixando de comprar
equipamentos e materiais antifogo tem grande possibilidade de se dar
bem, já que incêndios são relativamente raros. A esmagadora maioria das
pessoas vive seus setenta e tantos anos de vida sem passar por nenhum
incêndio. Mesmo o administrador público bem-intencionado não costuma dar
muita atenção a esse capítulo. Ele consegue um retorno maior tanto em
termos econômicos como humanos se dedicar seus esforços a combater
riscos que provocam maior número de óbitos como quedas (10.426 mortes em
2010), atropelamentos (9.944) ou afogamentos (5.548).
O problema com esses eventos mais ou menos raros é que, mesmo ocorrendo
poucas vezes, podem produzir perdas catastróficas, como se verificou em
Santa Maria. Trata-se, portanto, de um assunto que não será resolvido
pelas chamadas forças de mercado. Individualmente, faz sentido apostar
que não ocorrerá nenhum incêndio neste ou naquele estabelecimento
específico e embolsar a economia resultante. Em termos atuariais,
entretanto, sabemos que, num dado período, ocorrerá um certo número de
desastres. É como a loteria. A chance de eu ou qualquer outra pessoa em
particular ganhar o prêmio é irrisória, mas é quase certo que alguém o
faturará.
O jogo só muda se houver uma regulamentação em nível de Estado e
prefeituras que seja cumprida sob pena de multas relativamente pesadas.
Aí já não estamos falando de um risco abstrato e relativamente pequeno,
mas sim da experiência mais cotidiana de lidar com fiscais e autos de
infração.
Voltando a nossos cérebros, as amígdalas não ficam, é claro, disparando
para sempre. À medida que o tempo passa, nos habituamos ao noticiário
que também vai ficando cada vez mais esparso até quase desaparecer. Hoje
autoridades de todo o Brasil estão escarafunchando discotecas em busca
de falhas de segurança e fechando estabelecimentos, mas esse é um estado
transitório. Dentro de mais algumas semanas, tudo deverá voltar mais ou
menos à situação anterior. Já vimos esse filme diversas vezes e com
vários enredos: o naufrágio do "Bateau Mouche" no Rio em 1988, a
explosão do Osasco Plaza Shopping em 1996 e as repetidas tragédias
provocadas pelas chuvas, como as de Ilha Grande, em 2010, ou da região
serrana do Rio, no ano seguinte. Em todas essas situações, encenamos uma
grande reviravolta que prometia mudanças profundas e duradouras na
regulação e fiscalização, mas não tardou até que esquecêssemos o
assunto, com avanços que ficam em algum ponto entre o nulo e o modesto.
A pergunta é: como proceder nessas situações? O que podemos fazer para
que as ações se tornem mais efetivas? Daniel Kahneman, no livro "Rápido e
Devagar", traz um bom resumo de a quantas anda o debate sobre o papel
de especialistas na percepção do risco. Pincelei essa questão na
coluna "A psiocologia da tragédia", à qual já aludi alguns parágrafos acima.
Paul Slovic, que é provavelmente a maior autoridade do mundo em
psicologia do risco, apresenta uma visão moderadamente pessimista do
problema. Para ele, o especialista é um sujeito com os mesmos vieses do
cidadão comum, mas com maior capacidade de nos engambelar. Não devemos
confiar neles.
Para Slovic, a própria noção de risco objetivo é menos objetiva do que
parece. Ele demonstra isso descrevendo de nove maneiras diferentes a
mortalidade associada à poluição. Se utilizamos a notação de mortes por
milhão de habitantes, obtemos um determinado efeito na opinião pública,
mas, se recorremos à noção de mortes por milhão de dólares produzidos, o
resultado é bem diferente. Qual o conceito mais objetivo? Aqui não
existe resposta certa.
Slovic sustenta que não há melhor juiz do que o senso comum. Em muitos
casos, a percepção dos cidadãos, ao introduzir noções meio metafísicas
intraduzíveis em fórmulas, como mortes boas ou ruins, é até mais
sofisticada do que a visão dos especialistas, fortemente restringida
pela mensurabilidade.
Na ótica do psicólogo, devemos aproveitar casos de comoção motivados por
catástrofes para melhorar um pouco o marco regulatório e reservar
quinhões do orçamento para reduzir os perigos. A democracia é
necessariamente um pouco confusa e os avanços vêm através de surtos de
pânico.
Cass Sunstein, originalmente um jurista, mas que se tornou um dos mais
influentes especialistas em economia comportamental, tem um projeto mais
iluminista. Ele acha que especialistas têm algo a ensinar e que apenas
reagir instintivamente às notícias de jornal pode causar mais mal do que
bem.
Um exemplo real: após os atentados de 11 de Setembro, muitos
norte-americanos acabaram desenvolvendo um medo meio irracional do
terrorismo, o que os fez trocar o mais seguro transporte aéreo por
longas e perigosas viagens de carro, gerando um excesso de mortes
desnecessárias.
O papel do especialista, na visão de Sunstein, é alertar para os vieses
que marcam a nossa percepção do risco, como o fato de tendermos a
negligenciar informações estatísticas.
Conhecendo melhor as formas pelas quais nossas mentes gostam de errar,
criamos as oportunidades para corrigir nossas falhas e tomar atitudes
mais consistentes. Mesmo que o risco objetivo seja uma ficção, ainda
existem maneiras mais ou menos fantasiosas de abordá-lo.
Como o leitor já deve ter percebido, eu pendo mais para o lado de
Sunstein do que o de Slovic, ou não me teria dado ao trabalho de
escrever tão longamente sobre o assunto.