Quando estava no México, li um livro chamado The End of Life Book Club, no qual filho e mãe decidem ler uma série de livros juntos assim que ela é diagnosticada com um câncer incurável. Enquanto eu terminava esse livro no México, fiquei com vontade de ler mais sobre América Latina. Por isso comecei a ler O General e Seu Labirinto, de Gabriel Garcia Marques, quando voltei para os EUA.
Os livros não podiam ser mais diferentes. Gabriel Garcia Marques ganhou o prêmio nobel em literatura e tem inúmeras publicações. O autor do outro livro, Will Schwalbe, é um ilustre desconhecido que acaba de publicar seu primeiro livro e provavelmente nunca vai chegar perto de ser considerado para um prêmio nobel em literatura. O personagem do livro de Garcia Marques é Simon Bolívar, uma figura de enorme importância histórica para a América Latina. O personagem do livro de Schwalbe, em contraste, é sua mãe, uma cidadã comum. E talvez o contraste mais importante é que Schwalbe parece ter decidido escrever um tributo a sua mãe, escondendo do leitor tudo aquilo que há de humano e desprezível em todos nós (veja a crítica do NYTimes). Garcia Marques, em contraste, faz o exato oposto com Simon Bolivar, escolhendo a dedo aqueles que parecem ser os piores defeitos de personalidade do grande líder latino-americano. Em suma, enquanto um tenta endeusar uma ilustre desconhecida, o outro tenta desmistificar uma figura endeusada por muitos.
Os personagens também não poderiam ser mais diferentes um do outro. Uma americana contemporânea, que morreu há poucos anos, já teria pouco em comum com uma mulher latino-americana da mesma idade. Mas as diferenças se tornam abissais quando a contraparte é um homem latino-americano que nasceu no século XVIII e morreu no início do século XIX. Se havia algo em comum entre eles era apenas o fato de que ambos liam muito e queriam mudar o mundo. Simon Bolívar parece ter tido, desde muito jovem, o sonho de libertar e unificar a América Latina espanhola, transformando-a em uma potência mundial. Mary Anne Schwalbe, em contraste, apenas decidiu que poderia fazer algo para mudar o mundo quando já era mais velha, depois de passar a maior parte de sua vida cuidando dos filhos e tendo empregos bastante comuns. Só aí que ela começa a fazer um trabalho para ajudar refugiados. Ainda assim, os livros sugerem que, apesar de estarem ambos à beira da morte, eles viviam momentos muito distintos. Simon Bolívar acaba de renunciar à presidência, devido a uma forte oposição política, e está completamente desiludido com a idéia de ver seu projeto de unificação realizado. Em contraste, Mary Anne está, até os últimos dias de vida, trabalhando vigorosamente, sob a crença de que conseguirá realizar seu maior projeto: construir uma biblioteca no Afeganistão.
Apesar dessas diferenças todas, e apesar de ambos os livros serem apenas literatura, eu me encontro constantemente pensando que ambos refletem um debate bastante atual entre aqueles preocupados com desenvolvimento. Mary Anne acredita que os países desenvolvidos podem mandar dinheiro e prestar serviços para ajudar pessoas em países pobres, ajudando assim a melhorar as condições de vida da população. O projeto dela de construir uma biblioteca no Afeganistão ilustra bem isso. Simon, em contraste, explicita em uma discussão com um francês todo seu desprezo por essas tentativas de ajuda, que para ele não passam de mais uma manifestação da atitude colonizadora e imperialista dos países da Europa (os supostamente desenvolvidos na época) em ajudar os povos "menos civilizados". Já exasperado com o debate, ele diz para seu interlocutor: - vocês tiveram sua Idade Média antes de chegar onde estão. Nós estamos tendo a nossa agora. Portanto, deixe-nos em paz! Ou seja, Simon resistia à idéia de que a América Latina (ou outros países menos desenvolvidos) simplesmente poderiam ser guiados pelas idéias ou pelo exemplo de países mais ricos e mais desenvolvidos. Imagino que ele seria ainda mais resistente a possibilidade de receber ajuda direta desses países. Ou seja, acho que ele não gostaria de ver o tipo de intervenção promovida por Mary Anne em seu território.
Além de acreditar que um povo precisa passar por um processo interno e único de desenvolvimento, Simon Bolívar acreditava que era importante que isso fosse garantido através de instituições políticas que permitissem a participação do povo. Isso garantiria, por exemplo, que uma cidade não ganhasse uma coleção de livros, quando seus habitantes são todos analfabetos. Ou que se investisse uma quantidade significativa de dinheiro para construir uma biblioteca, quando os habitantes da cidade prefeririam ter uma praça.
Em suma, quando eu olho para as crenças e princípios de ambos, eu acabo vendo, de um lado, uma tirana centralizadora disfarçada na figura de uma velinha simpática e doce que dizia querer fazer o bem para a humanidade. Do outro lado, vejo um democrata e verdadeiro defensor da liberdade de escolha (cada um que decida o que favorece seu próprio bem estar) disfarçado na figura de um velho mal humorado, agressivo e por vezes cruel. Não gostaria de ser amiga de nenhum dos dois, mas depois de ler esses livros acho que o mundo precisa de mais gente como Simon Bolivar e de menos pessoas como Mary Anne Schwalbe, ainda que ambos os autores estejam talvez tentando me convencer do contrário.
4 comentários:
Post brilhante e super oportuno. Há anos, arrasto comigo um questionamento sobre os limites entre ‘ajudar alguém’ e ‘impor uma visão de mundo à alguém’.
Tudo começou quando li uma crítica ao bolsa escola criada em Brasília em 1995 por Cristovam Buarque. O crítico dizia que se vc impõe condições para alguém receber o auxílio, pode significar que o recebedor é incapaz de gerir o recurso da melhor forma.
Hoje, o bolsa família exige:
• crianças de 6 a 17 anos matriculadas em escola da rede pública
• crianças de 0 a 7 anos com os cartões de vacinação em dia
• gestantes com pré-natal em dia
• mulheres em idade fértil (10 a 49 anos) com frequência regular às unidades municipais de saúde.
É difícil alguém de nossa “classe” discordar da importância desses quesitos. Mas ninguém perguntou a opinião dos beneficiários.
Pode-se argumentar que o beneficiário tem a opção de recusar o benefício. Porém, para alguém que não tem comida suficiente, nem profissão, nem recursos para sobreviver, será que existe “opção”?
Meu questionamento se aprofundou quando assisti, há mais de ano, uma reportagem na TV americana. O casal, branco-cristão-anglo-saxão, fez uma viagem a país africano e de lá trouxe um menino para ser adotado por eles. Na África, o menino vivia com os pais e 6 irmãos. A repórter perguntou se o menino não sentia falta da família de sangue. A mãe adotiva disse que nos EUA ele tinha tudo o que não tinha lá. Fez questão de mostrar o quarto do menino, com muitos brinquedos e eletrônicos. E, para matar as saudades, as fotos dos pais e dos irmãos. Fiquei estarrecido! Acho que me coloquei no lugar do menino, imaginando como teria me sentido se eu tivesse sido arrancado de minha família. (Lembro que sua mãe teve uma colega que nunca se conformou por ter sido “entregue” para ser criada por tios).
É um longo debate. Há razões para ambos os lados.
Acho que ponto muito válido no que tange ao menino, com todos os bens materiais, mas desprovido da proximidade com a família.
Sobre o bolsa família, todavia, acho a crítica equivocada. A crítica se aplicaria a "cestas básicas" ou outras benesses, pois nesse caso o estado "escolhe" o que é melhor para o indivíduo, sem consulta-lo. A bolsa família não determina como gastar o dinheiro, mas sim apenas indica o que fazer para obtê-lo.
Como estamos em uma economia de mercado, em que dinheiro não cai do céu, a exigência não me parece exdrúxula. O Estado provê a ajuda, mas exige uma contrapartida (crianças educadas e saudáveis). Um empregador também exigiria uma contrapartida (realizar o trabalho).
Ao contrário de reduzir a escolha, acho que o bolsa família pode, em algumas situações, aumentar a escolha. Imagine uma família que tem que escolher entre mandar as crianças para a escola ou mandá-las para o trabalho, para terem dinheiro suficiente para comer. Nesse caso, não há escolha, pois ficar sem comer não é uma opção. Nos casos em que o benefício do bolsa família é igual ou maior ao que as crianças conseguiriam trabalhando (o que é o caso em áreas rurais, mas não em áreas urbanas), a idéia de que se adicionou uma escolha, ao invés de retirá-la, torna-se muito clara.
"Em certo sentido, toda vida, quando narrada, é exemplar; escrevemos para atacar ou defender um sistema do mundo, para definir um método que nos é próprio. E não é menos verdade que é pela idealização ou pela crítica mordaz a todo custo, pelo detalhe omitido, que se desqualificam quase todos os biógrafos: o homem construído substitui o homem compreendido. Nunca perder de vista o gráfico de uma vida humana, que não se compõe, digam o que disserem, de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser, e o que ele foi."
Marguerite Yourcenar
Nesses tempos franciscanos (antigamente era assim que se dizia, com uma casquinha de elegância, que a gente estava na pindaíba, mas estou me referindo à feliz escolha do papa), arrangei uma coisa útil pra dizer: se quiser fazer bem a alguém, faça a seu próximo, e segure a bucha. Só assim faz sentido, só assim você poderá entender os sentimentos contraditórios que existem em ambos os lados, e sinceramente se responsabilizar quando der merda. Para mim, a pretensão de fazer o bem por procuração (por inspiração cristã, marxista, ou qualquer outra) é melhor explicada em termos de psicopatologia.
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