Achei essa música por acaso, e as memórias foram muitas.
Oswaldo Montenegro era o que eu ouvia crescendo em Brasília.
E a letra da música tem tudo a ver comigo: "fui me embora de Brasília num submarino no Lago Paranoá".
Mas o mais legal mesmo foi ver a mãe do Oswaldo, Dona Elvira Montenegro, com todo o entusiasmo que lhe é característico, sentada na platéia cantando junto. Maravilhosas lembranças da minha professora de filosofia da 5a série no colégio Alvorada....
P.S. - E de canja ainda tem Léo e Bia com participação especial de Zeca Baleiro. "No centro de um planalto vazio...."
Ontem fiz uma pequena viagem de London até Salisbury, onde se pode visitar a famosa catedral com o mesmo nome, e o monumento pré-histórico Stonehenge. Achei tudo bonito e interessante, tirei fotos como qualquer turista, etc, etc.
Mas o passeio teve uma outra dimensão, que eu apenas pude apreciar porque dou aula de direito, e mais especificamente porque vivo em um país que não apenas usa o sistema da common law, mas que ainda é bastante influenciado pela legislação inglesa.
A common law, diferentemente do sistema brasileiro e da maioria da Europa Continental (civil law), é baseada em casos. Há muito poucas leis escritas e toda e qualquer disputa trazida perante a corte é decidida pelo juiz, com base em bom senso e, se possível, fazendo referência a casos anteriores que enfrentaram a mesma questão.
Um dos primeiros casos que meus alunos lêem no curso de contratos trata de um comerciante inglês no século XIX que programou uma viagem de negócios após consultar os horários disponíveis de trens, segundo informação fornecida pela empresa (Denton v. Great Northern Railway Company, 1865). O viajante conseguiu ir de London até a primeira cidade, mas ao tentar embarcar para a segunda cidade descobriu que aquela linha não estava mais em operação. Processou a empresa pelo prejuízo que teve. Como ele não tinha comprado a passagem, mas simplesmente planejado a viagem, a pergunta era se havia um contrato entre ele e a empresa, que havia sido quebrado. A corte decidiu a favor do consumidor, criando um dos precedentes mais controversos do curso. Assim que eu comecei a programar minha viagem, consegui ver claramente o resultado do caso: as empresas de trens colocam os horários disponíveis na internet, mas avisam que não se responsabilizam por mudanças. Basta dar uma olhada nas letrinhas pequenas no último parágrafo do panfleto com os horários (aqui) E para aqueles que estão achando um absurdo as letrinhas pequenas que ninguém vai ler, há dois outros casos que discutem quão pequenas e visíveis as letrinhas devem ser. A resposta, basicamente, é: depende de quão abusiva (e portanto inesperada) for a cláusula. Nesse caso, como trata-se de senso comum, não se espera muita visibilidade. Ou seja, proteção ao consumidor aqui começou há muito tempo atrás.
Já no final do curso, discutimos um segundo caso, no qual um sujeito que tinha comprado uma pintura da catedral de Salisbury, alega que a mesma não tinha sido pintada pelo famoso John Constable (Leaf v. International Galleries, 1950). Na falta de um "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta", o caso foi parar no judiciário inglês. A pergunta que a corte teve que responder era a seguinte: o comprador pagou pela pintura que estava na frente dele, ou ele pagou por uma pintura do tal do John Constable. No primeiro caso, se ele assumiu erroneamente que era John Constable, problema dele. No segundo caso, o fato da pintura não ser o que estava estipulado no contrato invalidava a transação e dava a ele o direito de recuperar seu dinheiro. A corte acabou não respondendo a pergunta, pois disse que reclamar cinco anos depois da compra era tarde demais. Portanto, a questão da anulação do contrato devido a "erro" teve que ser decidida em outros casos.
Foi fascinante não apenas ver a famosa catedral de perto (por fora e por dentro), mas o mais interessante foi encontrar na lojinha de conveniências vários cartões postais com a famosa pintura de John Constable, que discuto todo ano com meus alunos.
Por fim, dentro da catedral, encontra-se uma das quatro cópias da Magna Carta, assinada em 1215 pelo rei João 1o. Todas as cláusulas estão em uma única página, afinal, papel não era fácil de achar naquela época!
Para caber em uma única página, o documento -- disse a guia -- contém tantas abreviações que é praticamente impossível de ler sem ser um especialista. A boa notícia é que eles oferecem uma tradução em inglês que eu e minhas colegas, todas advogadas, obviamente paramos para ler cláusula por cláusula. Tem muita coisa interessante lá (assunto que vou deixar para outro post).
Duas cláusulas que achei particulamente interessantes:
– Logo que uma mulher fique viúva,
receberá imediatamente sem dificuldade alguma, seu dote e herança,
não ficando obrigada a satisfazer quantia alguma por esta restituição,
nem pela pensão de viuvez, de que for credora, no tocante aos bens
possuídos pelo casal, até à morte do marido; poderá permanecer
na casa principal deste por espaço de quarenta dias, contados desde
o do falecimento; e se lhe consignará, entretanto, dote, caso não
o tenha sido antecipadamente. Estas disposições serão executadas,
se a sobredita casa principal não for uma fortaleza; mas, se o for,
ato contínuo, será oferecida à viúva outra casa mais
conveniente, onde possa viver com decência até que se designe o
seu dote, segundo aviso prévio, percebendo dos bens comuns de ambos
os cônjuges o necessário para sua honesta subsistência. A pensão
será conforme a terça parte das terras possuídas pelo marido, a não
ser que lhe corresponda menor quantidade em virtude de um contrato
celebrado ao pé dos altares ( " ad ostium Ecclesiae" ).
– Nenhuma viúva poderá ser
compelida, por meio do embargo de seus bens móveis, a casar-se de
novo, se prefere continuar em seu estado; ficará, porém, obrigada
a prestar caução de não contrair matrimônio sem nosso
consentimento, se estiver debaixo de nossa dependência, ou do
senhor de quem dependa diretamente.
Em um dos cursos que ministro, tenho uma aula dedicada a gênero e desenvolvimento. Nesse aula, os alunos descobrem que esse tipo de garantia sucessória básica para mulheres, estabelecido na Inglaterra em 1215, ainda não existe em muitos lugares do mundo, especialmente na África. Ou seja, 9 séculos depois, ainda há países que não incorporaram esse tipo de legislação.
E o Brasil não tem muito do que se orgulhar também. Nosso código civil de 1917 incluiu no seu artigo 219, a seguinte cláusula: "Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV – O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.” Ou seja, a mulher era tratada como uma pintura de Constable. Se não fosse mais virgem, o marido tinha o direito de anular o casamento (assim como o comprador podia anular o contrato de compra e venda). E o prazo para fazer a reclamação também era limitado: dez dias. A isso de acrescenta uma série de outras barbaridades, como o art. 242 que proibia a mulher de exercer qualquer ato da vida civil (assinar contratos, aceitar heranças ou ingressar com uma ação na justiça) sem autorização do marido. Não me surpreenderia, portanto, se em pleno início do século XX o Brasil não concedesse às mulheres direitos sucessórios que a Inglaterra havia garantido em 1215...
E não é só com relação às mulheres que o Brasil faz feio. A Magna Carta afirma:
– Nenhum bailio ou outro funcionário
poderá obrigar a quem quer que seja a defender-se por meio de
juramento ante sua simples acusação ou testemunho, se não for
confirmado por pessoas dignas de crédito.
– Ninguém poderá ser detido, preso
ou despojado dos seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude
de julgamento de seus Pares segundo as leis do país.
– Não venderemos, nem recusaremos,
nem dilataremos a quem quer que seja, a administração da justiça.
Basta olhar para tortura policial, para Pedrinhas e para a quantidade de presos aguardando julgamento no Brasil para descobrir que quase 1000 anos depois, nós ainda não implementamos nada disso.
Em suma, há um aspecto invisível das visitas a locais e monumentos que é difícil penetrar. Mas quando conseguimos acesso a esse mundo (seja através de guias, seja por causa da nossa profissão), a visita se torna muito mais rica e interessante. Não se trata apenas de uma janela para o passado, mas essa é também uma oportunidade para compreender melhor tudo que temos e vivemos hoje. Oxalá um dia as elites brasileiras comecem a vir para a Europa não apenas para se deslumbrar com a civilidade das pessoas, com a segurança e com a limpeza das ruas, mas também aproveitem a visita para aprender sobre os pilares invisíveis de tudo que nós admiramos por aqui, e gostaríamos que existisse no Brasil também.
A viagem foi longa. Do aeroporto até o apartamento que eu tinha alugado em Londres, daria mais ou menos uma hora, me informa o taxista. "E vai chover", adicionou ele.
Como era de se esperar, o comentário sobre a chuva não parou ali. Recebi um relatório detalhado sobre a temperatura e a quantidade de chuvas na semana que tinha passado e uma comparação do volume de chuvas esse ano com o do ano anterior. Quando acabou o relatório sobre o tempo em Londres, comecou o relatório sobre o tempo no resto do país. Terríveis temporais e alagamentos, pessoas desalojadas de suas casas, etc, etc.
Começou a chover. Olhei no relógio: 20 minutos tinham se passado desde que saímos do aeroporto. Estava curiosa para ver se o taxista iria passar os 40 minutos restantes falando sobre o tempo. Afinal, esse é o esteriótipo, não? Ingleses conversam sobre o tempo. Pois eu já estava pronta para aprender tudo o que há para se saber sobre a previsão meteorológica de um país onde chove 90% do tempo. Será que eles teriam mais de 50 palavras para descrever chuva, assim como os Inuits (habitantes do norte do Canadá) têm para descrever a neve? Mas para minha surpresa o taxista mudou de assunto. Tinhamos entrado na cidade e ele resolveu servir de guia turístico. Me indicava as ruas, os museus, os monumentos. Me disse que as filas nas entradas dos museums sumiriam depois do fim de semana, quando acabavam as férias escolares. Sugeriu que eu esperasse até segunda, salvo se eu gostasse muito de crianças e da companhia delas, acrescentou com uma gargalhada.... Daí entramos em um rua comercial movimentada. Vi algumas lojas que eu conhecia, mas o taxista fez questão de me mostrar a Harrods. Disse que eu podia comprar de tudo lá. Perguntei se era uma loja de departamento. Ele disse que sim, mas que era muito completa. Como eu não dei muita atenção para o assunto (afinal, consumo de bens não percevíveis não é um dos meus fortes), ele completou: "você pode até comprar animais na Harrods".
Animais? Animais, respondeu ele entusiasmadamente.
E daí veio a grande história sobre a Harrods. Diz ele que antigamente a Harrods não apenas vendia animais de estimação, como vende hoje, mas vendia qualquer tipo de animal. Bastava fazer o pedido e eles traziam o que você quisesse para Londres. Zebras, girafas, elefantes, etc. Enquanto listava os animais, o nível de entusiasmo do taxista ia aumentando. Mal sabia eu a história que me aguardava!
Segundo ele, foi nesse esquema da Harrods que um sujeito resolveu comprar um leão. Criou o leão em um apartamento, até que o bicho ficou muito grande para permanecer dentro de casa. O dono resolveu então doar o bicho para uma reserva na África, onde ele viveria com outros leões, mas sob cuidados. E a história do reencontro do leão Christian com os donos foi filmada e está disponível na internet:
Disse o taxista que, ao contrário dos donos de Christian (que foram responsáveis e mandaram o leão para um local apropriado), muitas pessoas simplesmente soltaram seus animais em território londrino. Uma boa parte delas estava tentando evitar a multa imposta por uma nova lei, que proibia a posse de animais silvestres em residências. O taxista tinha um relatório detalhado do ano e local em que vários animais exóticos tinham sido vistos por transeuntes. Eram leopardos, onças e todo tipo de bicho nas áreas rurais de Londres. As histórias eram tantas que eu não consigo lembrar de todas. Disse ele que uma parte das histórias eram mentiras, e outras eram puro engano: a pessoa vê um bicho grande, não sabe o que é, e sai pelo mundo proclamando que era uma onça.
E foi assim que eu descobri que o Londrinos não são apenas obcecados com o tempo, mas são obcecados também com histórias bizarras, como a do leão Christian e encontros inusitados com animais exóticos. Afinal, não dá pra passar tanto tempo dentro de um pub como eles passam só falando do tempo...
E a viagem terminou com uma comparação cultural:
- "Senhor, é praxe dar gorjeta para taxistas aqui?" - "Algumas pessoas dão, mas não se preocupe. A gente não é como aqueles lunáticos de Nova Iorque".
E enquanto ele descia do carro para carregar minhas malas até a porta do apartamento, eu pensei: de fato, não são mesmo! Ainda bem.