domingo, 19 de janeiro de 2014

Viajando no Direito Inglês


Ontem fiz uma pequena viagem de London até Salisbury, onde se pode visitar a famosa catedral com o mesmo nome, e o monumento pré-histórico Stonehenge. Achei tudo bonito e interessante, tirei fotos como qualquer turista, etc, etc. 



Mas o passeio teve uma outra dimensão, que eu apenas pude apreciar porque dou aula de direito, e mais especificamente porque vivo em um país que não apenas usa o sistema da common law, mas que ainda é bastante influenciado pela legislação inglesa. 

A common law, diferentemente do sistema brasileiro e da maioria da Europa Continental (civil law), é baseada em casos. Há muito poucas leis escritas e toda e qualquer disputa trazida perante a corte é decidida pelo juiz, com base em bom senso e, se possível, fazendo referência a casos anteriores que enfrentaram a mesma questão. 

Um dos primeiros casos que meus alunos lêem no curso de contratos trata de um comerciante inglês no século XIX que programou uma viagem de negócios após consultar os horários disponíveis de trens, segundo informação fornecida pela empresa (Denton v. Great Northern Railway Company, 1865). O viajante conseguiu ir de London até a primeira cidade, mas ao tentar embarcar para a segunda cidade descobriu que aquela linha não estava mais em operação. Processou a empresa pelo prejuízo que teve. Como ele não tinha comprado a passagem, mas simplesmente planejado a viagem, a pergunta era se havia um contrato entre ele e a empresa, que havia sido quebrado. A corte decidiu a favor do consumidor, criando um dos precedentes mais controversos do curso. 

Assim que eu comecei a programar minha viagem, consegui ver claramente o resultado do caso: as empresas de trens colocam os horários disponíveis na internet, mas avisam que não se responsabilizam por mudanças. Basta dar uma olhada nas letrinhas pequenas no último parágrafo do panfleto com os horários (aqui) E para aqueles que estão achando um absurdo as letrinhas pequenas que ninguém vai ler, há dois outros casos que discutem quão pequenas e visíveis as letrinhas devem ser. A resposta, basicamente, é: depende de quão abusiva (e portanto inesperada) for a cláusula. Nesse caso, como trata-se de senso comum, não se espera muita visibilidade. Ou seja, proteção ao consumidor aqui começou há muito tempo atrás.


Já no final do curso, discutimos um segundo caso, no qual um sujeito que tinha comprado uma pintura da catedral de Salisbury, alega que a mesma não tinha sido pintada pelo famoso John Constable (Leaf v. International Galleries, 1950). Na falta de um "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta", o caso foi parar no judiciário inglês. A pergunta que a corte teve que responder era a seguinte: o comprador pagou pela pintura que estava na frente dele, ou ele pagou por uma pintura do tal do John Constable. No primeiro caso, se ele assumiu erroneamente que era John Constable, problema dele. No segundo caso, o fato da pintura não ser o que estava estipulado no contrato invalidava a transação e dava a ele o direito de recuperar seu dinheiro. A corte acabou não respondendo a pergunta, pois disse que reclamar cinco anos depois da compra era tarde demais. Portanto, a questão da anulação do contrato devido a "erro" teve que ser decidida em outros casos. 

Foi fascinante não apenas ver a famosa catedral de perto (por fora e por dentro), mas o mais interessante foi encontrar na lojinha de conveniências vários cartões postais com a famosa pintura de John Constable, que discuto todo ano com meus alunos. 


  

 Por fim, dentro da catedral, encontra-se uma das quatro cópias da Magna Carta, assinada em 1215 pelo rei João 1o. Todas as cláusulas estão em uma única página, afinal, papel não era fácil de achar naquela época! 



Para caber em uma única página, o documento -- disse a guia -- contém tantas abreviações que é praticamente impossível de ler sem ser um especialista. A boa notícia é que eles oferecem uma tradução em inglês que eu e minhas colegas, todas advogadas, obviamente paramos para ler cláusula por cláusula. Tem muita coisa interessante lá (assunto que vou deixar para outro post). 



Duas cláusulas que achei particulamente interessantes: 
 


  • – Logo que uma mulher fique viúva, receberá imediatamente sem dificuldade alguma, seu dote e herança, não ficando obrigada a satisfazer quantia alguma por esta restituição, nem pela pensão de viuvez, de que for credora, no tocante aos bens possuídos pelo casal, até à morte do marido; poderá permanecer na casa principal deste por espaço de quarenta dias, contados desde o do falecimento; e se lhe consignará, entretanto, dote, caso não o tenha sido antecipadamente. Estas disposições serão executadas, se a sobredita casa principal não for uma fortaleza; mas, se o for, ato contínuo, será oferecida à viúva outra casa mais conveniente, onde possa viver com decência até que se designe o seu dote, segundo aviso prévio, percebendo dos bens comuns de ambos os cônjuges o necessário para sua honesta subsistência. A pensão será conforme a terça parte das terras possuídas pelo marido, a não ser que lhe corresponda menor quantidade em virtude de um contrato celebrado ao pé dos altares ( " ad ostium Ecclesiae" ).
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  • – Nenhuma viúva poderá ser compelida, por meio do embargo de seus bens móveis, a casar-se de novo, se prefere continuar em seu estado; ficará, porém, obrigada a prestar caução de não contrair matrimônio sem nosso consentimento, se estiver debaixo de nossa dependência, ou do senhor de quem dependa diretamente.


  • Em um dos cursos que ministro, tenho uma aula dedicada a gênero e desenvolvimento. Nesse aula, os alunos descobrem que esse tipo de garantia sucessória básica para mulheres, estabelecido na Inglaterra em 1215, ainda não existe em muitos lugares do mundo, especialmente na África. Ou seja, 9 séculos depois, ainda há países que não incorporaram esse tipo de legislação.

    E o Brasil não tem muito do que se orgulhar também.  Nosso código civil de 1917 incluiu no seu artigo 219, a seguinte cláusula: "Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV – O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.” Ou seja, a mulher era tratada como uma pintura de Constable. Se não fosse mais virgem, o marido tinha o direito de anular o casamento (assim como o comprador podia anular o contrato de compra e venda). E o prazo para fazer a reclamação também era limitado: dez dias. A isso de acrescenta uma série de outras barbaridades, como o art. 242 que proibia a mulher de exercer qualquer ato da vida civil (assinar contratos, aceitar heranças ou ingressar com uma ação na justiça) sem autorização do marido. Não me surpreenderia, portanto, se em pleno início do século XX o Brasil não concedesse às mulheres direitos sucessórios que a Inglaterra havia garantido em 1215...

    E não é só com relação às mulheres que o Brasil faz feio. A Magna Carta afirma:
     



  • – Nenhum bailio ou outro funcionário poderá obrigar a quem quer que seja a defender-se por meio de juramento ante sua simples acusação ou testemunho, se não for confirmado por pessoas dignas de crédito.

  • – Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado dos seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus Pares segundo as leis do país.



  • – Não venderemos, nem recusaremos, nem dilataremos a quem quer que seja, a administração da justiça.
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  • Basta olhar para tortura policial, para Pedrinhas e para a quantidade de presos aguardando julgamento no Brasil para descobrir que quase 1000 anos depois, nós ainda não implementamos nada disso.

    Em suma, há um aspecto invisível das visitas a locais e monumentos que é difícil penetrar. Mas quando conseguimos acesso a esse mundo (seja através de guias, seja por causa da nossa profissão), a visita se torna muito mais rica e interessante. Não se trata apenas de uma janela para o passado, mas essa é também uma oportunidade para compreender melhor tudo que temos e vivemos hoje. Oxalá um dia as elites brasileiras comecem a vir para a Europa não apenas para se deslumbrar com a civilidade das pessoas, com a segurança e com a limpeza das ruas, mas também aproveitem a visita para aprender sobre os pilares invisíveis de tudo que nós admiramos por aqui, e gostaríamos que existisse no Brasil também. 


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