sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sobre a polícia

Você acha que é só no Brasil? A polícia faz uso excessivo da força, mata inocentes e efetua prisões ilegais durante protestos no Canadá também. A diferença entre o Canadá e o Brasil, todavia, não é apenas a frequência com a qual tais problemas ocorrem, mas como o governo e a sociedade reagem a eles.

Dois exemplos de respostas a abusos pela polícia de Toronto:

1) Ontem, Toronto estava discutindo se o atual chefe da polícia deve ser reconduzido ao cargo. Discussão pública para determinar se ele fez um bom trabalho, e um debate acirrado sobre a questionável atuação da polícia (e consequentemente dele) ao repreender com violência e prisões ilegais os protestos na reunião dos G-20.

2) Hoje saiu o relatório propondo reformas no treinamento e preparação dos policiais para lidar com problemas que envolvem saúde mental. O relatório foi produzido depois que a polícia matou, no ano passado, com vários tiros, um jovem que estava armado com apenas uma faca em um bonde, tendo um surto psicótico.

Em suma, abuso e violência policial acontecem em vários lugares, não apenas no Brasil. A questão é: que medidas tomamos quando esses incidentes ocorrem? Punir quem agiu mal é importante (e os oficiais envolvidos nos dois casos foram condenados). Mas mais importante que isso é analisar que tipo de reformas são necessárias para evitar que esses problemas voltem a ocorrer no futuro. O Canadá, nesses dois exemplos, mostra duas estruturas institucionais que permitem isso.

Se o Brasil quer uma polícia mais funcional, precisa começar um debate público sobre quais estruturas institucionais precisamos para poder fazer os ajustes necessários quando os problemas (que serão inevitáveis) ocorrerem. Só assim podemos sonhar com uma polícia que se identifica menos com um esquadrão de justiceiros acima da lei e mais com o cidadão comum, que seria algo mais ou menos assim:


sexta-feira, 18 de julho de 2014

A liberdade é azul

Assisti esse filme quando ainda estava no segundo grau. Ele me marcou tanto, que voltei a vê-lo inúmeras vezes desde então. Por muito tempo, achei que era a cinematografia que me encantava. A fotografia do filme é belíssima, especialmente a predominância da cor azul. Recentemente, todavia, comecei a desconfiar que o que me atraia tanto no filme era o enredo.

A história, basicamente, é de uma mulher que perde o filho e o marido em um acidente de carro e começa a tentar cortar todos os laços que tem com outras pessoas. Ela tenta se isolar do mundo, por mais difícil que pareça a tarefa. Há várias cenas marcantes da protagonista em uma piscina vazia, buscando uma solidão que parece difícil encontrar em qualquer outro lugar. 

A fotografia do filme é tão impressionante, que levamos algum tempo até voltar a racionalizar o filme. Eu, pessoalmente, levei duas décadas. Mas assim que consegui elaborar algo mais analítico, a primeira pergunta foi: o que essa história tem a ver com liberdade? Liberdade, lembremos, é o título do filme. E ao olhar para o roteiro ficamos um pouco atormentados com a idéia de que uma mulher que acaba de perder sua família em um acidente de carro possa ser descrita, a partir daí, como um ser livre. 

Como a liberdade imposta parece algo que não deve ser celebrado, ou sequer contemplado, temos uma tendência natural a focar na liberdade escolhida ou desejada. Ou seja, a busca da protagonista por uma libertação de todo e qualquer vínculo com terceiros. É um desejo de se ver livre de sociedade e de todo e qualquer contato com outros seres humanos. Por que? Porque qualquer vínculo que se cria é uma potencial fonte de dor e sofrimento, porque é uma potencial perda. 

Uma outra interpretação é o desejo da protagonista de se livrar de toda e qualquer memória da sua vida anterior. A cena em que ela destrói a última peça na qual seu marido, um compositor, estava trabalhando, sustenta essa hipótese: ela não quer se libertar da sociedade, mas sim do seu passado. Ela quer se livrar das memórias da vida que tinha, e que perdeu. Essa é a liberdade que busca.

Eu estava trabalhando com essas hipóteses (todas aventadas em diferentes críticas do filme) quando me deparei com uma frase bastante curiosa. 

"Liberdade depois do confinamento é diferente da simples liberdade. Ainda que a liberdade em si possa ser uma forma de confinamento". 

O livro de onde veio a frase não é bom, e não faz referência alguma ao filme, mas para mim a frase ofereceu uma interpretação interessante sobre o filme: a busca por isolamento da protagonista, que pode ser lida como uma busca por confinamento, é, ao mesmo tempo, uma busca por liberdade. É um ato de liberdade porque a liberdade imposta, igualmente, é um confinamento. 

É quase como se ela estivesse protestando por ter sobrevivido ao acidente: se ela não podia ter o confinamento que escolheu (seu vínculo com o marido e o filho), ela também não quer desfrutar da liberdade imposta, que nada mais era que ser confinada a viver uma vida que ela não escolheu. Daí seu isolamento social: enquanto aquilo pode ser lido como um confinamento auto-imposto, ao mesmo tempo parece ser a forma mais robusta através da qual a protagonista consegue expressar sua escolha, e portanto afirmar sua liberdade. 

Enfim, azul não é necessariamente a cor mais quente.


P.S. - Esse post é dedicado a T., que passou por mais perdas que qualquer pessoa poderia humanamente suportar nos últimos meses.  

domingo, 13 de julho de 2014

Bundas, Accountability e Miúdos

Cá estou de volta à terrinha. Me encantei tanto com o lugar na primeira visita, que não me restou outra opção senão voltar. E uma das coisas que tinha me encantado em Portugal da primeira vez era esse português sofisticado, muito literário e quase poético, que eles usam para discutir idéias sofisticadas, mas também para coisas do dia a dia. 

Pois estava eu no jantar a elogiar a língua portuguesa usada por eles, quando fui interrompida por uma manifestação de amor ao modo como nós, brasileiros, usamos a língua. Exemplo? Bunda! Disseram entusiasmados. Bunda? Disse eu, incrédula. Sim, bunda. Responderam enfáticos.

Seguiu-se então uma longa declaração de amor ao fato de que inventamos coisas, jogamos com variações e damos cor a um mundo um tanto melancólico e triste (basta ouvir um fado para ver). Imagine, explicou uma das fã do nosso português, que os portugueses tem só as palavras rabo, traseiro e cú. Essa última, esclareceu ela, vocês usam apenas para o orifício, enquando nós, portugueses, a usamos de maneira mais abrangente para incluir também o que vocês chamam de bunda. Mas, segundo ela, não havia nada de mais leve e descompromissado do que a palavra bunda. Imagine o Jorge Amado tendo que falar "rabo de preta", ao invés de "bunda de negra". Perde-se metade da beleza da história só em essa troca de duas palavras. 

Outra palavra que os encanta é ouvidoria. Alguém que ouve. Nada mais singelo, simpático e representativo do que fazem aqueles que exercem essa função: são ouvidores. Ouvem o que os outros dizem. E em Portugal, perguntei? Temos ouvidores, mas chamamos eles dos nomes mais exdrúxulos. Nada que se compare a ouvidoria. 

A discussão sobre ouvidoria me lembrou da palavra accountability, que não tem tradução no nosso português do Brasil. Teria em Portugal?, perguntei. Também não. Perguntei se achavam que isso era sinal de que nós estávamos menos preocupados com accountability do que os países cuja língua tinha uma tradução para a palavra. 

Ora, responderam, isso é como dizer que os outros não sentem saudade só porque não tem uma tradução para a palavra. Claro que eles sentem. O anglo-saxões tem o missing e longing, que não traduz saudade, mas claramente indica que eles sentem falta, assim como nós. Talvez não sintam com a intensidade que nós sentimos, e daí a necessidade de termos uma palavra específica para esse sentimento. Ou seja, talvez essas palavras sejam uma sinal de quão profundamente algumas idéias e sentimentos penetram e vivem em certas culturas. Enquanto os anglo-saxões parecem se preocupar mais intensamente com accountability, talvez nós, os portugueses, sentimos saudades com mais intensidade, ou ao menos não nos acanhamos em expressar o que estamos sentindo, afinal somos latinos, concluiram. 

Divagações a parte, tentei sustentar que o português de Portugal era infinitamente mais poético que o nosso: considere, por exemplo, que vocês chamam as crianças de miúdos. Não consigo pensar em uma forma mais carinhosa e ao mesmo tempo mais representativa de descrever as crianças. Ora, responderam, miúdo é uma descrição literal do que são. Pessoas miúdas. Vocês inventam coisas, disseram, como a palavra supimpa. Outro exemplo? Pitaco.

Respondi que preferia mil vezes viver em um mundo povoado de miúdos e com bons vinhos, do que em um mundo cheio de bundas sumpimpas e pessoas dando pitacos em tudo, inclusive a língua portuguesa. E cá voltarei, sempre que puder.




 

  

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Sobre a civilidade alemã

Me disseram que assistir o jogo na Alemanha seria tranquilo. E foi. Todos os bares da cidade estavam com bandeiras da Alemanha e do Brasil na entrada. Um dos alemães levou uma camiseta do Brasil para me emprestar, pois a minha estava suja.

E começou o jogo.

Comemoraram o primeiro gol. No segundo e no terceiro, comemoraram, mas vieram me dizer que sentiam muito por aquilo que parecia uma pré anunciada derrota. No quarto, perguntaram o que estava acontecendo com o nosso time. No quinto, proclamaram que aquele resultado era excessivo. No sexto, se ofereceram para me levar de volta ao hotel, caso eu não quisesse continuar assistindo o jogo. No sétimo, decidiram pagar minha conta, pois segundo eles "eram o mínimo que podiam fazer". No final havia mais incredulidade do que celebração entre o grupo.

Me deixaram no hotel lamentando quão triste era para o Brasil perder em casa daquela forma. Perguntei com quem eles preferiam competir na final. A resposta foi nada estratégica: preferiam ver uma final com a Argentina, pois uma final com dois países europeus seria pouco representativa da diversidade que a copa do mundo deve representar. E assim será.

Deixo a Alemanha hoje, agradecida por toda a hositalidade, desejando a eles sorte na final e o mesmo brinde que me ofereceram na terça-feira: que vença o melhor time!