Esses dias achei um caderno antigo, com rascunhos de crônicas, anotações para o doutorado, e reflexões sobre a vida em geral. Em uma dessas reflexões eu me perguntava porque estudar.
Para os que estão se perguntando porque eu estava escrevendo sobre isso, eu explico: estudantes de doutorado fazem qualquer coisa -- qualquer coisa! -- para evitar trabalhar na tese. Alguns limpam a casa duas vezes por dia. Eu escrevia sobre tópicos que não tinham nada a ver com minha tese, e que provavelmente não iam me arranjar um emprego.
Acho que para qualquer pessoa que fez completou o segundo grau e foi para a faculdade essa pergunta não faz o menor sentido. Porém, quando você decide, depois de cinco anos de faculdade, embarcar em um mestrado de um ou dois anos, e depois um doutorado de cinco anos, essa pergunta praticamente martela na sua cabeça o dia todo, todos os dias.
Um belo dia, eu resolvi tentar respondê-la, na minha busca desesperada por desculpas para não trabalhar na tese. E a resposta que eu arrajei foi a seguinte: até o fim da faculdade, o processo de aprendizado é basicamente acúmulo de informação. O professor (ou professora) organiza o conteúdo, te explica em sala de aula, e sua função como estudante é assimilar e entender as informações que seu professor selecionou. No mestrado e no doutorado também há acúmulo de informação (e de papel!), mas a principal função do exercício é aprender a administrar todas as informações que recebemos nesse processo.
O título do post é parte de uma letra de música que capta bem a idéia. Você lê milhares de livros, artigos, relatórios e websites. Conversa com a orientadora. Volta pra casa com uma quantidade insana de informações. Daí você precisa selecionar o que fica e o que você joga fora. Escrever uma tese, mais do que qualquer outra coisa, é aprender a ignorar. Sem isso, não tem tese ou dissertação.
Ou seja, deveria haver uma progressão natural no sistema educacional, na qual começamos com um processo intenso de acúmulo de informações. Progressivamente a ênfase passaria para a administração dessa informação, e isso se tornaria o foco no nível do mestrado e do doutorado. É óbvio que isso deveria ocorrer progressivamente. Se o processo todo foi só de acúmulo de informação até o fim da faculdade não se vai produzir teses e dissertações de qualidade. E quem me conhece bem sabe que aqui eu podia ficar horas e horas reclamando das universidades brasileiras, mas vou poupá-los hoje (afinal é domingo...).
Agora, anos depois, relendo meu diário, eu acho que não foi uma má resposta. A única pergunta que fica é até que ponto qualquer sistema de acúmulo de informação é adequado com as revoluções relacionadas a tecnologia da informação. No mundo de google e wikipedia, você pode achar tudo (ou quase tudo) na internet. Com seu Iphone ou Blackberry você pode fazer isso onde e quando quiser. Portanto, o acúmulo de informação não é mais tão necessário quanto saber selecionar o que é importante, ignorar o que é inútil, e saber diferenciar fontes seguras de fontes que precisam ser investigadas com cuidado. Portanto, talvez devéssemos iniciar o processo de aprender a ignorar muito mais cedo.
Entretanto, só aprender a ignorar não é o fim da história. Há um terceiro passo aqui, que é aprender a usar essa informação. Acho que num nível muito básico, a informação serve para entendermos melhor o mundo e o que ocorre à nossa volta. Sem isso, o processo de aprendizado se torna pífio. E eu dou um exemplo. Segundo um prêmio nobel de física que deu aula no Brasil na década de 50, os alunos são muito bons em decorar fórmulas e conceitos, mas não têm a capacidade de compreender a informação que estão recebendo. Os alunos sabem recitar de cor os conceitos, mas não sabem pra que eles servem.
O mesmo acontece nas faculdades de direito: os alunos sabem recitar o que é uma enfiteuse, e memorizaram o artigo do código civil que fala de enfiteuse, mas eles não sabem te explicar para que serve uma enfiteuse. Não sabem analisar qual a função de uma enfiteuse, e como aquela definição adotada pelo código civil impacta na vida das pessoas. Eles não aprendem a pensar, por exemplo, que há diversas maneiras distintas de regular indenizações por quebra de contratos e que, dependendo da regra adotada pelo código civil, as pessoas vão quebrar contratos com maior ou menor frequência. Em contrapartida, esse é um exercício que eu faço na minha primeira aula do ano aqui no Canadá. Todos os anos, eu e os alunos temos uma longa discussão sobre as vantagens e desvantagens econômicas e sociais de deixar os contratos mais flexíveis. E essa preocupação governa todo o curso. Assim, meu alunos aprendem as regras vigentes no direito e sabem usar esse conhecimento para melhor entender o mundo em que vivem (e as vezes pra tentar mudar as coisas).
E eu acabei reclamando do Brasil apesar de ter prometido que não ia fazê-lo. Acho que é inevitável: ao sair do Brasil, eu aprendi a selecionar a usar as informações que eu recebo. E o contraste não é só gritante, mas os problemas do sistema educacional brasileiro ficam muito visíveis depois dessa experiência. Eu só fico me perguntando se a gente precisa mandar todo mundo pro exterior pra conseguir mudar alguma coisa...
2 comentários:
Aproveito o "gancho" para uma chantagem emocional (de meu interesse):
que tal vc se mudar para o Rio e tornar-se a "Dra. Feynman" no ensino do Direito?
Mesmo com google e afins alguma informação a pessoa precisa acumular para saber o que buscar...
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