Semana passada, minha faxineira encontrou uma faca na escrivaninha do escritório e perguntou o que eu estava fazendo com aquilo lá. Eu expliquei que tinha ficado trabalhando até de madrugada, comecei a ouvir barulhos no quintal no meio da noite e resolvi pegar a faca, caso alguém invadisse a casa.
Na minha resposta eu omiti o fato de que a mesma coisa já tinha acontecido antes, mas da primeira vez eu liguei pra polícia (911). Em cinco minutos, vinte homens armados, com coletes a prova de bala e lanternas no capacete, estavam vasculhando meu quintal. Eles ficaram meia hora lá pra bater na minha porta logo depois (3 da manhã, diga-se de passagem) e me dizer que o barulho eram os guaxinims mexendo no lixo. Achei que minha faxineira ia pensar que eu era muito paranóica se ela soubesse deste precedente. Mas eu me enganei.
Ao invés de me achar paranóica, minha faxineira vira pra mim e fala: - "essa faca aí não vai te proteger de nada. Se o cara entrar aqui, você precisa chegar tão perto pra conseguir esfaquear ele, que provavelmente ele já te nocauteou antes de você começar a mover a faca na direção dele. Aém disso, ainda que você consiga encostar a faca nele, você provavelmente não vai ter força pra fazer nenhum dano significativo. Esfaquear gente não é fácil assim, minha filha.... O que voce precisa mesmo é de um taco de baseball!"
A explicação para o taco, como vocês podem imaginar, segue toda a lógica que ela usou para ridicularizar minha faca: não precisa chegar perto pra acertar o cara e não precisa de tanta força (o peso do taco com a gravidade resolvem o problema). A dica dela foi pra eu mirar na cabeça. Eu resisti à proposta: - mas se eu acertar a cabeça eu mato o sujeito! Ela não titubeou: - tem que matar mesmo. Entrou um sujeito armado na sua casa? É você ou ele."
Perguntei de onde ela tirou toda essa sabedoria sobre como matar sujeitos armados. Ela respondeu que fazia isso na Jamaica, porque ela não tinha uma arma. Lá, segundo ela, muita gente anda armada e as casas são invadidas com frequência.
Mais do que sabedoria sobre como se defender de homens armados, a conversa revela uma coisa muito interessante: nós duas transferimos a percepção de risco que adquirimos nos nossos respectivos países para o Canadá. Para confirmar minha hipótese, pergunto se ela se protege de invasões de casas e homens armados no Canadá. Ela me diz que tem um taco em casa. E explica que quando os netos dela ficam na casa dela, ela coloca todos eles pra dormir no quarto dela e dorme na sala com o marido. Ela tem medo que invadam o apartamento no meio da noite e levem as crianças. E acrescentou: só levam se passarem por cima do meu taco!
A triste conclusão é que é muito difícil racionalizar nossas percepções de risco. Eu me informo sobre as estatísticas de crimes em Toronto (que sào baixas), tenho todas as razões para acreditar que estou bastante segura na minha casa (que tem alarme, vale esclarecer) e, caso eu precise de ajuda, eu sei que a polícia aqui efetivamente faz valer meus impostos. Além disso, eu sei que tem quaxinims no meu quintal. Mas ainda assim, minha percepção de risco é provavelmente similar à que eu teria se estivesse no Brasil e o resultado é que eu fico alerta quando ouço barulhos no quintal as 3 da manhã.
O mais irônico desta história é que eu escrevi uma crônica em 2004 pedindo para meus pais -- e qualquer outro eventual leitor -- serem mais racionais com suas percepções de risco. Acho que meu pedido acaba de perder toda a credibilidade. Bom, fica a crônica original, pra vocês verem como o mundo dá voltas. Enquanto vocês lêem, vou comprar um taco de baseball e já volto.
Cada um acredita no que quer, e teme o quanto pode
A moda agora nos Estado Unidos é o aparelho portátil de música da Apple, chamado Ipod. Em todo lugar que você vai, todas as pessoas com menos de trinta e cinco anos têm um (e algumas acima dessa idade também têm). Para não ficar de fora, comprei o meu e comuniquei minha mais nova aquisição à família e aos amigos. Como todo(a) estudante, não tenho carro, casa própria e minha propriedade de maior valor no momento é o meu computador. Portanto, a aquisição de um Ipod me pareceu um momento merecedor de atenção.
Dois dias depois, recebo do meu pai um e-mail dizendo que saiu na Folha de S. Paulo que o índice de roubo de Ipods no metrô de Nova Iorque aumentou em 50%. Três meses depois, em julho de 2005, minha mãe me manda a notícia de que um jovem havia sido morto no Brooklyn quando se recusou a entregar seu Ipod para um grupo de assaltantes. Enfim, meus pais temiam que minha mais nova aquisição colocasse em risco minha segurança, ou mesmo minha vida....
Depois de investigar as notícias em outras fontes, descubro que o índice de roubo de Ipods em NY de fato aumentou. Em um ano, subiu de zero para cinquenta. Ou seja, no período de um ano, cinquenta Ipods foram roubados em NYC. Dentre esses, um dos roubos gerou uma briga entre a gangue de assaltantes e os moleques que estavam sendo atacados (todos da mesma idade). Essas estatísticas mostram que as chances do meu Ipod ser roubado são mínimas, em especial se você considerar que eu não moro em Nova Iorque, e que provavelmente nenhum incidente desse tipo aconteceu na minha cidade até hoje. Mas como diz o ditado popular, "tudo tem uma primeira vez", e "você pode ser a próxima (e a primeira) vítima". Caso a profecia do ditado se realize, podem ter certeza que eu não vou em envolver em uma briga de chutes e pontapés com moleques de quinze anos.Entrego o Ipod e cada um segue seu destino.
Em contraste com essa realidade, em 2004, morreram 38 mil pessoas a tiros no Brasil. Uma pessoa a cada 15 minutos. Portanto, meus pais precisam tomar muito mais cuidado com pessoas armadas no Brasil, do que eu com assaltantes em busca de Ipods nos Estados Unidos. Na verdade 24 em cada 25 vítimas de armas de fogo no Brasil são homens. (http://www.soudapaz.org). Portanto, meu pai precisa se precaver ainda mais que minha mãe...
O interessante de toda história é que ela mostra algo que acontece com muita frequência. Um amigo meu está escrevendo uma tese sobre como as percepções das pessoas, e não a realidade em si, afetam o comportamento humano. Segundo ele, o comportamento cotidiano de pessoas normais pode ser em grande parte explicado pelo modo como as pessoas processam as informações que elas recebem, e como elas o fazem de maneira bem pouco objetiva. Como resultado, tendem a se proteger de maneira excessiva de riscos que são bastante improváveis, enquanto vivem totalmente desprotegidas de coisas que de fato apresentam ameaçam concretas.
Exemplo: está na moda agora aqui nos Estados Unidos coletar sangue do cordão umbilical dos recém nascidos, para que eles possam ter uma chance de tratamento caso venham a ter leucemia ou alguma outra doença fatal. Semana passada me deparei com um artigo de um médico dizendo que, na véspera do nascimento do seu filho ele se deparou com a questão e resolveu fazer um pouco de pesquisa sobre o assunto. Acabou por descobrir que a probabilidade de seu filho ter alguma das doenças curadas pelo sangue do cordão umbilical (ou as células tronco do mesmo) é ínfima. Apesar disso, milhares de pessoas estão pagando fortunas para manter o cordão umbilical de seus filhos em bancos de células tronco.
Logo depois, encontrei em outra revista uma estatística assustadora: uma criança que acaba de nascer tem 50% mais chances de morrer afogada na piscina no quintal de sua casa, do que de acidente com uma arma de fogo que seus pais possuam. Apesar disso, alguns estão lutando arduamente para diminuir o número de armas de fogo no Brasil, enquanto continua aumentando o número de piscinas nos quintais (o que ainda cresce em proporções inferiores ao número de cordões umbilicais armazenados...).
Tudo isso é resultado de impressões. As pessoas recebem as informações, se impressionam, ficam com medo, e resolvem tomar medidas contra aquilo sem se perguntar de fato qual o risco que aquilo representa para elas. Sabe-se que há risco de que a criança tenha leucemia, então os pais guardam o cordão umbilical sem se perguntar quanto de risco essa doença de fato representa. Se os pais estivessem tentando pensar objetivamente sobre os riscos de morte de suas crianças, estariam elencando os mais diferentes fatores, analisando estatísticas, e estariam se perguntando também se se eles deveriam estar se livrando do revólver que têm guardado no armário, ou da piscina no quintal.
Entretanto, parece que guardar o cordão umbilical no banco de sangue já traz a paz de espírito necessária para muitas pessoas. Por que? Claro que há um mecanismo cognitivo que parece instrínsico a todo o ser humano. Mas junto com isso, parece também que algumas informações parecem receber mais atenção e destaque que outras. Parece que as pessoas são induzidas a consumir coisas que evitam riscos (como estocar as células tronco), mas parece haver muito menos informação para que elas deixem de consumir coisas que criem riscos (como piscinas e armas). Eu me pergunto até que ponto as informações (sobre as vantagens de estocar condões umbilicais) e a falta de informação (como os riscos de crianças morrerem afogadas em piscinas domésticas) que chegam até as pessoas comuns, que são em sua maioria consumidoras também, não tem alguma ligação com o interesse de algumas indústrias. Ora, se o cordão umbilical for jogado fora, o banco de sangue não ganha dinheiro algum. O mesmo acontece se piscinas não foram contruídas e armas não forem compradas. Não tenho provas contra ninguém. Estou apenas especulando....
Mas não me entendam mal. Não quero que as pessoas deixem de construir piscinas, dirigir carros, usar energia elétrica, etc. Todas essas coisas, além de trazerem riscos, trazem também vantagens e deleites. Ninguém ter por objetivo de vida conseguir respirar o maior número de vezes possíveis. Queremos todos aproveitar a vida, ao máximo. Portanto, à vezes queremos respirar melhor, ainda que isso implique o risco de respirar menos vezes. Não tenho nada contra isso. Minha sugestão, para não dizer súplica, é que as pessoas prestem mais atenção nos fantasmas reais, e se precavejam contra vendedores que estão prontos a fazer você gastar seu dinheiro com fantasmas imaginários: às vezes, aquele mesmo dinheiro poderia estar sendo usado para efetivamente salvar sua vida.
E aqui vai o recado para os meus pais, que motivaram todas essa divagação: os minutos de preocupação que vocês tiveram com meu novo Ipod poderiam ter sido melhor utilizados na apreciação de um bom vinho, de um bom filme, de um lindo por-do-sôl, ou (sem querer ser irônica) de uma boa música. Sabendo que vocês não são tão hedonistas quanto eu gostaria, talvez vocês prefiram continuar se preocupando. Nesse caso, vocês podem usar esses mesmos minutos para se preocupar com o risco de homicídio no Brasil e com maneiras de se proteger. Adotem isso como princípio, e, assim, poderemos ser todos mais tranquilos e felizes apesar dessas mentes traiçoeiras que vieram ao mundo junto conosco, e que foram implantadas dentro dos nosso crânios, e que não podem ser tratadas nem com nossas células-tronco...
Um comentário:
Sua faxineira,grande estrategista...
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