Esse post devia se chamar a Maldição da Raça Humana, mas achei melhor ficar com o título mais tradicional, por razões que devem ficar claras no decorrer da leitura (e se não ficarem, eu explico no final...).
Semana passada tive a oportunidade de jantar com Ken Wiwa, que atualmente trabalha como assessor especial para o Presidente da Nigéria. Ken ficou famoso pelo livro, In The Shadow of a Saint, no qual ele conta a história do pai, Ken Saro-Wiva, que lutou contra os danos e violações dos direitos humanos que a Shell -- juntamente com a ditadura militar da Nigeria -- causou à comunidade deles, os Ogoni. Recentemente a fama dele foi reavivada por um acordo de 15 milhões de dólares que ele fechou, juntamente com outras pessoas da comunidade dele, para encerrar uma ação na justiça norte-americana contra a Shell. E tudo isso (o emprego atual, o livro, e o acordo) está ligado à maldição dos recursos naturais.
A tal maldição ocorre em países ricos em recursos naturais, como o petróleo. Tais riquezas naturais geram o que os economistas chamam de doença holandesa, que é a valorização da moeda e consequentemente a eliminação de todos os setores exportadores no país. A Venezuela, por exemplo, exportava chocolate para o mundo antes de descobrirem o petróleo e hoje não há sequer resquícios desse setor por lá.
Mas a coisa toda não se chama maldição só por causa da doença holandesa. Há ainda outros componentes. Um deles é a o aumento no uso de recursos público e inchamento da máquina estatal. O Estado, ao receber uma bolada, se expande, aumentando em especial o tamanho da burocracia. O problema é que o preço do petróleo oscila, e os gastos com a burocracia são fixos. É como se você alugasse um apartamento, ou contratasse uma empregada, sem ter certeza se você vai ter salário no fim do mês. Se o salário não entrar (ou se o preço do petróleo cair) você não consegue cortar seus gastos fixos e vai ser forçado a se endividar para pagar a conta. Se nesse meio tempo o país tiver matado todos os outros setores da economia, a queda no preço do petróleo signica uma crise econômica não só para o estado. E daí a coisa tende a virar uma bola de neve...
Uma das piores consequências da maldição dos recursos naturais é que o governo consegue dinheiro sem cobrar impostos. Por isso, sem ter que prestar contas de como gasta (como teria que prestar caso estivéssemos falando de impostos), o governo se torna menos democrático (para os que conhecem o jargão acadêmico, menos accountable) abrindo portas para abusos (como as violações de direitos humanos na Nigéria) e muita corrupção. Em alguns casos, as disputas pelo controle desses recursos (que passa a ser em grande parte uma disputa pelo controle do poder político) leva a sangrentas guerras civis.
Uma das lições da maldição dos recursos naturais é a mesma dos ganhadores de loteria. Em geral, as pessoas que ganham na loteria acabam mais pobres do que eram antes de receber o prêmio, simplesmente porque ao invés de fazer um planejamento financeiro, elas tratam o prêmio como uma fonte inesgostável de renda. Até que a fonte acaba e tudo que resta são dívidas. Em geral, antes do prêmio, essas pessoas não tinha dívidas porque administravam de maneira sensata seus modestos recursos. Da mesma forma, países ricos em recursos naturais correm o risco de tratar essa receita como um prêmio de loteria, e o resultado é desastroso: níveis baixos de crescimento econômico, burocracias ineficientes e inchadas, governos corruptos e, em muitos casos, guerras civis. Em grande parte, isso ocorre porque eles gastam mal o dinheiro.
A solução pra tudo isso é colocar o dinheiro em um fundo, e ir gastando aos poucos e gastando nas coisas certas. E é essa a missão de Ken Wiwa atualmente: ele tem que estabelecer qual vai ser a estrutura do fundo que vai administrar os recursos que a comunidade dele vai receber da Shell. Ele tem que garantir que esses recursos serão bem gastos. E, para isso, ele me disse que quer um fundo que não seja vinculado de forma alguma ao governo. Segundo ele, envolver o governo é receita pra arranjar confusão.
Ele tem acompanhado de perto as discussões sobre o assunto no Brasil, com a descoberta de novos poços de petróleo. Perguntei pra ele se ele acha que vamos dar conta do recado (ou seja, se vamos conseguir evitar a maldição dos recursos naturais). E ele respondeu: - a boa notícia é que tem gente preocupada com isso no Brasil. Nesse sentido, vocês já estão um passo adiante de onde a Nigéria estava quando encontramos petróleo. Mas uma coisa é certa: não dá pra mudar a natureza humana. E quando tem tanto dinheiro assim envolvido, você nunca sabe do que as pessoas são capazes.
Pois é. Pra lidar com a maldição dos recursos naturais, precisamos primeiro lidar com a maldição da ganância humana...
terça-feira, 29 de setembro de 2009
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
De volta ao início
Na sexta-feira fui assistir o Mistério da Estrada de Sintra, um filme português sobre um livro do Eça de Queiroz.
Numa parte pouco interessante do filme, comecei a divagar sobre a vida na época em não havia telefone ou carros. Pensei que as pessoas escreviam muito. Mandava-se cartas, bilhetes, convites por escrito. De repente, eu percebi que estamos, graças à toda nossa avançada tecnologia, voltando àquela época. Convites hoje chegam por email. As pessoas escrevem sobre suas vidas na internet (como eu!). Os softwares de mensagens instantâneas são como aqueles bilhetes de antigamente, em que alguém mandava um mensageiro que, além de entregar a mensagem, ficava aguardando a resposta ali mesmo para trazê-la de volta ao remetente.
Me perdi tentando lembrar das aulas do segundo grau, onde aprendíamos os debates entre autores que pensavam que a história da humanidade marca uma progressão de fases, enquanto outros argumentavam que era um processo circular. Será que era Hegel que dizia isso? Não tive certeza dos nomes dos autores, mas uma coisa é certa: ao menos na importância da escrita nas nossas vidas, parece que estamos de volta onde começamos. Portanto, podemos dar razão àqueles que acreditam que a história é circular, sejam eles quem forem.
E depois de pensar tudo isso, estava eu de novo prestando atenção no filme, que tinha voltado a ficar interessante...
Numa parte pouco interessante do filme, comecei a divagar sobre a vida na época em não havia telefone ou carros. Pensei que as pessoas escreviam muito. Mandava-se cartas, bilhetes, convites por escrito. De repente, eu percebi que estamos, graças à toda nossa avançada tecnologia, voltando àquela época. Convites hoje chegam por email. As pessoas escrevem sobre suas vidas na internet (como eu!). Os softwares de mensagens instantâneas são como aqueles bilhetes de antigamente, em que alguém mandava um mensageiro que, além de entregar a mensagem, ficava aguardando a resposta ali mesmo para trazê-la de volta ao remetente.
Me perdi tentando lembrar das aulas do segundo grau, onde aprendíamos os debates entre autores que pensavam que a história da humanidade marca uma progressão de fases, enquanto outros argumentavam que era um processo circular. Será que era Hegel que dizia isso? Não tive certeza dos nomes dos autores, mas uma coisa é certa: ao menos na importância da escrita nas nossas vidas, parece que estamos de volta onde começamos. Portanto, podemos dar razão àqueles que acreditam que a história é circular, sejam eles quem forem.
E depois de pensar tudo isso, estava eu de novo prestando atenção no filme, que tinha voltado a ficar interessante...
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Ah, essa coisa chamada desenvolvimento...
Quem acha que eu sou preconceituosa vai ter que me perdoar por esse post, mas nas últimas semanas eu fui inundada com uma série de eventos que reavivaram o meu discurso de como as coisas funcionam aqui e como ainda estamos longe de chegar perto disso no Brasil.
Hoje, por exemplo, recebi um email sobre a questão do aborto de fetos anecefálicos no Brasil. O email tinha informações sobre o que argumentam os ativistas a favor e contra aborto. Ambos os lados têm feito campanhas agressivas desde que a questão foi levada ao STF, na esperança de que pressão popular vai influenciar algum tipo de mudança.
Enquanto as pessoas lutam por aborto desses fetos no Brasil, o Canadá baniu qualquer restrição ao aborto em 1988. Isso significa que qualquer mulher, em qualquer momento da gravidez, pode entrar em um hospital público e ter o procedimento realizado gratuitamente. Há, é claro, alguns problemas aqui e acolá no sistema, mas são problemas de implementação, não de definição do que é direito ou não. A discussão jurídica sobre esse assunto foca em outras questões, como, por exemplo, o que fazer com os médicos que alegam objeção de consciência (por motivos religiosos, éticos ou morais)? Teriam eles direito de não realizar abortos? E por aí vai a discussão.
O segundo episódio foi um acidente envolvendo um carro e um ciclista, no qual o ciclista acabou falecendo. Alguns dias depois, teve um protesto dos ciclistas. Eles percorreram algumas ruas da cidade e pararam no local do acidente, onde há flores e mensagens para o ciclista que morreu, e ergueram suas bicicletas em protesto.


O ciclista era o que eles chamam aqui de bike courrier, que é o equivalente dos nossos motoboys. A diferença é que em média morrem dois motoboys por dia em São Paulo. Obviamente, não há passeata ou nada equivalente...
Uma outra coisa interessante do episódio é que o motorista era o ex-advogado geral da província, ex-membro do parlamento e atualmente era o presidente de uma agência de desenvolvimento econômico. Ou seja, é uma pessoa muito influente. Ele foi preso no local do acidente, liberado logo em seguida, pediu demissão e aguarda julgamento. O governo, preocupado em ser acusado de não submeter ele a um julgamento imparcial nomeou como "promotor independente" um dos advogados que têm mais atuado contra o governo nos últimos anos. Eu nem sei por onde começar a comparar isso ao Brasil. Talvez um bom início seria falar da recente decisão do STF com relação ao escândalo envolvendo o Palocci. Mas acho que o buraco é mais embaixo: uma das causas do problema é que a futura elite intelectual brasileira não tem qualquer interesse ou atração pelos políticos em si, e muito menos considera a possibilidade de seguir uma carreira política, como mostra a Folha hoje. É difícil pensar como vamos fortalecer o regime democrático e o estado de direito assim.
O terceiro episódio é relativo à preservação do meio ambiente. Enquanto no Brasil ainda se luta pela implementação da coleta seletiva de lixo, aqui não apenas há tal coleta, mas o governo decidiu que todos os estabelecimentos agora vão cobrar pelas sacolas de plástico. Ou seja, se você for no supermercado e não levar a sua própria sacola, você vai pagar cinco centavos por cada sacolinha.
(eu tenho a impressão de que já falei sobre isso, mas não consigo encontrar o post agora. Caso eu esteja me repetindo, é só pra mostrar que toda vez que vou no supermercado eu fico admirada em ver as pessoas com as sacolinhas que elas trouxeram de casa).
Por fim, veio uma experiência pessoal. Comprei móveis no domingo passado e na segunda de manhã a entrega estava sendo feita na minha casa, na hora marcada. Na verdade, eles ligaram uma hora antes para confirmar a entrega e, como esperado, chegou tudo conforme a encomenda. Serviço impecável. Isso contrasta com a odisséia que minha irmã teve recentemente com quatro cadeiras. Além da entrega ser agendada para semanas depois de feita a encomenda, no dia da entrega chega o produto errado. E lá se vai mais um mês, com muitas ligações para a loja e pedidos encarecidos para que alguém tome alguma providência, até as cadeiras serem entregues. Sinceramente, ninguém merece passar por isso.
Além da acusação de ser preconceituosa (seja porque tem muita coisa errada aqui também, seja porque tem muita coisa boa no Brasil), estou também aceitando a acusação de equacionar desenvolvimento com uma agenda política progressista. Afinal, quem disse que ser favorável a aborto é sinal de desenvolvimento? Mas ainda que alguns dos meus leitores discordem de mim nesse ponto, nos outros três pontos espero que haja consenso. O Brasil podia se beneficiar de uma sociedade civil mais ativa, de um sistema jurídico e político que funcionam, de um governo que fosse mais comprometido com a proteção do meio ambiente, e de uma cultura de maior respeito e proteção ao consumidor. Afinal, desenvolvimento não é só ter um alto PIB per capita, mas é também ter todas as outras coisas que tornam a vida um pouco mais decente e digna.
Hoje, por exemplo, recebi um email sobre a questão do aborto de fetos anecefálicos no Brasil. O email tinha informações sobre o que argumentam os ativistas a favor e contra aborto. Ambos os lados têm feito campanhas agressivas desde que a questão foi levada ao STF, na esperança de que pressão popular vai influenciar algum tipo de mudança.
Enquanto as pessoas lutam por aborto desses fetos no Brasil, o Canadá baniu qualquer restrição ao aborto em 1988. Isso significa que qualquer mulher, em qualquer momento da gravidez, pode entrar em um hospital público e ter o procedimento realizado gratuitamente. Há, é claro, alguns problemas aqui e acolá no sistema, mas são problemas de implementação, não de definição do que é direito ou não. A discussão jurídica sobre esse assunto foca em outras questões, como, por exemplo, o que fazer com os médicos que alegam objeção de consciência (por motivos religiosos, éticos ou morais)? Teriam eles direito de não realizar abortos? E por aí vai a discussão.
O segundo episódio foi um acidente envolvendo um carro e um ciclista, no qual o ciclista acabou falecendo. Alguns dias depois, teve um protesto dos ciclistas. Eles percorreram algumas ruas da cidade e pararam no local do acidente, onde há flores e mensagens para o ciclista que morreu, e ergueram suas bicicletas em protesto.


O ciclista era o que eles chamam aqui de bike courrier, que é o equivalente dos nossos motoboys. A diferença é que em média morrem dois motoboys por dia em São Paulo. Obviamente, não há passeata ou nada equivalente...
Uma outra coisa interessante do episódio é que o motorista era o ex-advogado geral da província, ex-membro do parlamento e atualmente era o presidente de uma agência de desenvolvimento econômico. Ou seja, é uma pessoa muito influente. Ele foi preso no local do acidente, liberado logo em seguida, pediu demissão e aguarda julgamento. O governo, preocupado em ser acusado de não submeter ele a um julgamento imparcial nomeou como "promotor independente" um dos advogados que têm mais atuado contra o governo nos últimos anos. Eu nem sei por onde começar a comparar isso ao Brasil. Talvez um bom início seria falar da recente decisão do STF com relação ao escândalo envolvendo o Palocci. Mas acho que o buraco é mais embaixo: uma das causas do problema é que a futura elite intelectual brasileira não tem qualquer interesse ou atração pelos políticos em si, e muito menos considera a possibilidade de seguir uma carreira política, como mostra a Folha hoje. É difícil pensar como vamos fortalecer o regime democrático e o estado de direito assim.
O terceiro episódio é relativo à preservação do meio ambiente. Enquanto no Brasil ainda se luta pela implementação da coleta seletiva de lixo, aqui não apenas há tal coleta, mas o governo decidiu que todos os estabelecimentos agora vão cobrar pelas sacolas de plástico. Ou seja, se você for no supermercado e não levar a sua própria sacola, você vai pagar cinco centavos por cada sacolinha.
(eu tenho a impressão de que já falei sobre isso, mas não consigo encontrar o post agora. Caso eu esteja me repetindo, é só pra mostrar que toda vez que vou no supermercado eu fico admirada em ver as pessoas com as sacolinhas que elas trouxeram de casa).
Por fim, veio uma experiência pessoal. Comprei móveis no domingo passado e na segunda de manhã a entrega estava sendo feita na minha casa, na hora marcada. Na verdade, eles ligaram uma hora antes para confirmar a entrega e, como esperado, chegou tudo conforme a encomenda. Serviço impecável. Isso contrasta com a odisséia que minha irmã teve recentemente com quatro cadeiras. Além da entrega ser agendada para semanas depois de feita a encomenda, no dia da entrega chega o produto errado. E lá se vai mais um mês, com muitas ligações para a loja e pedidos encarecidos para que alguém tome alguma providência, até as cadeiras serem entregues. Sinceramente, ninguém merece passar por isso.
Além da acusação de ser preconceituosa (seja porque tem muita coisa errada aqui também, seja porque tem muita coisa boa no Brasil), estou também aceitando a acusação de equacionar desenvolvimento com uma agenda política progressista. Afinal, quem disse que ser favorável a aborto é sinal de desenvolvimento? Mas ainda que alguns dos meus leitores discordem de mim nesse ponto, nos outros três pontos espero que haja consenso. O Brasil podia se beneficiar de uma sociedade civil mais ativa, de um sistema jurídico e político que funcionam, de um governo que fosse mais comprometido com a proteção do meio ambiente, e de uma cultura de maior respeito e proteção ao consumidor. Afinal, desenvolvimento não é só ter um alto PIB per capita, mas é também ter todas as outras coisas que tornam a vida um pouco mais decente e digna.
sábado, 19 de setembro de 2009
A Sociopata
Em uma das minhas últimas viagens ao Brasil, me encomendaram um laptop. Eu e a pessoa combinamos um esquema: a pessoa compra pela internet, manda entregar na minha casa, eu tiro o laptop da caixa, gravo alguns arquivos meus, e levo como se fosse meu. Caso o pessoal da alfândega não engula a história de que o laptop é meu e cobre o imposto de importação (50% do preço do laptop) mais multa, a pessoa arca com o custo. A pessoa concordou e deu tudo certo.
Antes de viajar, todavia, almocei com um casal da amigos da Austrália e contei o plano. Eles ficaram boquiabertos. Queriam detalhes, etc. Mas o mais interessante foi a conversa quando voltei. A primeira coisa que eles perguntaram é se o "esquema" tinha dado certo. Falei que sim, mas por pura sorte. Eu, na minha habitual combinação de completa desorganização e uma quantidade insana de trabalho, deixei tudo relativo à viagem para última hora. Não deu para tirar o laptop da caixa e gravar os arquivos. Levei assim mesmo: um laptop novinho, na caixa, com plástico e tudo, dentro da minha mala. A sorte foi que não me pararam na alfândega. Se tivessem parado, ia rolar imposto e multa com certeza.
Daí minha amiga australiana vira e pergunta:
- Você está se sentindo como uma sociopata?
Fiquei sem saber o que responder. É difícil explicar para alguém que nasceu e cresceu em uma sociedade em que as pessoas observam e obedecem as normas (em especial leis) o que é o Brasil. Ainda que eu falasse que muita gente faz o mesmo, ela só ia achar que o Brasil estava cheio de sociopatas...
Aproveitando que ela é formada em direito, resolvi me livrar do problema com um argumento jurídico. Falei para ela que eu não obedecia as leis que regulavam importação de produtos industralizados no Brasil por objeção de consciência (conscientious objection). Não sei se a tradução para o português está correta, mas em inglês o termo se refere àqueles que se recusam a participar de uma guerra por razões religiosas, morais ou éticas. Um exemplo são religiões pacifistas, como os menonitas. Essas pessoas ficam isentas de prestar serviço militar obrigatório. Da mesma forma -- argumentei -- eu posso me recusar a pagar o imposto porque eu discordo das razões pelas quais o mesmo foi criado.
Na década de 60, o Brasil adotou uma política de substituição de importação através da industrialização. Para proteger toda e qualquer indústria nascente (real, potencial, ou meramente imaginária), o Brasil colocou um imposto de importação absurdo sobre produtos industrializados. Eles só se esqueceram que indústria de tecnologia de ponta, como computadores, não vai se desenvolver com os índices de analfabetismo e a educação de péssima qualidade que temos. E, de fato, os tigres asiáticos definiram alfabetização como prioridade número um, e tomaram a liderança em setores de alta tecnologia. E a gente ficou a ver navios. Mas o imposto continua lá, protegendo a nossa sempre possível, ainda que improvável, indústria nacional de produção de computadores...
Minha amiga riu da resposta. Achei que era um bom sinal: se sou de fato uma sociopata, sou uma sociopata bem articulada... Dias depois, todavia, eu me peguei de novo pensando que sou de fato uma sociopata. E isso aconteceu no consultório de um dentista.
Tive que fazer um canal. Para quem não sabe, canal é um procedimento que remove a raiz do dente. Na minha infância, sempre vi o canal como uma coisa horrenda. Para mim, era a pior coisa que pode acontecer com seu dente, pois o canal "mata" o dente. Na minha cabeça, não havia maior sinal de fracasso: deram para você uns dentes para cuidar (acho que são 36) e você não cuidou de um deles direito. Era como se seu Tamagotchi morresse...
Fui para o consultório do dentista pensando que sentir culpa por "matar" um dente era uma infantilidade. Acreditei piamente que isso era uma atrocidade quando eu tinha 12 anos, mas 20 anos depois não fazia o menor sentido continuar a pensar isso. Estava absolutamente convencida disso até sentar na cadeira do dentista. O sujeito me perguntou como eu estava e começou a falar com meu dente logo em seguida, como se meu dente fosse um ser vivo e falante. Quando já estávamos no meio do procedimento, ele começou a falar coisas do tipo:
- É, seu danado, você não vai morrer sem lutar, né?
ou
- Já deu tanto trabalho até agora, era ingenuidade minha esperar que não ia dar trabalho na hora de morrer!
Tentei pensar em uma objeção de consciência pra justificar a morte do meu dente, mas eu só conseguia pensar em objeções de consciência para pedir para o sujeito parar com o canal ali mesmo. Minha saída foi pensar que eu estava apenas testemunhando o assassinato do meu dente, mas eu não era a assassina. O sociopata, portanto, era meu dentista. Esse raciocínio durou, todavia, dois segundos, pois eu tinha solicitado o serviço. Eu era, portanto, a mandante do crime -- o que ainda me qualificava como uma sociopata. Meu dentista era um mero jagunço...
Daí me lembrei que na época em que fui vegetariana, eu lia com frequência pessoas argumentando que não devemos comer nada que não teríamos coragem de matar pessoalmente. Ou seja, ao comprar carne no supermercado, eu também estou sendo a mandante do assassinato da vaca. Foi essa lembrança que me salvou. Se havia algum assassinato para impedir (antes de pedir para meu dentista jagunço parar com a execução), era parar de mandar matar os animais. Afinal, a diferença entre os animais e meu dente é que eles não ficam latejando e me incomodando o dia inteiro. Decidi, portanto, que eu ia de fato ser uma sociapata naquele momento, pois eu precisava que meu dente me deixasse em paz. Sobre os animais, estou pensando sobre o assunto...
Antes de viajar, todavia, almocei com um casal da amigos da Austrália e contei o plano. Eles ficaram boquiabertos. Queriam detalhes, etc. Mas o mais interessante foi a conversa quando voltei. A primeira coisa que eles perguntaram é se o "esquema" tinha dado certo. Falei que sim, mas por pura sorte. Eu, na minha habitual combinação de completa desorganização e uma quantidade insana de trabalho, deixei tudo relativo à viagem para última hora. Não deu para tirar o laptop da caixa e gravar os arquivos. Levei assim mesmo: um laptop novinho, na caixa, com plástico e tudo, dentro da minha mala. A sorte foi que não me pararam na alfândega. Se tivessem parado, ia rolar imposto e multa com certeza.
Daí minha amiga australiana vira e pergunta:
- Você está se sentindo como uma sociopata?
Fiquei sem saber o que responder. É difícil explicar para alguém que nasceu e cresceu em uma sociedade em que as pessoas observam e obedecem as normas (em especial leis) o que é o Brasil. Ainda que eu falasse que muita gente faz o mesmo, ela só ia achar que o Brasil estava cheio de sociopatas...
Aproveitando que ela é formada em direito, resolvi me livrar do problema com um argumento jurídico. Falei para ela que eu não obedecia as leis que regulavam importação de produtos industralizados no Brasil por objeção de consciência (conscientious objection). Não sei se a tradução para o português está correta, mas em inglês o termo se refere àqueles que se recusam a participar de uma guerra por razões religiosas, morais ou éticas. Um exemplo são religiões pacifistas, como os menonitas. Essas pessoas ficam isentas de prestar serviço militar obrigatório. Da mesma forma -- argumentei -- eu posso me recusar a pagar o imposto porque eu discordo das razões pelas quais o mesmo foi criado.
Na década de 60, o Brasil adotou uma política de substituição de importação através da industrialização. Para proteger toda e qualquer indústria nascente (real, potencial, ou meramente imaginária), o Brasil colocou um imposto de importação absurdo sobre produtos industrializados. Eles só se esqueceram que indústria de tecnologia de ponta, como computadores, não vai se desenvolver com os índices de analfabetismo e a educação de péssima qualidade que temos. E, de fato, os tigres asiáticos definiram alfabetização como prioridade número um, e tomaram a liderança em setores de alta tecnologia. E a gente ficou a ver navios. Mas o imposto continua lá, protegendo a nossa sempre possível, ainda que improvável, indústria nacional de produção de computadores...
Minha amiga riu da resposta. Achei que era um bom sinal: se sou de fato uma sociopata, sou uma sociopata bem articulada... Dias depois, todavia, eu me peguei de novo pensando que sou de fato uma sociopata. E isso aconteceu no consultório de um dentista.
Tive que fazer um canal. Para quem não sabe, canal é um procedimento que remove a raiz do dente. Na minha infância, sempre vi o canal como uma coisa horrenda. Para mim, era a pior coisa que pode acontecer com seu dente, pois o canal "mata" o dente. Na minha cabeça, não havia maior sinal de fracasso: deram para você uns dentes para cuidar (acho que são 36) e você não cuidou de um deles direito. Era como se seu Tamagotchi morresse...
Fui para o consultório do dentista pensando que sentir culpa por "matar" um dente era uma infantilidade. Acreditei piamente que isso era uma atrocidade quando eu tinha 12 anos, mas 20 anos depois não fazia o menor sentido continuar a pensar isso. Estava absolutamente convencida disso até sentar na cadeira do dentista. O sujeito me perguntou como eu estava e começou a falar com meu dente logo em seguida, como se meu dente fosse um ser vivo e falante. Quando já estávamos no meio do procedimento, ele começou a falar coisas do tipo:
- É, seu danado, você não vai morrer sem lutar, né?
ou
- Já deu tanto trabalho até agora, era ingenuidade minha esperar que não ia dar trabalho na hora de morrer!
Tentei pensar em uma objeção de consciência pra justificar a morte do meu dente, mas eu só conseguia pensar em objeções de consciência para pedir para o sujeito parar com o canal ali mesmo. Minha saída foi pensar que eu estava apenas testemunhando o assassinato do meu dente, mas eu não era a assassina. O sociopata, portanto, era meu dentista. Esse raciocínio durou, todavia, dois segundos, pois eu tinha solicitado o serviço. Eu era, portanto, a mandante do crime -- o que ainda me qualificava como uma sociopata. Meu dentista era um mero jagunço...
Daí me lembrei que na época em que fui vegetariana, eu lia com frequência pessoas argumentando que não devemos comer nada que não teríamos coragem de matar pessoalmente. Ou seja, ao comprar carne no supermercado, eu também estou sendo a mandante do assassinato da vaca. Foi essa lembrança que me salvou. Se havia algum assassinato para impedir (antes de pedir para meu dentista jagunço parar com a execução), era parar de mandar matar os animais. Afinal, a diferença entre os animais e meu dente é que eles não ficam latejando e me incomodando o dia inteiro. Decidi, portanto, que eu ia de fato ser uma sociapata naquele momento, pois eu precisava que meu dente me deixasse em paz. Sobre os animais, estou pensando sobre o assunto...
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Revelações
Hoje eu descobri que na minha infância eu já estava lendo pesquisa médica de ponta.
Meu livro favorito, A Curiosidade Premiada, mostra o mesmo que uma pesquisa recente da universidade de Toronto: há uma ligação entre curiosidade e inteligência....
Meu livro favorito, A Curiosidade Premiada, mostra o mesmo que uma pesquisa recente da universidade de Toronto: há uma ligação entre curiosidade e inteligência....
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
O legado
Minha avó morreu no dia 5 de setembro, mas um pedacinho dela ficou em cada um dos netos.
A., o "primogênito", ficou com a sinceridade cortante, por vezes politicamente incorreta, mas sempre divertida, da minha vó.
M., o segundo mais velho, ganhou o dom da cozinha, preparando banquetes para batalhões (i.e. para a nossa família gregária e numerosa) em panelas enormes, sem se estressar com o vai-e-vem incessante de pessoas passando pela cozinha e dando palpites para o chef a cada cinco minutos.
Eu, a terceira em ordem de nascimento, herdei o espírito protestante da minha avó, que trabalhava de sol a sol sem reclamar (com a diferença de que ela começava as 5 da manhã e eu começo mais tarde um pouquinho....).
C. ficou com o pragmatismo e a praticidade da minha vó: nessa vida não há tempo para questões filosóficas, dúvidas cruéis e dilemas paralisantes. Afinal, resolver os problemas de forma rápida e efetiva é imprescindível para mulheres que trabalham em tempo integral e têm ainda que criar os filhos...
M. guardou a capacidade de ter opiniões fortes e verbalizá-las, doa a quem doer. E juntou isso com a capacidade de ser sempre uma excelente companhia para um copo de cerveja (ou de vinho do porto...), um carteado, ou uma tarde vendo tv no sofá. Uma combinação rara e, se bobear, exclusiva de M. e da Dona Inocência.
S., assim como minha vó, toma conta da gente sem avisar. Quando você chega, sua comida preferida aparece discretamente na mesa, seu suco favorito está lá quando você abre a geladeira, a toalha dobrada surge em cima da cama, quando você pensa em tomar um banho. E assim a coisa vai: tudo para seu conforto, bem-estar e felicidade vai sendo providenciado, sem alarde. Sem uma palavra, sequer.
A segunda C., irmã de P., herdou a religiosidade com os exercícios físicos. Minha avó caminhava na praia todos os dias, as 6 da manhã. E nada - absolutamente nada - conseguia impedir ela de ir. E assim vai C., seguindo os passos da Dona Inocência.
Por fim, P., o caçula dos netos, ficou com a discrição da minha avó. Pessoas de poucas palavras, que dizem só o necessário e, às vezes, só se manifestam quando questionados. Mas ainda assim, ou talvez muito por causa disso, pessoas que vale a pena ouvir.
E junto com tudo isso, Dona Inocência deixou também um legado de frases geniais que talvez eu consiga coletar e colocar aqui em breve, com um pouco de sorte e muita ajuda daqueles que tem uma memória melhor que a minha.
A., o "primogênito", ficou com a sinceridade cortante, por vezes politicamente incorreta, mas sempre divertida, da minha vó.
M., o segundo mais velho, ganhou o dom da cozinha, preparando banquetes para batalhões (i.e. para a nossa família gregária e numerosa) em panelas enormes, sem se estressar com o vai-e-vem incessante de pessoas passando pela cozinha e dando palpites para o chef a cada cinco minutos.
Eu, a terceira em ordem de nascimento, herdei o espírito protestante da minha avó, que trabalhava de sol a sol sem reclamar (com a diferença de que ela começava as 5 da manhã e eu começo mais tarde um pouquinho....).
C. ficou com o pragmatismo e a praticidade da minha vó: nessa vida não há tempo para questões filosóficas, dúvidas cruéis e dilemas paralisantes. Afinal, resolver os problemas de forma rápida e efetiva é imprescindível para mulheres que trabalham em tempo integral e têm ainda que criar os filhos...
M. guardou a capacidade de ter opiniões fortes e verbalizá-las, doa a quem doer. E juntou isso com a capacidade de ser sempre uma excelente companhia para um copo de cerveja (ou de vinho do porto...), um carteado, ou uma tarde vendo tv no sofá. Uma combinação rara e, se bobear, exclusiva de M. e da Dona Inocência.
S., assim como minha vó, toma conta da gente sem avisar. Quando você chega, sua comida preferida aparece discretamente na mesa, seu suco favorito está lá quando você abre a geladeira, a toalha dobrada surge em cima da cama, quando você pensa em tomar um banho. E assim a coisa vai: tudo para seu conforto, bem-estar e felicidade vai sendo providenciado, sem alarde. Sem uma palavra, sequer.
A segunda C., irmã de P., herdou a religiosidade com os exercícios físicos. Minha avó caminhava na praia todos os dias, as 6 da manhã. E nada - absolutamente nada - conseguia impedir ela de ir. E assim vai C., seguindo os passos da Dona Inocência.
Por fim, P., o caçula dos netos, ficou com a discrição da minha avó. Pessoas de poucas palavras, que dizem só o necessário e, às vezes, só se manifestam quando questionados. Mas ainda assim, ou talvez muito por causa disso, pessoas que vale a pena ouvir.
E junto com tudo isso, Dona Inocência deixou também um legado de frases geniais que talvez eu consiga coletar e colocar aqui em breve, com um pouco de sorte e muita ajuda daqueles que tem uma memória melhor que a minha.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
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