Em uma das minhas últimas viagens ao Brasil, me encomendaram um laptop. Eu e a pessoa combinamos um esquema: a pessoa compra pela internet, manda entregar na minha casa, eu tiro o laptop da caixa, gravo alguns arquivos meus, e levo como se fosse meu. Caso o pessoal da alfândega não engula a história de que o laptop é meu e cobre o imposto de importação (50% do preço do laptop) mais multa, a pessoa arca com o custo. A pessoa concordou e deu tudo certo.
Antes de viajar, todavia, almocei com um casal da amigos da Austrália e contei o plano. Eles ficaram boquiabertos. Queriam detalhes, etc. Mas o mais interessante foi a conversa quando voltei. A primeira coisa que eles perguntaram é se o "esquema" tinha dado certo. Falei que sim, mas por pura sorte. Eu, na minha habitual combinação de completa desorganização e uma quantidade insana de trabalho, deixei tudo relativo à viagem para última hora. Não deu para tirar o laptop da caixa e gravar os arquivos. Levei assim mesmo: um laptop novinho, na caixa, com plástico e tudo, dentro da minha mala. A sorte foi que não me pararam na alfândega. Se tivessem parado, ia rolar imposto e multa com certeza.
Daí minha amiga australiana vira e pergunta:
- Você está se sentindo como uma sociopata?
Fiquei sem saber o que responder. É difícil explicar para alguém que nasceu e cresceu em uma sociedade em que as pessoas observam e obedecem as normas (em especial leis) o que é o Brasil. Ainda que eu falasse que muita gente faz o mesmo, ela só ia achar que o Brasil estava cheio de sociopatas...
Aproveitando que ela é formada em direito, resolvi me livrar do problema com um argumento jurídico. Falei para ela que eu não obedecia as leis que regulavam importação de produtos industralizados no Brasil por objeção de consciência (conscientious objection). Não sei se a tradução para o português está correta, mas em inglês o termo se refere àqueles que se recusam a participar de uma guerra por razões religiosas, morais ou éticas. Um exemplo são religiões pacifistas, como os menonitas. Essas pessoas ficam isentas de prestar serviço militar obrigatório. Da mesma forma -- argumentei -- eu posso me recusar a pagar o imposto porque eu discordo das razões pelas quais o mesmo foi criado.
Na década de 60, o Brasil adotou uma política de substituição de importação através da industrialização. Para proteger toda e qualquer indústria nascente (real, potencial, ou meramente imaginária), o Brasil colocou um imposto de importação absurdo sobre produtos industrializados. Eles só se esqueceram que indústria de tecnologia de ponta, como computadores, não vai se desenvolver com os índices de analfabetismo e a educação de péssima qualidade que temos. E, de fato, os tigres asiáticos definiram alfabetização como prioridade número um, e tomaram a liderança em setores de alta tecnologia. E a gente ficou a ver navios. Mas o imposto continua lá, protegendo a nossa sempre possível, ainda que improvável, indústria nacional de produção de computadores...
Minha amiga riu da resposta. Achei que era um bom sinal: se sou de fato uma sociopata, sou uma sociopata bem articulada... Dias depois, todavia, eu me peguei de novo pensando que sou de fato uma sociopata. E isso aconteceu no consultório de um dentista.
Tive que fazer um canal. Para quem não sabe, canal é um procedimento que remove a raiz do dente. Na minha infância, sempre vi o canal como uma coisa horrenda. Para mim, era a pior coisa que pode acontecer com seu dente, pois o canal "mata" o dente. Na minha cabeça, não havia maior sinal de fracasso: deram para você uns dentes para cuidar (acho que são 36) e você não cuidou de um deles direito. Era como se seu Tamagotchi morresse...
Fui para o consultório do dentista pensando que sentir culpa por "matar" um dente era uma infantilidade. Acreditei piamente que isso era uma atrocidade quando eu tinha 12 anos, mas 20 anos depois não fazia o menor sentido continuar a pensar isso. Estava absolutamente convencida disso até sentar na cadeira do dentista. O sujeito me perguntou como eu estava e começou a falar com meu dente logo em seguida, como se meu dente fosse um ser vivo e falante. Quando já estávamos no meio do procedimento, ele começou a falar coisas do tipo:
- É, seu danado, você não vai morrer sem lutar, né?
ou
- Já deu tanto trabalho até agora, era ingenuidade minha esperar que não ia dar trabalho na hora de morrer!
Tentei pensar em uma objeção de consciência pra justificar a morte do meu dente, mas eu só conseguia pensar em objeções de consciência para pedir para o sujeito parar com o canal ali mesmo. Minha saída foi pensar que eu estava apenas testemunhando o assassinato do meu dente, mas eu não era a assassina. O sociopata, portanto, era meu dentista. Esse raciocínio durou, todavia, dois segundos, pois eu tinha solicitado o serviço. Eu era, portanto, a mandante do crime -- o que ainda me qualificava como uma sociopata. Meu dentista era um mero jagunço...
Daí me lembrei que na época em que fui vegetariana, eu lia com frequência pessoas argumentando que não devemos comer nada que não teríamos coragem de matar pessoalmente. Ou seja, ao comprar carne no supermercado, eu também estou sendo a mandante do assassinato da vaca. Foi essa lembrança que me salvou. Se havia algum assassinato para impedir (antes de pedir para meu dentista jagunço parar com a execução), era parar de mandar matar os animais. Afinal, a diferença entre os animais e meu dente é que eles não ficam latejando e me incomodando o dia inteiro. Decidi, portanto, que eu ia de fato ser uma sociapata naquele momento, pois eu precisava que meu dente me deixasse em paz. Sobre os animais, estou pensando sobre o assunto...
3 comentários:
Dente bom é dente morto, concordo. Mas, ao remover o nervo e cimentar o canal, o tecido ósseo permanece vivo. Esse seu dentista é um esquisitão!
I know this dentist. He is very funny and a bit odd. But painless. n
Ai que saudade de conversas como essa com gostinho de alfajores na ECA.
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