Durante uma das nossas conversas semanais ao telefone, minha mãe recomendou um artigo sobre meu pintor favorito que saiu na Veja. Eu tenha absoluta ojeriza pela revista, de maneira que minha resposta não foi muito entusiasmada. Minha mãe insistiu:
- Leia. O artigo está muito bem escrito. O autor do artigo diz que o Hopper é o pintor do amor.
- Pintor do amor??? Mãe, se tem alguma coisa que o Hopper não é, é pintor do amor. Ele pode ser o pintor da solidão, do vazio, da individualidade norte-americana, mas não do amor.
- Ah, minha filha, era alguma coisa poética assim...
No final das contas, o título do artigo era "O homem que pintava com a alma", o que soa bastante cliché para meus ouvidos (mas, como eu disse antes, não gosto da revista e talvez esteja sendo injusta com o sujeito que escreveu o artigo...). Mas o ponto interessante da conversa não é o quanto de poesia se pode encontrar no título do artigo, e sim a razão pela qual minha mãe se referiu ao artigo desta forma.
Em uma conversa com um colega, descobri essa semana que há dois tipos de memória. Uma memória associa um pedaço de informação com a experiência gerada para a pessoa que está adquirindo aquela informação, enquanto o outro tipo associa um pedaço de informação com outros pedaços de informação, que não estão associados àquela pessoa. Acho que o primeiro chama memória episódica e a segunda eu esqueci, então vou me referir a ela como não episódica.
O exemplo que meu colega me deu é o seguinte: se você mostra uma foto antiga, a pessoa que tem memória episódica forte, vai ser capaz de lembrar qual a ocasião em que a foto foi tirada (casamento, festa de aniversário, etc) e qual a sensação que a festa causou (boa ou ruim). Em contraste, se você mostra uma foto antiga para alguém cuja memória mais forte é a não episódica, essa pessoa consegue indicar os nomes das pessoas na foto, a profissão delas, a relação que elas têm entre si (quem é casado com quem, quem é filho de quem), mas é incapaz de lembrar quando e porque a foto foi tirada.
Algum tempo depois da conversa, eu percebi que isso explicava porque minha mãe não lembrava o título do artigo sobre o Hopper. A informação que ela tinha gravado era a impressão que o artigo tinha deixado nela, ou seja, o fato de ela achou o título e talvez o artigo bastante poético. Em contraste, uma pessoa que tem uma memória episódica fraca provavelmente associaria o conteúdo do artigo com o conteúdo de outras análises de Hopper (ou de outros pintores). Essa segunda pessoa seria portanto capaz de lembrar com precisão o título e a idéia central do artigo, mas seria pouco capaz de lembrar qual a impressão que o artigo causou nela.
Obviamente todos temos os dois tipos de memória, mas a idéia é que na maioria dos casos uma é predominante. E em alguns poucos casos, uma é quase inexistente. Eu, por exemplo, tenho uma memória absolutamente episódica, como minha mãe. A principal evidência disso é o fato de que eu não lembro o nome da segunda memória, pois gravei apenas aquela que explicava como funciona minha mente. Ou seja, assim como minha mãe, quando leio algo é mais provável que eu lembre da impressão que tive de um artigo do que das informações contidas dentro dele. Títulos? Nem pensar! Obviamente, isso dificulta um pouco minha vida acadêmica, já que toda vez que eu preciso citar alguém, eu preciso ler o negócio de novo pra ver se o(a) autor(a) estava falando aquilo mesmo (isso quando eu me lembro quem falou, pois tem dias em que nem isso eu lembro...).
Apesar dos pesares, acho que a memória episódica tem também suas vantagens: acho que eu faço mais livre associação entre as idéias, e sou mais criativa por causa disso. Acho que por isso que eu trabalho mais com políticas públicas (i.e. busca de soluções criativas para problemas complicados) e sou uma topeira no que diz respeito à atividades rotineiras de advogados, tais como memorizar códigos e procedimentos...
Coincidentemente, nessa mesma semana, me deparei com a resposta Larry Summers (ex-presidente de Harvard e ex-conselheiro do Obama) ao livro mais recente da Amy Chua (professora da faculdade de direito da Universidade de Yale), no qual ela revela a dura disciplina que impõe sobre as filhas, exigindo nada menos que excelência acadêmica e em todos os outros aspectos da vida, sob pena de castigos severos. Não sei se o livro já foi traduzido para o português, mas a tradução seria algo como "O Grito de Guerra da Mãe Tigresa". Summers disse que acha que Chua está errada, acrescentando que talvez os próprios filhos dele se surpreendam com essa afirmação. Segue minha tradução de um trecho da resposta dele:
"Em um mundo onde as coisas que exigem disciplina e austeridade podem ser feitas por computadores, será que queremos manter a ênfase -- típica da educação tradicional -- em disciplina, acuidade, desempenho impecável e regularidade? Criatividade pode ser um bem ainda mais valioso que educadores e pais deveriam enfatizar. Em Harvard, os melhores estudantes se tornam professores -- e os piores se tornam milionários que doam muito dinheiro para a escola.
Não está totalmente claro se nossa veneração pelo desempenho acadêmico tradicional é totalmente adequada. Qual dos dois primeiro-anistas de Harvard foram os que mais transformaram o mundo nos últimos 25 anos? Há bons argumentos para nomear Bill Gates e Mark Zuckerberg, e nenhum dos dois chegou a se formar. Uma exigente mãe tigresa provavelmente não apoiaria a decisão de seu filho de abandonar a faculdade."
Acho que isso não vale somente para educadores, mas vale também pra vida em geral. Nesse sentido, o artigo da Veja -- apesar de não ser poético -- é consideravelmente bom, pois enfatiza exatamente o fato de que os quadros de Hopper são extremamente abertos a leituras distintas e frequentemente contraditórias. "Ele [Hopper] já foi considerado subjetivo e objetivo, realista e modernista, formalista solitário e individualista nostálgico".Tentar comparar Hopper com contemporâneos, predecessores e antecessores ajuda a entender o que ele poderia ter sido e não foi, mas não nos diz exatamente o que ele é. A técnica dele é bastante única e tem um impacto psicológico marcante no observador, em especial naqueles que tem memória episódica (como eu!).
Apesar de ajudar a me entender e a entender minha mãe, o conceito de memória episódica pode se tornar um pouco confuso em alguns casos. O exemplo -- dado pela própria Veja - é do senhor que, durante uma das visitas guiadas à exposição, após citar Freud e identificar objetos fálicos na pintura, classificou Hopper como um homem sexualmente reprimido. Se o sujeito tem memória episódica, boa parte da interpretação é baseada no repertório pessoal dele. Por outro lado, se ele tem memória não episódica, ele pode estar simplesmente associando as informações que ele vê, com outros tipos de informações, não conectadas as ele. Enfim, não sei quem, de fato, é reprimido nessa história, Hopper ou o senhor que se aventurou a dar sua opinião...
P.S. - J. fez a gentileza de mandar os nomes exatos de cada um dos tipos de memoria:
Psychologists distinguish two types of long-term memory. One, semantic memory, records things consciously learned without first-hand experience—history lessons at school, for example. The other, episodic memory, records memorable events from a person’s own life. http://www.economist.com/node/18584074
- Leia. O artigo está muito bem escrito. O autor do artigo diz que o Hopper é o pintor do amor.
- Pintor do amor??? Mãe, se tem alguma coisa que o Hopper não é, é pintor do amor. Ele pode ser o pintor da solidão, do vazio, da individualidade norte-americana, mas não do amor.
- Ah, minha filha, era alguma coisa poética assim...
No final das contas, o título do artigo era "O homem que pintava com a alma", o que soa bastante cliché para meus ouvidos (mas, como eu disse antes, não gosto da revista e talvez esteja sendo injusta com o sujeito que escreveu o artigo...). Mas o ponto interessante da conversa não é o quanto de poesia se pode encontrar no título do artigo, e sim a razão pela qual minha mãe se referiu ao artigo desta forma.
Em uma conversa com um colega, descobri essa semana que há dois tipos de memória. Uma memória associa um pedaço de informação com a experiência gerada para a pessoa que está adquirindo aquela informação, enquanto o outro tipo associa um pedaço de informação com outros pedaços de informação, que não estão associados àquela pessoa. Acho que o primeiro chama memória episódica e a segunda eu esqueci, então vou me referir a ela como não episódica.
O exemplo que meu colega me deu é o seguinte: se você mostra uma foto antiga, a pessoa que tem memória episódica forte, vai ser capaz de lembrar qual a ocasião em que a foto foi tirada (casamento, festa de aniversário, etc) e qual a sensação que a festa causou (boa ou ruim). Em contraste, se você mostra uma foto antiga para alguém cuja memória mais forte é a não episódica, essa pessoa consegue indicar os nomes das pessoas na foto, a profissão delas, a relação que elas têm entre si (quem é casado com quem, quem é filho de quem), mas é incapaz de lembrar quando e porque a foto foi tirada.
Algum tempo depois da conversa, eu percebi que isso explicava porque minha mãe não lembrava o título do artigo sobre o Hopper. A informação que ela tinha gravado era a impressão que o artigo tinha deixado nela, ou seja, o fato de ela achou o título e talvez o artigo bastante poético. Em contraste, uma pessoa que tem uma memória episódica fraca provavelmente associaria o conteúdo do artigo com o conteúdo de outras análises de Hopper (ou de outros pintores). Essa segunda pessoa seria portanto capaz de lembrar com precisão o título e a idéia central do artigo, mas seria pouco capaz de lembrar qual a impressão que o artigo causou nela.
Obviamente todos temos os dois tipos de memória, mas a idéia é que na maioria dos casos uma é predominante. E em alguns poucos casos, uma é quase inexistente. Eu, por exemplo, tenho uma memória absolutamente episódica, como minha mãe. A principal evidência disso é o fato de que eu não lembro o nome da segunda memória, pois gravei apenas aquela que explicava como funciona minha mente. Ou seja, assim como minha mãe, quando leio algo é mais provável que eu lembre da impressão que tive de um artigo do que das informações contidas dentro dele. Títulos? Nem pensar! Obviamente, isso dificulta um pouco minha vida acadêmica, já que toda vez que eu preciso citar alguém, eu preciso ler o negócio de novo pra ver se o(a) autor(a) estava falando aquilo mesmo (isso quando eu me lembro quem falou, pois tem dias em que nem isso eu lembro...).
Apesar dos pesares, acho que a memória episódica tem também suas vantagens: acho que eu faço mais livre associação entre as idéias, e sou mais criativa por causa disso. Acho que por isso que eu trabalho mais com políticas públicas (i.e. busca de soluções criativas para problemas complicados) e sou uma topeira no que diz respeito à atividades rotineiras de advogados, tais como memorizar códigos e procedimentos...
Coincidentemente, nessa mesma semana, me deparei com a resposta Larry Summers (ex-presidente de Harvard e ex-conselheiro do Obama) ao livro mais recente da Amy Chua (professora da faculdade de direito da Universidade de Yale), no qual ela revela a dura disciplina que impõe sobre as filhas, exigindo nada menos que excelência acadêmica e em todos os outros aspectos da vida, sob pena de castigos severos. Não sei se o livro já foi traduzido para o português, mas a tradução seria algo como "O Grito de Guerra da Mãe Tigresa". Summers disse que acha que Chua está errada, acrescentando que talvez os próprios filhos dele se surpreendam com essa afirmação. Segue minha tradução de um trecho da resposta dele:
"Em um mundo onde as coisas que exigem disciplina e austeridade podem ser feitas por computadores, será que queremos manter a ênfase -- típica da educação tradicional -- em disciplina, acuidade, desempenho impecável e regularidade? Criatividade pode ser um bem ainda mais valioso que educadores e pais deveriam enfatizar. Em Harvard, os melhores estudantes se tornam professores -- e os piores se tornam milionários que doam muito dinheiro para a escola.
Não está totalmente claro se nossa veneração pelo desempenho acadêmico tradicional é totalmente adequada. Qual dos dois primeiro-anistas de Harvard foram os que mais transformaram o mundo nos últimos 25 anos? Há bons argumentos para nomear Bill Gates e Mark Zuckerberg, e nenhum dos dois chegou a se formar. Uma exigente mãe tigresa provavelmente não apoiaria a decisão de seu filho de abandonar a faculdade."
Acho que isso não vale somente para educadores, mas vale também pra vida em geral. Nesse sentido, o artigo da Veja -- apesar de não ser poético -- é consideravelmente bom, pois enfatiza exatamente o fato de que os quadros de Hopper são extremamente abertos a leituras distintas e frequentemente contraditórias. "Ele [Hopper] já foi considerado subjetivo e objetivo, realista e modernista, formalista solitário e individualista nostálgico".Tentar comparar Hopper com contemporâneos, predecessores e antecessores ajuda a entender o que ele poderia ter sido e não foi, mas não nos diz exatamente o que ele é. A técnica dele é bastante única e tem um impacto psicológico marcante no observador, em especial naqueles que tem memória episódica (como eu!).
Apesar de ajudar a me entender e a entender minha mãe, o conceito de memória episódica pode se tornar um pouco confuso em alguns casos. O exemplo -- dado pela própria Veja - é do senhor que, durante uma das visitas guiadas à exposição, após citar Freud e identificar objetos fálicos na pintura, classificou Hopper como um homem sexualmente reprimido. Se o sujeito tem memória episódica, boa parte da interpretação é baseada no repertório pessoal dele. Por outro lado, se ele tem memória não episódica, ele pode estar simplesmente associando as informações que ele vê, com outros tipos de informações, não conectadas as ele. Enfim, não sei quem, de fato, é reprimido nessa história, Hopper ou o senhor que se aventurou a dar sua opinião...
P.S. - J. fez a gentileza de mandar os nomes exatos de cada um dos tipos de memoria:
Psychologists distinguish two types of long-term memory. One, semantic memory, records things consciously learned without first-hand experience—history lessons at school, for example. The other, episodic memory, records memorable events from a person’s own life. http://www.economist.com/node/
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