Segue o trecho de um texto de Calligaris, publicado em 2001, que vem bastante a calhar:
"José Bonifácio afirmou que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática".
A desigualdade da qual se trata não é apenas de renda. Também, hoje, não é propriamente uma desigualdade civil ou política, pois, segundo a letra da lei, não há mais, entre nós, cidadãos de segunda classe.
O lugar de nosso maior mal-estar social parece estar no descompasso entre esse princípio formal e a realidade concreta. Acontece que os cidadãos das camadas mais pobres estão mudando a imagem que eles têm de si mesmos. X, por exemplo, sabe que ele não é nem servo nem escravo: ele tem direitos. Mas, ao mesmo tempo, ele é levado a tolerar uma punição e a mostrar gratidão, como um escravo. Por quê? Será que a lei não é clara? Precisa melhorá-la ou implementá-la melhor? Infelizmente, o problema, nessa altura, parece ser de solução mais difícil, pois ele é cultural ou mesmo francamente psicológico: reside na representação das classes "inferiores" no espírito de uma boa parte das elites. Coquetel complicado: os desfavorecidos começam a acreditar na igualdade dos direitos e a se ver como possíveis cidadãos. No entanto, muitos favorecidos seguem percebendo ao redor (e abaixo) de si apenas um exército de servos e escravos -para os quais imaginam e querem, por exemplo, que valha a regra: "Quebrou um prato? Leva açoite e fica sem comida!".
A violência que assola as últimas décadas não precisaria de outra causa. Bastaria esta contradição.
CONTARDO CALLIGARIS, "Valet Parking" e cidadania, Folha de SP, 26 de julho de 2001.
Há razão para se ter esperanças? Eu acho que não. Toda vez que converso com alguém da classe média, vejo implícito esse tipo de discurso. Se mudar a lei não adianta, o que vai adiantar?
PS - Obrigada, pai, pelo texto!
"José Bonifácio afirmou que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática".
A desigualdade da qual se trata não é apenas de renda. Também, hoje, não é propriamente uma desigualdade civil ou política, pois, segundo a letra da lei, não há mais, entre nós, cidadãos de segunda classe.
O lugar de nosso maior mal-estar social parece estar no descompasso entre esse princípio formal e a realidade concreta. Acontece que os cidadãos das camadas mais pobres estão mudando a imagem que eles têm de si mesmos. X, por exemplo, sabe que ele não é nem servo nem escravo: ele tem direitos. Mas, ao mesmo tempo, ele é levado a tolerar uma punição e a mostrar gratidão, como um escravo. Por quê? Será que a lei não é clara? Precisa melhorá-la ou implementá-la melhor? Infelizmente, o problema, nessa altura, parece ser de solução mais difícil, pois ele é cultural ou mesmo francamente psicológico: reside na representação das classes "inferiores" no espírito de uma boa parte das elites. Coquetel complicado: os desfavorecidos começam a acreditar na igualdade dos direitos e a se ver como possíveis cidadãos. No entanto, muitos favorecidos seguem percebendo ao redor (e abaixo) de si apenas um exército de servos e escravos -para os quais imaginam e querem, por exemplo, que valha a regra: "Quebrou um prato? Leva açoite e fica sem comida!".
A violência que assola as últimas décadas não precisaria de outra causa. Bastaria esta contradição.
CONTARDO CALLIGARIS, "Valet Parking" e cidadania, Folha de SP, 26 de julho de 2001.
Há razão para se ter esperanças? Eu acho que não. Toda vez que converso com alguém da classe média, vejo implícito esse tipo de discurso. Se mudar a lei não adianta, o que vai adiantar?
PS - Obrigada, pai, pelo texto!
Um comentário:
Interestingly I just finished reading a book called "Democracy: A history" by John Dunn. Part of the argument, it seems to me, that democracy (which according to him has an ever changing meaning and value) has survived partly because it makes the material inequalities tolerable through a constant negotiation and concessions on political equalities. This is my favorite passage,
"The role of democracy as a political value within this remarkable form of life (the world of order of egoism) is to probe constantly the tolerable limits of injustice, a permanent and sometimes very intense blend of cultural enquiry with social and political struggle."
yours truly,
n.
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