Texto de Helio Schwartsman hoje na Folha.
Fiquei feliz de ver que eu e ele estamos lendo os mesmos livros ultimamente.
"De mortuis nil nisi bene". Numa tradução livre: "Não se deve falar dos mortos senão benevolamente". A máxima é atribuída a Quilão, citado como um dos Sete Sábios. O autor é hoje um ilustre desconhecido do século 6º a.C. Sua frase, contudo, ficou. Costuma ser citada em latim (embora Quilão fosse grego) por causa de Horácio, que a imortalizou no idioma do Lácio.Como de sábio eu não tenho nada, arrisco colocar-me contra a unanimidade mundial que surgiu em torno de Steve Jobs, o executivo da Apple morto na semana passada. Não chego, é claro, a falar mal do empreendedor norte-americano, mas parece oportuno relativizar um pouco a genialidade que agora todos lhe atribuem. O que vamos discutir, no fundo, é se a própria genialidade existe ou se não passa de mais uma ilusão cognitiva.
Para o que segue, utilizo-me de ideias publicadas em livros como "The Tipping Point" (o ponto da virada), do jornalista Malcolm Gladwell, "The Drunkard's Walk" (o andar do bêbado), do físico Leonard Mlodinov, e especialmente "Everything is Obvious, Once You Know the Answer" (tudo é óbvio, uma vez que você saiba a resposta), do físico e sociólogo Duncan Watts.
Não há muita dúvida de que Jobs era uma pessoa extremamente talentosa em sua área de especialidade. Só que, como ele, há pelo menos algumas dezenas de pessoas com capacidade comparável. Apenas ele criou a Apple. Por que a diferença?
Talvez seja melhor começarmos com produtos. Alguém se lembra do Betamax, o videocassete da Sony que se tornou sinônimo de desastre comercial? Como mostra Watts, tratava-se de um excelente aparelho. Tinha uma qualidade de imagem bem superior à de seu concorrente, o VHS lançado pela Matsushita. O que pesava contra o Betamax era o preço ligeiramente superior e a menor "autonomia" de gravação. Para colocar um longa-metragem em vídeo, eram necessárias duas fitas Betamax, contra apenas uma do VHS.
Outro detalhe é que a Sony apostou na arquitetura fechada (como, aliás, a Apple), enquanto a Matsushita permitiu que vários fabricantes utilizassem a tecnologia, com o objetivo de baratear os produtos e ganhar mercado.
Nada disso, entretanto, teria sido uma barreira insuperável. Retrospectivamente, é fácil ver qual foi o erro da Sony. A empresa havia imaginado que os vídeos seriam predominantemente utilizados para gravar programas exibidos na TV e assisti-los em horários alternativos. Não era um cálculo absurdo, como se demonstra hoje pela proliferação de gravadores digitais do tipo TiVo e de serviços de TV a cabo que dão ao assinante a opção de assistir ao programa no horário em que desejarem.
No mundo real, o que aconteceu foi que, no momento preciso em que Betamax e VHS chegaram ao mercado, a moda entre usuários de videocassete era alugar filmes em videolocadoras (alguém se lembra delas?). Aí, a maior autonomia de gravação do VHS foi determinante para seu sucesso. Ela reduzia pela metade o espaço necessário nas locadoras. Acrescente-se a isso o preço ligeiramente inferior e a arquitetura aberta e a pequena vantagem inicial se viu multiplicada várias vezes.
A Sony bem que tentou reverter a situação, lançando o BII, com fitas de mais longa duração, mas já era tarde. O VHS havia vencido a corrida para tornar-se o padrão do mercado.
O grande fracasso tem, portanto, pouco a ver com estratégia e muito com mudanças nas demandas dos consumidores que estão muito perto do imprevisível. Na verdade, havia estudos realizados na Califórnia fortemente sugestivos de que o aluguel comercial de fitas não poderia funcionar.
Tomemos agora um exemplo de Jobs: o iPod. Não há dúvida de que o aparelhinho é um tremendo sucesso, que hoje se credita à liderança visionária do empresário. Só que, se olharmos bem, o iPod reproduz vários dos "erros" que as experiências do Betamax e da própria Apple no mercado de PCs nos mandariam evitar. Os iPods, afinal, são relativamente grandes e caros e estão baseados em arquitetura fechada. Pior, o sistema de vendas pelo iTunes, um monopólio virtual, deveria, até onde vai a lógica, ser rejeitado com veemência pelo consumidor.
Estamos aqui diante do que o consultor Michael Raynor batizou de paradoxo da estratégia. A única diferença relevante é que as escolhas da Sony se revelaram erradas, enquanto as da Apple se mostraram corretas --pelo menos pra o iPod. A principal causa de fracassos não é má estratégia, mas uma excelente estratégia que, por algum acaso, se traduz em malogro. O que faz com que a visão inicial de cada empresa esteja certa ou errada é simplesmente impossível de saber com antecedência.
Emerge daí a noção de que o as forças do acaso, ou melhor, o caos, onde pequenas diferenças nas condições iniciais acabam se acumulando e interagindo de maneira complexa para produzir resultados totalmente imprevisíveis, têm um papel muito mais importante em nossas vidas do que gostamos de admitir.
Numa série de experimentos que começou em 2006, Watts e seus colegas Matthew Salganick e Peter Dodds demonstraram com elegância as proporções que as pequenas diferenças iniciais podem originar. Graças à internet, eles recrutaram 14.341 participantes que deveriam escutar, avaliar e, se desejassem, fazer downloads de 48 músicas inéditas de bandas desconhecidas. Os recrutas foram divididos em oito "mundos" distintos. Em alguns deles, tinham acesso apenas ao nome da música, e, em outros, podiam ver o nome da canção e a sua popularidade, medida pelo número de downloads naquele mundo.
Como o leitor já deve ter adivinhado, esses mundos evoluíram independentemente, e o que foi sucesso num deles pode ter sido um fracasso no outro. Os pesquisadores concluíram que as influências sociais são fortes. Nos mundos onde as pessoas podiam conferir a popularidade, as músicas mais baixadas se tornaram hits, o que, evidentemente, não ocorreu na situação em que as cobaias não tinham acesso ao número de dowloads.
Seria um exagero dizer que a qualidade não importa. As canções muito bem avaliadas na condição independente não se saíram extremamente mal em nenhum dos mundos. De modo análogo, as terrivelmente mal avaliadas nunca chegaram às paradas do sucesso. Mas, mesmo assim, sobrou espaço para a imprevisibilidade. Entre as canções medianamente avaliadas, tudo podia acontecer. Elas podiam estourar ou ser esquecidas. Quem dava as cartas era o caos.
Um outro nome para essas mecânicas é efeito borboleta, numa imagem que mistura dados brutos de ciência com um bocadinho de poesia. Vale a pena conferir a história desse nome. Em 1960, o matemático Edward Lorenz testava modelos meteorológicos nos primeiros computadores. Um dia, ele resolveu projetar alguns cálculos no futuro só que, em vez de refazer todas as contas desde o início, preferiu alimentar a máquina com os dados que tinha numa planilha impressa. Os resultados do modelo original com o das projeções não batiam. Logo Lorenz percebeu que a diferença tinha uma origem prosaica.
Na conta primeva, os dados numéricos iam até a sexta casa decimal, mas, nas projeções, ele só utilizou a terceira casa, que era o limite da impressora. Assim, um número como 0,506127 entrou como 0,506, no que bastou para "produzir" climas totalmente distintos. Como a diferença entre a terceira e a sexta casa era pequena demais para ser detectada pelos instrumentos meteorológicos, Lorenz concluiu que teria sido possível que o bater de asas de uma gaivota provocasse, algumas semanas depois, um furacão do outro lado do mundo. Depois, resolveu trocar a gaivota pela mais poética borboleta, mas a ideia é a mesma: o caos influi em todos os aspectos de nossa vida, ainda que não estejamos cientes disso.
Numa escala mais humana do que meteorológica, o efeito borboleta implica que, dependendo do que o seu amigo ou vizinho faz, você pode agir de maneira inteiramente diferente. Pode parecer uma bobagem, mas isso basta para minar as explicações que o senso comum dá para fenômenos como força de vontade, sucesso e fracasso e a própria genialidade.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/989198-steve-jobs-e-as-forcas-do-caos.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário