sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A Guerra do Tráfego

Da penúltima vez que fui ao Brasil fiquei impressionada com a facilidade com que dirijo no trânsito caótico da cidade de São Paulo. São finas, fechadas, gente acelerando em cima de você quando você dá sinal para entrar na outra faixa e mais uma coleção de fofuras. Ainda assim, minha tranquilidade ao volante é espantosa. Xingo raramente e quase nunca me desespero. Na maior parte do tempo, estou prestando atenção na letra de música, notícias no rádio, ou espantada com alguma novidade nessa cidade que sempre surpreende.

E essa facilidade de dirigir em São Paulo é especialmente interessante se comparada com a tensão que sinto ao dirigir em Toronto. Aqui não há fechadas e finas: as faixas são tão largas que provavelmente seria utilizadas por dois carros ao mesmo tempo se os paulistanos de repente invadissem essa pacata metrópole canadense com seus carros. E para surpresa de qualquer cidadão que aprendeu a dirigir na selva de pedra, os carros diminuem de velocidade para te dar espaço para entrar na outra faixa assim que você liga a seta. Um nível de civilidade que espantaria qualquer paulistano.

Comecei então a elaborar, há quase um ano atrás, um post para o blog para refletir sobre essa experiência um tanto curiosa. Uma das hipóteses que levantei é que os carros são diferentes. No Canadá (e nos Estados Unidos) os carros são maiores e têm câmbio automático. Tenho menos sensação de controle dos carros lá do que dos carros aqui. O carro é tão grande, que é difícil saber onde ele começa e onde termina. Além disso, o câmbio automático tem um pouco de vida própria e demora mais a acelerar ou desacelerar que o câmbio manual, que me dá uma sensação maior de controle (que talvez seja fisicamente ilusória, mas psicologicamente é bastante efetiva…).

Resolvi então discutir a questão com a minha irmã, que levantou uma tese muito mais interessante. Disse ela que como aqui todo mundo tá fazendo tudo errado o tempo todo, eu sinto menos pressão para evitar erros. No Canadá, em contrapartida, como está todo mundo dirigindo tão corretamente, fica aquela pressão social para evitar erros. Acho que isso deve ser combinado ao fato de que o risco de sanções legais é também muito maior no Canadá, mesmo para infrações pequenas. Portanto, há todo um sistema social e legal que te pressiona a dirigir corretamente. A tese é particularmente interessante porque se liga à tese de Max Weber no livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que explica que o sistema moral protestante, mais efetivo em fazer as pessoas cumprirem regras, fez com que sociedades protestantes se adaptassem muito mais facilmente ao regime capitalista de produção. Talvez minha irmã pudesse escrever o segundo volume da série A Ética Protestante e o Espírito do Tráfego nas Grandes Cidades.

A hipótese é ainda mais interessante porque explica, de uma maneira um pouco contra-intuitiva, meu nervosismo. Parece natural que eu ficasse nervosa em uma cidade onde corro mais risco de sofrer um acidente, não? Não. A grande sacada da hipótese da minha irmã é que toda a pressão (social e legal) para obedecer as regras no Canadá gera o que em inglês eles chamam de perfomance anxiety. A expressão descreve a ansiedade que se sente quando as pessoas tem uma alta expectativa quanto à qualidade da sua performance e você fica com muito medo de desapontá-las. Por isso minha tensão. É como se no Canadá eu estivesse entrando em um palco, com uma platéia observando atenciosamente minha performance. Pior ainda: a platéia está pronta para vaiar se eu errar um passo. Em São Paulo, por outro lado, é como entrar em uma pista de dança, onde estão todos meios embriagados e ninguém está dando a menor bola pra ver se você dança bem ou mal, desde que você não pise no pé deles.

Durante essa visita ao Brasil, vivi um episódio que deu muita credibilidade à tese da minha irmã. Ao tentar pegar um produto em uma prateleira nas Lojas Americanas, veio abaixo não apenas a prateleira, mas todas as caixas ali empilhadas, se espalhando espalhafatosamente pelo chão. Obviamente, todos que estavam ao redor pararam para olhar. E – para minha surpresa – não hesitaram em correr ao meu socorro. Não havia nada para ser salvo, ou socorrido. Só eu e meu ego em cacos, rodeada por caixas por todos os lados, enquanto eu segurava a única caixa que não tinha ido ao chão. Ainda assim, umas cinco pessoas colocaram-se rapidamente a recolher as caixas, enquanto um sexto tentava encaixar novamente a prateleira e uma vendedora, sem saber o que fazer, me perguntava se eu estava bem. Melhor ainda: durante o processo de arrumação, um sugeriu que a prateleira estava mal encaixada, e prontamente a tese foi recebida com aprovação por todos os outros. Logo, estavam todos em uníssono me eximindo de qualquer culpa. Ou seja, não apenas recolheram rapidamente as caixas, mas juntaram os cacos do meu ego e em cinco minutos estavam eu, as caixas e a prateleira devidamente restauradas. 
Não sei, sinceramente, qual seria a reação dos canadenses na mesma situação, mas acho que se afastariam, alguns com cara de reprovação, e assumiriam que era trabalho de um vendedor da loja ir lá arrumar a bagunça. Pior ainda: me deixariam com o ego em cacos, durante cinco dias, até eu voltar para o divã da minha analista e pagá-la para juntar os pedaços.

Apesar da hipótese da minha irmã ser muito boa, uma terceira hipótese surgiu durante minha visita mais recente a São Paulo. Estava eu a dirigir livre leve e solta quando ao parar atrás de um carro em uma curva, me assustei com o sujeito de repente engatando a ré e vindo com tudo pra cima de mim. Desci do carro para descobrir que o sujeito estava discutindo com alguém ao telefone. Aparentemente, ele testava tentando parar para estacionar o carro, exceto que ele deu ré no meio da rua e me acertou em cheio.

No momento apenas fiquei de mau humor e de saco cheio com o ocorrido. Afinal, bater o carro nunca é uma experiência divertida, mesmo quando o dano é só na pintura do pára-choque. Mas depois de algum tempo eu descobri que ali estava uma terceira hipótese. Em São Paulo se assume que os motoristas saibam se defender. Ou seja, da mesma forma que não há expectativa que eu obedeça as regras, há uma expectativa que eu saiba me defender ao volante de pessoas que não obedecem regras. Minha hipótese é que um motorista paulistano experiente já teria – por impaciência ou precaução – saído de trás do carro do sujeito quando esse começou a diminuir a velocidade. A aspirante a canadense aqui, todavia, diligentemente diminuiu a velocidade atrás dele, até parar totalmente o carro, assumindo que ele estava checando se vinha algum carro na outra rua antes de fazer a curva (Tolinha! Pensaria qualquer paulistano). Mais do que isso, não tive a rapidez de reagir ao ser pega de surpresa com um carro dando a ré em cima de mim. Ou seja, não soube me defender.
A hipótese que saiu do incidente (ou deveria eu dizer acidente, dessa vez?) é que no Canadá, eu não posso esperar que os outros motoristas se defendam. Em São Paulo, em contrapartida, as pessoas dão a ré no meio da rua assumindo que “é cada um por si”. Acho que por isso eu fico mais tranquila nessa terra de ninguém: posso assumir que é cada um por si. As pessoas vão se defender das minhas barbeiragens e evitar acidentes que nenhum canadense conseguiria nunca na vida evitar. E isso, de alguma forma, me deixa tranquila pra fazer bobagens. Ou seja, acho que não se trata de um medo do palco, mas sim do que os falantes da língua inglesa chamam de moral hazard: considerando que o risco de acidente parece menor, pois as pessoas sabem se proteger, eu me sinto a vontade para tomar menos cuidado. 

Essa conclusão, todavia, gera um problema: se por um lado fico tranquila por que os outros sabem lidar com minhas barbeiragens, preciso descobrir o que fazer quando eu é que estou encarregada de evitar as bobagens alheias. Se eu continuar com essa minha atitude canadense perante a vida, provavelmente essa será apenas a primeira de muitas batidas na paulicéia desvairada…

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Música do Dia


(vale notar que esse vídeo foi inspirado pelo projeto Playing for Change, que eu mencionei em um post anterior).

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Postando de novo!


Segue uma outra versão da música do post anterior, dado que o mesmo não está disponível no Brasil. 

Ao tentar investigar as causas do problema, descobri um monte de coisas interessantes sobre a tecnologias de filtro na internet em diversos países, includindo o Brasil (aqui). Por exemplo, vocês sabiam que quando o video da Cicarelli foi bloqueado devido a um processo da modelo contra o YouTube, o pessoal do Rio ainda conseguia assistir ao vídeo, então bloqueado no resto do país. Isso porque os mecanismos de bloqueio e filtro existem, mas não são 100% efetivos. Fiquei pensando se pessoas em lugares diferentes no Brasil tiveram diferentes experiências com o vídeo do post anterior.

Mas voltando à minha investigação: parece que a EMI (que é parte do grupo Warner Music ) queria cobrar royalties do You Tube, mas o acordo não saiu e vários vídeos de música da EMI (e de todo o grupo) foram tirados do ar em 2008. O vídeo que postei foi bloqueado pela mesma empresa a EMI. Todavia, isso não explica porque eu consigo assistir o vídeo em Toronto, mas o pessoal do Brasil não consegue. Acho que tem algo a ver com um sistema de direitos de propriedade intelectual no qual o vídeo somente fica disponível em países nos quais as distribuidoras conseguem cobrar royalties por cada exibição. Mas ainda preciso investigar isso com mais cuidado.

Há diversos problemas com o sistema de propriedade intelectual que vigora hoje no mundo e eu ainda tenho muito a aprender sobre isso. O pouco que eu sei veio das pesquisas do Centro de Tecnologia e Socidade da FGV. Para os interessados, recomendo especialmente dois dos trabalhos produzidos pelo centro:

Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música



O primeiro inclui uma análise de filtragem de conteúdo (o tema deste post) e o segundo conta uma história interessantíssima de uma indústria de música chamada Tecnobrega que ficou tão popular no Norte do Brasil que começou a movimentar uma quantia significativa de dinheiro. Todavia, eles não eram afiliados à indústria da música, que vive de royalties (ou seja depende de propriedade intelectual, acordos exclusivos e muita propaganda). Portanto, pra conseguir sobreviver, eles criaram um novo modelo de negócios para música:





E o pessoal do Tecnobrega não está sozinho. Um modelo muito similar de negócios é o da trupe Teatro Mágico (veja o site), que conheci por acaso, ao ser apresentada ao cantor principal do grupo, Fernando Anitelli numa festa há muitos anos atrás. Fernando, com todo seu carisma, me disse que tinha uma música no CD dele com meu nome, e me deu uma cópia do CD.



Naquela época, eu estava prestes a embarcar para um mestrado nos Estados Unidos, de onde o Fernando tinha acabado de voltar depois de uma temporada como "músico de pizzaria", como ele mesmo dizia. Ouvi muito o CD e gosto das músicas, mas nunca mais tinha ouvido falar do Fernando. 

Um dia, numa visita ao Brasil, me deparei com o projeto dele listado como um dos melhores do ano na Folha de SP. E o mais interessante é que ele tinha sido eleito por votação popular, pois sua produção não entra nos circuitos das grandes gravadaoras e havia sido, portanto, ignorada pelos críticos da Folha. Mas o público corrigiu a falha dos críticos e mostrou que há vida, música e gente interessante fora do mundo limitado -- e muitas vezes injusto -- da indústria fonográfica, e dos direitos de propriedade intelectual que suportam essa indústria. Apesar do sucesso, ele se recusa a assinar um contrato com uma gravadora, e produz música independente, que sobrevive de shows e dos produtos da trupe. As músicas podem ser baixadas gratuitamente na internet e não é vendida. Esse é o segredo no negócio dele.

A música que eu mais gosto do CD chama Zaluzejo (abaixo). O Fernando fez essa música em homenagem à moça que trabalhava na casa dele. Eu acho essa música uma grande celebração da nossa cultura brasileira, cheia de crenças, superstições e gente que, segundo o Fernando, não fala errado, mas sim reinventa as palavras.


  

E não é só o Brasil que tem esses grandes empreendedores que conseguem revolucionar toda uma indústria, e um regime jurídico, com um violão debaixo do braço. Na Nigéria, o pessoal fez o mesmo com uma câmera na mão, e criou o Nollywood. Mas essa conversa vai ficar para um outro post. 


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Maldito bolo e bendita neve

Quando se está tentando aprender uma língua estrangeira, as expressões idiomáticas são provavelmente a parte mais difícil do aprendizado, pois a maioria delas não tem um significado evidente (e suspeito que uma parte delas não faz o menor sentido). Coloquem-se no lugar de um estrangeiro que ouve a seguinte frase:

- é a cara do pai, cuspido e escarrado.

Qual a conexão entre similaridades físicas do filho com o pai e os atos de cuspir e escarrar? Um estrangeiro dedicado pode eventualmente descobrir que a expressão parece ter vindo de "esculpido em [mármore] carrara", o que faz um pouco mais de sentido (veja aqui esse e outros exemplos), mas ainda demanda um trabalho extra pra se descobrir o significado. Nesse meio tempo, o estrangeiro fica "a ver navios" na conversa, agora sem saber o que significa "cuspido e escarrado" e "ficar a ver navios"...

O inglês não é muito diferente. Quando ainda estava no mestrado, fiquei totalmente perdida, por exemplo, um dia que uma amiga me escreveu perguntando "can we take a rain check on the movie tonight?".  Eu não fazia a menor idéia do que era queria fazer com nossos planos de ir ao cinema. Rain check? Não estava chovendo e não tinha um restaurante ou bar com o nome "rain check", pensei. Será que ela quer levar alguma coisa que chama "rain check" pro cinema? Como estávamos na era pré-google, resolvi perguntar. Ela, como uma boa historiadora, não hesitou em explicar: o termo surgiu com ingressos para um outro jogo de baseball, caso o mesmo fosse cancelado por causa da chuva. Com o tempo, foi se expandindo para incluir qualquer tipo de cupom ou benefício que dava ao cliente o direito de, no futuro, adquirir um produto ou usar um serviço que estivesse temporiamente indisponível. Daí passou a ser usado em ocasiões sociais, quando as pessoas querem apenas adiar algo programado (ao invés de simplesmente desmarcar o compromisso). Resumo da ópera: ela queria adiar nossa ida ao cinema, e ia ficar perdida com o termo "resumo da ópera" se estivesse tentando aprender português e lendo esse post. 


Com o tempo, a gente vai se acostumando com as expressões idiomáticas e elas passam a fazer parte do nosso vocabulário. Mas tinha uma expressão que eu nunca entendi: 

"you can't have your cake, and eat it too." 

Para minha surpresa, em um jantar em uma conferência (sim, aprendo muito sobre a vida em conferências!), encontrei uma norte-americana que confessou pra mim -- bem baixinho -- que ela passou a maior parte da vida dela tentando entender essa expressão. Ela compartilhava meu estranhamento: como é que a expressão diz que você não pode ter o bolo e também comer ele? Se o bolo é seu, claro que você pode comer ele! Na verdade, você não poderia comer ele se não fosse seu. Como boas advogadas, estávamos ambas preocupadas com todas as potenciais sanções legais que podem recair sobre alguém que, por acaso, decida comer o bolo alheio sem autorização. Todavia, a idéia de que todos nós tínhamos nua propriedade sobre o bolo (você podia ter o bolo, mas não podia usar, gozar ou fruir dele) era basicamente incompreensível. Enfim, eu tinha encontrado alguém que compartilhava minha angústia com o diabo do bolo.

Daí ela me explicou que um dia, de repente, ela entendeu a expressão. Segundo ela, a expressão se refere ao fato de que no momento que você comer o bolo, você não vai mais ter um bolo. Ou seja, se você quiser ter o bolo, não pode comê-lo e se você quiser comê-lo, não vai mais ter propriedade sobre ele (simplesmente porque ele vai deixar de existir). A explicação faz sentido, ainda que seja uma forma muito torta de falar uma coisa relativamente simples. Talvez a frase fosse mais compreensível na ordem inversa: "you can't eat your cake, and have it too."


Mas hoje, ao sair de casa, eu totalmente entendi o significado da expressão. Estamos tendo um dos invernos mais quentes da história. Em meados de dezembro, está fazendo dez graus positivos em Toronto. Eu estava me deliciando com a idéia de um inverno com temperaturas um pouco mais decentes, até que me deparei com uma baita chuva hoje, e uma previsão de chuva ininterrupta para os próximos dias. E foi aí que percebi que um inverno quente significa que não cai neve. E neve é muito mais agradável que chuva. Com a neve,  fica tudo bonito e a gente não chega ensopada em casa. Sair na neve não exige guarda chuva, na implica sapato molhado, e não tem aquela coisa desagradável de carros e bicicletas passando em poças e molhando pedestres. 


O problema é que não dá pra ter seu bolo e comer ele: ou você tem um inverno quente, com muita chuva; ou você tem um inverno frio, com muita neve. Ainda não consegui decidir qual dos dois eu prefiro. No momento, com essa chuva toda, estou inclinada a pensar que prefiro o frio. Mas como prevê o ditado: assim que eu comer meu bolo, não vai demorar muito pra eu me arrepender e pensar que gostoso seria ter meu bolinho agora... 

Em contraste, o governo Canadense não está tão em dúvida quanto eu. A decisão deles de abandonar o protocolo de Kyoto, anunciada essa semana em Durban, indica claramente que eles preferem a chuva. Espero que não se arrependam depois!

sábado, 10 de dezembro de 2011

Desculpe, mas eu amo o Canadá


Durante um dos jantares da conferência em Israel estava conversando com um colega holandês sobre diferenças culturais. Comentávamos o fato de que o jantar tinha sido marcado para 7:30pm. Esse horário era muito tarde pra ele, que costuma comer as 5:30pm, mas era muito cedo para os latino-americanos, que começam a pensar em comida a partir das 8:30pm. Brinquei com ele que eles comiam cedo como os americanos. Ele imediatamente respondeu que essa era provavelmente a única coisa que eles tinham em comum com "aquele país" (acentue-se o forte tom de desprezo na voz do holandês, que eu não consigo reproduzir aqui). E acrescentou: não sei como as pessoas conseguem viver nos Estados Unidos. 


Eu imediatamente argumentei que concordava com o desprezo que ele tinha pelos Estados Unidos, mas achava que o Canadá era muito diferente. Estava pronta pra comprar uma briga, já que a maioria das pessoas pensa que a parte francesa do Canadá, Quebec, é bastante européia, mas o resto do Canadá é igual aos Estados Unidos. Para minha surpresa, todavia, ele imediatamente concordou e passamos uma boa meia hora falando como os Canadenses apreciam boa comida, são mais educados, e em geral muito mais preocupados com qualidade de vida do que com sucesso profissional a todo custo. 


A única coisa de positiva que esses dois países têm em comum é a cultura não-sexista, afinal sexismo e machismo impera nos países latinos (tanto europeus, quanto latino-americanos). E, nesse caso, uma imagem vale mais do que mil palavras: 




 Tradução da legenda que acompanha a foto, que anda circulando na internet: O ministro Canadense (à esquerda) completamente absorvido em si mesmo. O Obama com o impecável profissionalismo exigido nos círculos de poder nos Estados Unidos. O Sarkozi e o Berlusconi, em contraste, não hesitaram em dar uma olhada -- pouco discreta-- para a bunda da moça. 

Ou seja, nos Estados Unidos e Canadá, os homens têm (ou são forçados a ter) compostura. E muitos aspectos dessa compostura são impostos por lei. A lei canadense interpreta estupro muito mais amplamente que outras legislações, como a brasileira. Um marido, por exemplo, pode ser condenado por estupro caso tenha forçado a esposa a fazer sexo contra sua vontade. E isso inclui situações em que a mulher começou a fazer sexo e quis parar no meio. A Supreme Corte do Canadá explicitamente disse que o consentimento tem que ser comunicado antes e durante o ato sexual, e o argumento de que ele foi dado antes não permite que o sujeito se sinta no direito de continuar o ato contra a vontade da mulher. Infelizmente no Brasil ainda temos que lidar com sentenças em que os juízes acreditam que o estuprador -- um perfeito desconhecido -- não deve ser condenado porque a mulher estava usando roupas provocantes na rua. Alguém pode me explicar como usar roupas provocantes dá a um estranho o direito de fazer sexo com você sem seu consentimento? 


Mas exceto pelas leis que forçam os homens a ter um mínimo de compostura, há diferenças significativas entre os Estados Unidos e o Canadá. 

Primeiro, a regulação sobre produtos industralizados é muito mais rígida no Canadá. Faça o seguinte teste: compre um KitKat (um biscoito de waffle coberto com chocolate) em cada um dos países e experimente uma mordida sem ver qual é qual. Você vai ver que o Canadense é infinitamente melhor. O governo aqui limita a quantidade de açucar e gordura que os fabricantes podem por no produto, o que acaba gerando um produto com mais sabor e mais saudável. Assim, a mesma empresa, com o mesmo produto, mesma embalagem, é forçada a oferecer dois produtos distintos no Canadá e nos Estados Unidos. Em contraste, os Estados Unidos, na tentativa de tornar as merendas escolares mais saudáveis acabou de passar uma regulação dizendo que pizza qualifica como legume, por causa do molho de tomate.  Como diz o Renato Russo, "que país é esse?".


Segunda diferença entre Canadá e Estados Unidos: direito societário. Assisti duas palestras essa semana que discutiam um caso chamado BCE, decidido pela Suprema Corte canadense (veja um resumo em espanhol aqui). A legislação americana é famosa por considerar que os diretores de empresas tem uma obrigação de proteger os interesses dos acionistas, o que gera uma obrigação de aumentar os lucros da empresa. A corte canadense, em contraste, disse que os diretores tinha uma obrigação com a empresa em si (the corporation), não com os acionistas (the shareholders). Portanto, ao decidirem como agir, os diretores de empresas canadenses precisam levar em conta os interesses de todos afetados negativamente pelos atos da empresa (stakeholders), não apenas dos acionistas. Muitos estão se perguntando se isso se estende, por exemplo, a uma obrigação com comunidades negativamente afetadas por empresas de exploração de recursos naturais. Parece que esse é ainda um tópico controverso. Mas com certeza a decisão da corte em BCE ilustra que esse é um país onde a ganância -- assim como os impulsos sexuais -- apenas ter lugar se não estão violando direitos e interesses de outras pessoas.



Por fim, os canadenses se desculpam por tudo, toda hora. Isso é uma coisa tipicamente canadense. Nos Estados Unidos, a grosseria e falta de educação impera. Isso é especialmente verdade em Nova Iorque. Meu amigo A., muito adequadamente, apelidou a cidade de "Planeta dos Macacos". Ainda acho o título muito mais apropriado que Big Apple. Mas não a falta de educação não se concentra em Manhattan. Lembro da minha prima M. me visitando em New Haven. Fomos fazer compras e a caixa do supermercado começou a gritar conosco -- anda! anda! -- porque estávamos demorando muito (do ponto de vista dela) para ensacar as compras. Provavelmente aqui no Canadá a caixa ia se desculpas por não estar ajudando.... 

Para dar uma idéia dos extremos aos quais os canadenses podem chegar, basta notar que eles se desculpam pelos ônibus que não estão em circulação:



Logo depois do jantar e da longa conversa com o meu colega holandês, eu descobri que  esse aspecto da cultura canadense é uma diferença cultural gritante. Pedi a um colega israelense para me acompanhar até um mercado aberto, pois queria comprar uma banana. Queria apenas uma única banana, pra comer na manhã seguinte. O feirante começou a reclamar que eles vendem por caixo, não por banana, etc. Imediatamente, como boa aspirante a cidadania canadense, pedi desculpas. E, para minha surpresa, tomei uma bronca. Meu colega israelense me disse para nunca me desculpar, em hipótese alguma. No meio da bronca, ele explicou, enfaticamente, que pedir desculpa era sinal de fraqueza. Eu resolvi não discutir o assunto, mas não pude deixar de ficar conjecturando se os conflitos naquela parte do Oriente Médio seriam menos intensos se a cultura deles fosse um pouco mais aberta a ocasionais pedidos de desculpas. Afinal, não é a toa que o Canadá tem uma grande tradição com missões de paz no cenário internacional.

Fica aqui, portanto, minha declaração de amor a esse país, com um pedido de desculpas para todos que potencialmente podem ficar ressentidos.   


Música do Dia




quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os taxistas e a globalização

Tive uma semana cheia. Depois de dar minha última aula do semestre, sobre globalização, embarquei para Israel, para uma conferência. Por coincidência, a discussão que tive com os alunos estava diretamente ligada à minha viagem. Discutimos se o fato de que agora o mundo todo bebe coca-cola e come Mc Donald’s – um dos efeitos da famigerada globalização -- é bom ou ruim.

Alguns alunos argumentaram que é péssimo: a homogeneidade cultural acaba com a diversidade e, por consequência, com grande parte da riqueza da humanidade. Não pude deixar de lembrar desse argumento quando me deparei com um café da manhã no hotel em Tel Aviv com croissants, cappucinos e iogurtes danone. Estando no oriente médio, achei que o hotel ia servir Labneh com azeite de oliva e pão sírio no café da manhã. Mas tive que me contentar com uma refeição que eu poderia perfeitamente ter comprado no Starbucks na esquina da minha casa em Toronto.

Durante a aula, alguns alunos argumentaram que a globalização tem aspectos positivos, pois permite que as pessoas compartilhem conhecimento, o que aumenta diversidade, ao invés de diminuí-la. Por exemplo, ao abrir lojas em outros países, o McDonald’s compartilha um método de administração que é inovador. A mesma coisa pode ser dita sobre o Starbucks. Portanto, quando o franchise se espalha pelo mundo, leva consigo estratégias de administração de empresas que podem ser úteis para empreendedores em outros países. De fato, esses alunos têm um ponto. Quando chego no hotel em Tel Aviv e o pessoal da recepção segue o mesmo procedimento seguido em todos os hotéis ao redor do mundo, minha vida fica mais fácil. Imagina eu tendo que negociar o preço de um quarto, se essa fosse a tradição deles por aqui (e note-se que ainda é a tradição para vendedores ambulantes). Com certeza não ia ser uma experiência agradável…

A propósito, essa idéia (de que os métodos de administração de empresas são tão importantes quanto o produto em si) explica porque o Brasil não tem um Starbucks, apesar de produzir um dos melhores cafés do mundo. O Clóvis Rossi escreveu uma coluna sobre o assunto, perguntando porque a gente não tinha criado a Starbucks brasileira. Minha resposta seria: porque não se trata só de café de qualidade, que o Brasil de fato tem, mas sim de métodos inovadores de administração de empresas, que não abundam no país. Para ter esse tipo de inovação, precisamos investir em educação. Ou seja o café sozinho não cria redes mundialmente famosas de cafeterias. Precisamos aprender a cultivar empreendedores. E pra isso a gente precisa muito mais do que sol e terra fértil. 

Mas voltemos ao ponto do post. Todas essas considerações sobre globalização não me ajudaram a analisar o que acontece com os motoristas de táxi. Da última vez que estive em Israel, em 2008, um taxista me deixou em uma rua com o mesmo nome da rua que eu procurava, exceto que ela ficava em outro município. Como o preço da corrida de Jerusalém para Tel Aviv tinha sido pré-negociado por um amigo israelense (que é a norma aqui), o motorista saiu ganhando com o calote.

Dessa vez, outro motorista tentou me engambelar. Depois de um jantar, eu e dois colegas  entramos em um táxi pra voltar para o hotel. Começamos a negociação pra fechar um preço, mas o taxista queria muito. Eu e meus colegas decidimos então pedir pra ele ligar o taximetro. Ele ligou e imediatamente – e previsivelmente -- entrou em uma rua que ia na direção oposta à do nosso hotel. Mandamos ele voltar e ele falou que ele ia cobrar uma taxa extra porque nós éramos três pessoas no táxi. Nesse momento, a gente devia ter descido do táxi. Descobrimos depois que os três tinham pensado que essa era a melhor solução, mas por alguma razão ninguém fez a proposta. Seguimos para o hotel. Quando chegamos no hotel, não deu outra. O taxista apertou três botões e o valor da corrida duplicou de preço. Nos recusamos a pagar e descemos do carro, dando pra ele o que achávamos justo. Não foi uma cena bonita: nós gritávamos com o taxista enquanto ele gritava de volta conosco. Como ele se recusou a pegar as notas, a gente jogou todo o dinheiro no banco da frente, antes de descer do carro. Provavelmente a noite teria sido muito mais agradável se tivéssemos simplesmente caminhado de volta pra o hotel. Enfim.

O triste da história é que ela acontece com mais frequência na minha vida do que eu gostaria. A cena do motorista apertando três botões no taximetro pra triplicar os valor total da corrida não foi nova pra mim. Em 2009, em Palermo na Itália, aconteceu a mesma coisa. Eu e dois colegas tínhamos pegado um táxi do aeroporto para o hotel. Depois de ver o sujeito apertar três botões e triplicar o preço, protestamos, e ele concordou em reduzir o preço. Mas nossa vitória durou pouco: assim que descemos do táxi o recepcionista do hotel nos informou que tinha um preço fixo para viagens saindo do aeroporto para o centro da cidade. Obviamente, tínhamos pagado muito mais do que devíamos. A decisão do governo de fixar o preço da corrida tinha sido, na verdade, uma tentativa de reduzir esse tipo de calote. Mas não há nada que salve turistas mal informados como nós…

Tenho a sensação de que esse tipo de comportamento é típico de motoristas de táxi em todo mundo, não só no mediterrâneo. Acho que não sofri com esse problema no Rio ou em São Paulo porque não sou uma turista mal informada, mas conheço pessoas que passaram por mal bocados nas duas cidades, tanto brasileiros quanto estrangeiros. E Toronto também não se salva. Experiência própria. E em Toronto, assim como na Itália, o preço da corrida saindo do aeroporto é fixo. Não me surpreende.

Já que culturas variam de lugar para lugar, seria de se esperar que a honestidade dos taxistas também variasse um pouco. Mas isso parece não acontecer com muita frequência. Por que? Parece estranho pensar que isso é efeito da globalização. Afinal, os serviços de táxi ao redor do mundo não são controlados por corporações multinacionais. Além disso, não existe franchise no setor – um McTaxi’s – que estaria espalhando para os quatro cantos do globo um método inovador de administração de negócios, o calote. O que explica, portanto, que você pode contar com um salafrário quase todas as vezes que entra em um táxi, não importa onde esteja?

Talvez, ainda que indiretamente, isso tenha a ver com a globalização. Há uma coisa em comum entre todos os taxistas: o taxímetro. Ainda que as empresas de táxi não sejam globalizadas, a maquininha com certeza é. E daí é só combinar a globalização do taximetro com a natureza humana: o taximetro gera um incentivo para que os motoristas enganem os passageiros. Quanto mais ele roda, mais ele ganha. Portanto, ao globalizar o taximetro, nós globalizamos também o incentivo para o calote. 

Qual a solução? Uma alternativa é negociar o preço. Com isso, as chances dos motoristas ficarem rodando em vão diminuem. O problema é que turistas mal informados também saem em desvantagem, pois a gente não sabe qual seria mais ou menos o valor da corrida. Então não sabemos qual preço é exorbitante. Além disso, quando há duas ruas com o mesmo nome em locais distintos, nem o preço negociado protege o turista mal-informado. Experiência própria…

Acho que precisamos, na verdade, globalizar outras coisas além do taxímetro. Por exemplo, em Toronto, no banco de trás, há um cartaz com a foto e o nome do motorista. Uma vez reclamei com um taxista que ele tinha feito um caminho mais longo do que o necessário, e ele imediatamente deu um desconto no valor final da corrida. Ela sabia que eu podia facilmente descer do táxi e ligar para a empresa para reclamar sobre o comportamento dele, dando o nome dele e tudo. Acho que esse tipo de identificação precisa ser globalizado, ainda que eu provavelmente não vá conseguir decifrar o nome dos motoristas escrito em outro alfabeto, como o hebraico ou árabe. Portanto, sugiro que haja também o número do carro, que é um pouco mais universal.

Minha única dúvida é o que acontece com os motoristas chineses. Quando estive lá em 2009, tive uma dificuldade imensa de achar um táxi que conseguia ler o alfabeto ocidental. Ou seja, eles não conseguiam entender pra qual hotel eu queria ir ou sequer ler o endereço. Mas fora isso, não tive qualquer problema na China, tanto com taxímetros quanto com corridas com preço pré-arranjado. E não tinha identificação do motorista em nenhum lugar (e ainda que tivesse, eu não ia conseguir decifrar o alfabeto). Ainda assim, eles se comportam impecavelmente. Talvez seja o fato de o governo tenha punições severas para várias coisas. Por exemplo, corrupção é punida com pena de morte. Talvez o modelo chinês sugira algo como chibatadas ou choque elétrico para os motoristas que derem o calote em passageiros. Se for esse o caso, não proporia a expansão desse modelo ao redor do mundo. Mas se for qualquer coisa mais aceitável, acho que os chineses deveriam estar vendendo a expertise deles na forma de franchises. Eu adoria encontrar, sempre que chegasse em um país novo, o Ching-ling Taxi, minha garantia de uma corrida sem calote!