Da penúltima vez que fui ao Brasil fiquei impressionada com a facilidade com que dirijo no trânsito caótico da cidade de São Paulo. São finas, fechadas, gente acelerando em cima de você quando você dá sinal para entrar na outra faixa e mais uma coleção de fofuras. Ainda assim, minha tranquilidade ao volante é espantosa. Xingo raramente e quase nunca me desespero. Na maior parte do tempo, estou prestando atenção na letra de música, notícias no rádio, ou espantada com alguma novidade nessa cidade que sempre surpreende.
E essa facilidade de dirigir em São Paulo é especialmente interessante se comparada com a tensão que sinto ao dirigir em Toronto. Aqui não há fechadas e finas: as faixas são tão largas que provavelmente seria utilizadas por dois carros ao mesmo tempo se os paulistanos de repente invadissem essa pacata metrópole canadense com seus carros. E para surpresa de qualquer cidadão que aprendeu a dirigir na selva de pedra, os carros diminuem de velocidade para te dar espaço para entrar na outra faixa assim que você liga a seta. Um nível de civilidade que espantaria qualquer paulistano.
Comecei então a elaborar, há quase um ano atrás, um post para o blog para refletir sobre essa experiência um tanto curiosa. Uma das hipóteses que levantei é que os carros são diferentes. No Canadá (e nos Estados Unidos) os carros são maiores e têm câmbio automático. Tenho menos sensação de controle dos carros lá do que dos carros aqui. O carro é tão grande, que é difícil saber onde ele começa e onde termina. Além disso, o câmbio automático tem um pouco de vida própria e demora mais a acelerar ou desacelerar que o câmbio manual, que me dá uma sensação maior de controle (que talvez seja fisicamente ilusória, mas psicologicamente é bastante efetiva…).
Resolvi então discutir a questão com a minha irmã, que levantou uma tese muito mais interessante. Disse ela que como aqui todo mundo tá fazendo tudo errado o tempo todo, eu sinto menos pressão para evitar erros. No Canadá, em contrapartida, como está todo mundo dirigindo tão corretamente, fica aquela pressão social para evitar erros. Acho que isso deve ser combinado ao fato de que o risco de sanções legais é também muito maior no Canadá, mesmo para infrações pequenas. Portanto, há todo um sistema social e legal que te pressiona a dirigir corretamente. A tese é particularmente interessante porque se liga à tese de Max Weber no livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que explica que o sistema moral protestante, mais efetivo em fazer as pessoas cumprirem regras, fez com que sociedades protestantes se adaptassem muito mais facilmente ao regime capitalista de produção. Talvez minha irmã pudesse escrever o segundo volume da série A Ética Protestante e o Espírito do Tráfego nas Grandes Cidades.
A hipótese é ainda mais interessante porque explica, de uma maneira um pouco contra-intuitiva, meu nervosismo. Parece natural que eu ficasse nervosa em uma cidade onde corro mais risco de sofrer um acidente, não? Não. A grande sacada da hipótese da minha irmã é que toda a pressão (social e legal) para obedecer as regras no Canadá gera o que em inglês eles chamam de perfomance anxiety. A expressão descreve a ansiedade que se sente quando as pessoas tem uma alta expectativa quanto à qualidade da sua performance e você fica com muito medo de desapontá-las. Por isso minha tensão. É como se no Canadá eu estivesse entrando em um palco, com uma platéia observando atenciosamente minha performance. Pior ainda: a platéia está pronta para vaiar se eu errar um passo. Em São Paulo, por outro lado, é como entrar em uma pista de dança, onde estão todos meios embriagados e ninguém está dando a menor bola pra ver se você dança bem ou mal, desde que você não pise no pé deles.
Durante essa visita ao Brasil, vivi um episódio que deu muita credibilidade à tese da minha irmã. Ao tentar pegar um produto em uma prateleira nas Lojas Americanas, veio abaixo não apenas a prateleira, mas todas as caixas ali empilhadas, se espalhando espalhafatosamente pelo chão. Obviamente, todos que estavam ao redor pararam para olhar. E – para minha surpresa – não hesitaram em correr ao meu socorro. Não havia nada para ser salvo, ou socorrido. Só eu e meu ego em cacos, rodeada por caixas por todos os lados, enquanto eu segurava a única caixa que não tinha ido ao chão. Ainda assim, umas cinco pessoas colocaram-se rapidamente a recolher as caixas, enquanto um sexto tentava encaixar novamente a prateleira e uma vendedora, sem saber o que fazer, me perguntava se eu estava bem. Melhor ainda: durante o processo de arrumação, um sugeriu que a prateleira estava mal encaixada, e prontamente a tese foi recebida com aprovação por todos os outros. Logo, estavam todos em uníssono me eximindo de qualquer culpa. Ou seja, não apenas recolheram rapidamente as caixas, mas juntaram os cacos do meu ego e em cinco minutos estavam eu, as caixas e a prateleira devidamente restauradas.
Não sei, sinceramente, qual seria a reação dos canadenses na mesma situação, mas acho que se afastariam, alguns com cara de reprovação, e assumiriam que era trabalho de um vendedor da loja ir lá arrumar a bagunça. Pior ainda: me deixariam com o ego em cacos, durante cinco dias, até eu voltar para o divã da minha analista e pagá-la para juntar os pedaços.
Apesar da hipótese da minha irmã ser muito boa, uma terceira hipótese surgiu durante minha visita mais recente a São Paulo. Estava eu a dirigir livre leve e solta quando ao parar atrás de um carro em uma curva, me assustei com o sujeito de repente engatando a ré e vindo com tudo pra cima de mim. Desci do carro para descobrir que o sujeito estava discutindo com alguém ao telefone. Aparentemente, ele testava tentando parar para estacionar o carro, exceto que ele deu ré no meio da rua e me acertou em cheio.
No momento apenas fiquei de mau humor e de saco cheio com o ocorrido. Afinal, bater o carro nunca é uma experiência divertida, mesmo quando o dano é só na pintura do pára-choque. Mas depois de algum tempo eu descobri que ali estava uma terceira hipótese. Em São Paulo se assume que os motoristas saibam se defender. Ou seja, da mesma forma que não há expectativa que eu obedeça as regras, há uma expectativa que eu saiba me defender ao volante de pessoas que não obedecem regras. Minha hipótese é que um motorista paulistano experiente já teria – por impaciência ou precaução – saído de trás do carro do sujeito quando esse começou a diminuir a velocidade. A aspirante a canadense aqui, todavia, diligentemente diminuiu a velocidade atrás dele, até parar totalmente o carro, assumindo que ele estava checando se vinha algum carro na outra rua antes de fazer a curva (Tolinha! Pensaria qualquer paulistano). Mais do que isso, não tive a rapidez de reagir ao ser pega de surpresa com um carro dando a ré em cima de mim. Ou seja, não soube me defender.
A hipótese que saiu do incidente (ou deveria eu dizer acidente, dessa vez?) é que no Canadá, eu não posso esperar que os outros motoristas se defendam. Em São Paulo, em contrapartida, as pessoas dão a ré no meio da rua assumindo que “é cada um por si”. Acho que por isso eu fico mais tranquila nessa terra de ninguém: posso assumir que é cada um por si. As pessoas vão se defender das minhas barbeiragens e evitar acidentes que nenhum canadense conseguiria nunca na vida evitar. E isso, de alguma forma, me deixa tranquila pra fazer bobagens. Ou seja, acho que não se trata de um medo do palco, mas sim do que os falantes da língua inglesa chamam de moral hazard: considerando que o risco de acidente parece menor, pois as pessoas sabem se proteger, eu me sinto a vontade para tomar menos cuidado. No momento apenas fiquei de mau humor e de saco cheio com o ocorrido. Afinal, bater o carro nunca é uma experiência divertida, mesmo quando o dano é só na pintura do pára-choque. Mas depois de algum tempo eu descobri que ali estava uma terceira hipótese. Em São Paulo se assume que os motoristas saibam se defender. Ou seja, da mesma forma que não há expectativa que eu obedeça as regras, há uma expectativa que eu saiba me defender ao volante de pessoas que não obedecem regras. Minha hipótese é que um motorista paulistano experiente já teria – por impaciência ou precaução – saído de trás do carro do sujeito quando esse começou a diminuir a velocidade. A aspirante a canadense aqui, todavia, diligentemente diminuiu a velocidade atrás dele, até parar totalmente o carro, assumindo que ele estava checando se vinha algum carro na outra rua antes de fazer a curva (Tolinha! Pensaria qualquer paulistano). Mais do que isso, não tive a rapidez de reagir ao ser pega de surpresa com um carro dando a ré em cima de mim. Ou seja, não soube me defender.
Essa conclusão, todavia, gera um problema: se por um lado fico tranquila por que os outros sabem lidar com minhas barbeiragens, preciso descobrir o que fazer quando eu é que estou encarregada de evitar as bobagens alheias. Se eu continuar com essa minha atitude canadense perante a vida, provavelmente essa será apenas a primeira de muitas batidas na paulicéia desvairada…