quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Maldito bolo e bendita neve

Quando se está tentando aprender uma língua estrangeira, as expressões idiomáticas são provavelmente a parte mais difícil do aprendizado, pois a maioria delas não tem um significado evidente (e suspeito que uma parte delas não faz o menor sentido). Coloquem-se no lugar de um estrangeiro que ouve a seguinte frase:

- é a cara do pai, cuspido e escarrado.

Qual a conexão entre similaridades físicas do filho com o pai e os atos de cuspir e escarrar? Um estrangeiro dedicado pode eventualmente descobrir que a expressão parece ter vindo de "esculpido em [mármore] carrara", o que faz um pouco mais de sentido (veja aqui esse e outros exemplos), mas ainda demanda um trabalho extra pra se descobrir o significado. Nesse meio tempo, o estrangeiro fica "a ver navios" na conversa, agora sem saber o que significa "cuspido e escarrado" e "ficar a ver navios"...

O inglês não é muito diferente. Quando ainda estava no mestrado, fiquei totalmente perdida, por exemplo, um dia que uma amiga me escreveu perguntando "can we take a rain check on the movie tonight?".  Eu não fazia a menor idéia do que era queria fazer com nossos planos de ir ao cinema. Rain check? Não estava chovendo e não tinha um restaurante ou bar com o nome "rain check", pensei. Será que ela quer levar alguma coisa que chama "rain check" pro cinema? Como estávamos na era pré-google, resolvi perguntar. Ela, como uma boa historiadora, não hesitou em explicar: o termo surgiu com ingressos para um outro jogo de baseball, caso o mesmo fosse cancelado por causa da chuva. Com o tempo, foi se expandindo para incluir qualquer tipo de cupom ou benefício que dava ao cliente o direito de, no futuro, adquirir um produto ou usar um serviço que estivesse temporiamente indisponível. Daí passou a ser usado em ocasiões sociais, quando as pessoas querem apenas adiar algo programado (ao invés de simplesmente desmarcar o compromisso). Resumo da ópera: ela queria adiar nossa ida ao cinema, e ia ficar perdida com o termo "resumo da ópera" se estivesse tentando aprender português e lendo esse post. 


Com o tempo, a gente vai se acostumando com as expressões idiomáticas e elas passam a fazer parte do nosso vocabulário. Mas tinha uma expressão que eu nunca entendi: 

"you can't have your cake, and eat it too." 

Para minha surpresa, em um jantar em uma conferência (sim, aprendo muito sobre a vida em conferências!), encontrei uma norte-americana que confessou pra mim -- bem baixinho -- que ela passou a maior parte da vida dela tentando entender essa expressão. Ela compartilhava meu estranhamento: como é que a expressão diz que você não pode ter o bolo e também comer ele? Se o bolo é seu, claro que você pode comer ele! Na verdade, você não poderia comer ele se não fosse seu. Como boas advogadas, estávamos ambas preocupadas com todas as potenciais sanções legais que podem recair sobre alguém que, por acaso, decida comer o bolo alheio sem autorização. Todavia, a idéia de que todos nós tínhamos nua propriedade sobre o bolo (você podia ter o bolo, mas não podia usar, gozar ou fruir dele) era basicamente incompreensível. Enfim, eu tinha encontrado alguém que compartilhava minha angústia com o diabo do bolo.

Daí ela me explicou que um dia, de repente, ela entendeu a expressão. Segundo ela, a expressão se refere ao fato de que no momento que você comer o bolo, você não vai mais ter um bolo. Ou seja, se você quiser ter o bolo, não pode comê-lo e se você quiser comê-lo, não vai mais ter propriedade sobre ele (simplesmente porque ele vai deixar de existir). A explicação faz sentido, ainda que seja uma forma muito torta de falar uma coisa relativamente simples. Talvez a frase fosse mais compreensível na ordem inversa: "you can't eat your cake, and have it too."


Mas hoje, ao sair de casa, eu totalmente entendi o significado da expressão. Estamos tendo um dos invernos mais quentes da história. Em meados de dezembro, está fazendo dez graus positivos em Toronto. Eu estava me deliciando com a idéia de um inverno com temperaturas um pouco mais decentes, até que me deparei com uma baita chuva hoje, e uma previsão de chuva ininterrupta para os próximos dias. E foi aí que percebi que um inverno quente significa que não cai neve. E neve é muito mais agradável que chuva. Com a neve,  fica tudo bonito e a gente não chega ensopada em casa. Sair na neve não exige guarda chuva, na implica sapato molhado, e não tem aquela coisa desagradável de carros e bicicletas passando em poças e molhando pedestres. 


O problema é que não dá pra ter seu bolo e comer ele: ou você tem um inverno quente, com muita chuva; ou você tem um inverno frio, com muita neve. Ainda não consegui decidir qual dos dois eu prefiro. No momento, com essa chuva toda, estou inclinada a pensar que prefiro o frio. Mas como prevê o ditado: assim que eu comer meu bolo, não vai demorar muito pra eu me arrepender e pensar que gostoso seria ter meu bolinho agora... 

Em contraste, o governo Canadense não está tão em dúvida quanto eu. A decisão deles de abandonar o protocolo de Kyoto, anunciada essa semana em Durban, indica claramente que eles preferem a chuva. Espero que não se arrependam depois!

2 comentários:

Marcelo disse...

você sabe que eu sou um fã do seu blog. essa semana, conheci um novo canadense arretado, al purdy (outro biriteiro, ai meu Deus, minha mãe vai me matar). tinha falado antes do erving goffman, o tipo de cientista social que eu gostaria de ter sido... quando sonhava. acho que compreender profundamente as expressões idiomáticas (e entender a poesia, na nossa, ou numa língua alheia) é uma dessas coisas mais bem descritas em termos religiosos - uma experiência de graça, se me permite. melhora com a idade. venha logo nos visitar!

Marcelo disse...

Indagado...notícias circulam! Mandei uma amostra do Al, traduzido por mim, sem pretensões. O Original está em http://www.library.utoronto.ca/canpoetry/purdy/poem2.htm

No dia de sua última enfermidade
Lu Yu aprontara um caixão simples,
e duas mantas para cobri-lo,
os que abriam covas foram pagos
o trabalho deles feito.
Ele então começou mais um poema,
logo antes de morrer,
sobre beber de novo na vila, o vinho -
Estava trabalhando no poema quando o enterraram,
pois metade de um verso projetou-se terra acima
aos ouvidos do tempo e do vento -
A luz do sol tocando as primeiras jovens sílabas
as últimas florescendo no caixão escuro:
"mercado, lá no/beber Um mais"
as primeiras três palavras acima do chão
as últimas servidas na Poeira Rubra.
Perto da vila de Shanyang
na Província de Chekiang...