Crônica decepcionante para uma fã estressada que estava aguardando ansiosamente a leitura? Imperdoável. Um amigo, poeta, ainda tentou defender o sujeito. Disse que ninguém acerta toda vez. Em especial quando se escreve semanalmente. Trouxe como exemplo as crônicas do João Ubaldo no Estadão. Ainda assim, não perdoei o Patrinha (apelido carinhosamente dado a ele pelo meu primo). Erra a mão qualquer outro dia, meu amigo. Mas essa semana, não!
Dada a gravidade do assunto, resolvi declarar guerra. Segue aqui minha respota à coluna da semana anterior, na qual o tal do Patrinha, muito jocosamente, tira um sarro do pessoal que se recusa a ouvir recados no celular e pede para as pessoas não gravarem mensagens. Diz ele que a moda pegou, graças a crença de todos de que estão tão ocupados, com tarefas tão importantes, que sequer sobra tempo para pegar um mero recado. Não se trata disso, meu amigo. Ninguém está em busca de eficiência e bom uso do tempo. O pessoal está em busca de paz.
Há tempos que eu eliminei o telefone da minha vida. Primero, só tenho celular. Não tenho telefone em casa. E não dou meu número para ninguém, exceto para as pessoas que sabem que não devem ligar a não ser em caso de emergência. Semana passada, um amigo com quem encontro quase toda semana brincou comigo, falando que até hoje não tem meu telefone. Eu disse que não gostava que as pessoas me ligassem. Ele disse que notou isso no dia que a gente se conheceu, pois ele me passou o telefone dele e eu dei meu email, acrescentando: - esse é o jeito mais fácil de entrar em contato comigo.
Anti-social? Não. Sou anti-caroneiros (free-riders em inglês). As pessoas tendem a achar que seu ouvido e seu tempo livre estão à completa disposição delas. E daí tomam carona no seu tempo, sem seu consentimento. E o telefone, infelizmente, é uma tecnologia que tornou essa -- falsa -- crença em uma realidade dolorida. As pessoas ligam e perguntam o que você está fazendo. Se a resposta é: "- nada, estava lendo uma revista no sofá", elas se sentem na liberdade de engatar em uma conversa contigo. O pressuposto é sempre que a não ser que você esteja ocupada, você quer falar com a pessoa -- nunca o contrário. Mas a verdade, ao menos para mim, é sempre o contrário: eu não quero falar com as pessoas, em especial quando aproveitando meu tempo livre!
O problema todo é que a gente criou regras sociais em que não é aceitável você virar pra pessoa e falar: - "Eu prefiro continuar a ler a minha revista, cujas reportagens são infinitamente mais interessantes do que seus problemas pessoais. Com licença." Resultado? Angústia. Milhares de pessoas, permaneciam lá, presas naquela ligação, sem poder usufruir de suas revistas, do sofá, ou do silêncio, por causas desses pentelhos que usam e abusam da maravilha tecnológica que é a telefonia. Por causa disso, alguém inventou a secretária eletrônica. Bem me lembro do dia no qual eu pude, sentada no sofá, lendo minha revista, ficar apenas esperando o recado, ver quem estava ligando, e decidir se eu queria falar com a pessoa ou não. Um maravilhoso mundo novo -- um mundo cheio de paz e liberdade -- se abriu com as secretárias eletrônicas.
A liberdade recém adquirida com essa maquininhas parecia não ter mais fim, até chegarem os celulares. E aqui é que está o cerne do problema. Quando as mensagem ficam na sua casa, você liga de volta quando der (leia-se, quando você quiser). As desculpas são as mais variadas: estava viajando, passei o dia fora, cheguei em casa e não vi a luzinha piscando, etc. O problema é que com o celular não dá pra escapar. A pessoa espera que você ligue de volta. E ligue logo. E ela sabe que você vai ver que tem um recado e vai ouvi-lo. E daí você está perdido, de novo. Voltamos, portando, à prisão que existia no momento pré-secretária eletrônica. Exceto que agora esse pentelhos te acham mesmo quando você não está em casa. Não há local onde você esteja salvo. O momento de ler a revista no sofá talvez possa até ser preservado, por uma hora ou duas, mas nada mais que isso.
Portanto, acho muito natural que as pessoas estejam tentando fugir disso com o pedido de não deixarem recados. Sim. Mensagens de texto não exigem resposta tão pronta, e facilitam escapatórias, pois tornam as desculpas esfarrapadas menos gaguejantes. Mais importante: as mensagens de texto (e os emails, no meu caso) preservam intacta todas essa nossa hipocrisia. Afinal, ninguém quer sair por aí falando diretamente na cara dos outros "não quero falar contigo, cai fora!". Então, continuamos a procurar maneiras diplomáticas de fazê-lo. A mensagem de texto hoje é a secretária eletrônica de ontem.
Portanto, se liga, Pratinha: o pessoal só não quer que você fique enchendo o saco. Em vez de ficar ligando para as pessoas e perdendo tempo no telefone, você devia mesmo é trabalhar mais tempo nas crônicas pra não escrever de novo um desastre, como o dessa semana. Fica a dica.
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Antonio Prata
Plano
Juntar dinheiro; montar um bunker; roubar exemplares de Hamlet e, neles, inserir a frase 'Ai, se eu te pego...'
Descobrir qual é a atividade profissional mais bem remunerada. Fazer cursinho. Prestar vestibular para a área. Ser o primeiro da classe. Arrumar um emprego. Ralar, sem pensar em outra coisa, até juntar 20 milhões de dólares. Pedir demissão. Comprar um sítio em Jundiaí. Construir um galpão subterrâneo. Adquirir as mais modernas impressoras industriais. Contratar excelentes artistas e produtores gráficos. Instalá-los no bunker.
Descobrir quais são os dez países em que mais se estuda e se monta peças de Shakespeare. Contratar quadrilhas especializadas em roubo nos dez países. Surrupiar das bibliotecas públicas e privadas, lenta e discretamente, o maior número possível de edições de Hamlet. Mandá-las para Jundiaí.
Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, do couro da capa ao amarelo das páginas, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Devolver as edições adulteradas às bibliotecas. Queimar as originais.
Comprar anônima e paulatinamente, nos sebos destes mesmos países, todas as edições de Hamlet que se puder encontrar. Mandá-las para Jundiaí.
Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, dos furos das traças às manchas de café, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Doar as obras adulteradas aos mesmos sebos em que foram compradas. Queimar as edições originais.
Comprar o silêncio das quadrilhas e dos artistas gráficos. Se preciso for, pagar mais às quadrilhas para matar os artistas gráficos e, depois, exterminar as quadrilhas.
Contratar hackers para adulterar as versões on-line de Hamlet e incluírem a frase "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!", no final do segundo ato. Comprar o silêncio dos hackers. Se preciso for, matar os hackers.
Sequestrar o crítico literário Harold Bloom. Mandá-lo para Jundiaí. Obrigá-lo a inventar uma explicação qualquer para a omissão do trecho "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego", em diversas edições da peça. O erro de uma gráfica londrina, em 1756? A mão pesada de um editor marselhês, em 1809? Obrigá-lo a escrever um ensaio sobre Hamlet e citar, numa nota de rodapé, a omissão do trecho. Mandar o ensaio para a Oxford Literary Review. Dinamitar o bunker -com Harold Bloom dentro.
Esperar duas décadas.
Viajar para a Inglaterra. Reservar um camarote para assistir Hamlet, no Royal Shakespeare Theatre, em Stratford-upon-Avon. Mandar fazer um smoking sob medida. Contratar uma acompanhante eslava, loira, de olhos azuis e 1,82 m. Ir ao teatro com Nadia ou Milka ou Zora. Pedir uma garrafa de champanhe Cristal. Dar o último gole três segundos antes do final do segundo ato e ouvir o melhor ator da Royal Shakespeare Company recitar, para 1.500 homens de paletó e mulheres cobertas de brilhantes: "Oh, if I catch you, oh, oh, if I catch you!".
Voltar para Jundiaí e passar o resto dos meus dias criando curiós.
4 comentários:
Seu amigo poeta tem razão . João Ubaldo, Verissimo, Calligaris, Cony...são tantos que escrevem toda semana e que às vezes decepcionam seus leitores. Descontar o stress no
Pratinha foi demais...
ahahahhahaha... take it easy, my dear sister! o pratinha também é humano!
respira no saco, pensa na cor azul, lê uma das crônicas do livro (que é garantia de felicidade) e siga adiante ;)
só uma correção: o apelido carinhoso, quem deu foi nosso primo marcelo, em algum comment que ele fez.
beijos e chá de camomila pra vc!
Acho que fui eu mesmo, por ser ele filho do Prata pai, o Mário, ou copiei alguém. Mas essa do Shakespeare está mesmo horrível. A do telefone, vejo como um lamento pela adultícia, talvez não da forma como ele racionalizou, no que importa à ocupação mais eficiente do tempo e ao peso das responsabilidades, reais ou deliradas - ser um elo importantíssimo no processo de fritura do torresmo, que metáfora cruel para a vida! -, mas pela perda da espontaneidade, da capacidade de fruir do inesperado, do vigor de fazer as coisas na lata. Enfim, seja ele bem-vindo à maturidade, que tem também suas delícias. Mas o seu caso é fácil de resolver. Volte a dar o seu telefone para todos e treine a sua cara de pau!
Não posso deixar de comentar o que acabei de ler, ainda meditando sobre essa coisa de virar adulto, os amigos já não acodem como outrora, ou é a gente que já não os quer acudir, há as contas para pagar, e morrer é uma solução para as contas, mas não para a vida... e veja que porcaria: uma defesa acadêmica do infanticídio, num journal do BMJ http://jme.bmj.com/content/early/2012/02/22/medethics-2011-100411.full . O argumento básico é a equivalência moral do feto ao recém-nascido, e a idéia de que não se lhes comete injustiça se lhes tiramos a vida, pois “...although it is hard to exactly determine when a subject starts or ceases to be a ‘person’, a necessary condition for a subject to have a right to X is that she is harmed by a decision to deprive her of X. ... Those who are only capable of experiencing pain and pleasure (like perhaps fetuses and certainly newborns) have a right not to be inflicted pain. If, in addition to experiencing pain and pleasure, an individual is capable of making any aims (like actual human and non-human persons), she is harmed if she is prevented from accomplishing her aims by being killed. Now, hardly can a newborn be said to have aims, as the future we imagine for it is merely a projection of our minds on its potential lives." Bom, para ver se param de nascer essas crianças que viram filósofos assim coxos de imaginação e de mínima erudição, vou entrar na do Pratinha, e defender que paremos também “com esse arcaísmo de botar-se nu sobre outra pessoa, igualmente nua, e ficar indo, vindo e grunhindo”...
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