Segue abaixo um texto do meu primo M., que incitou um debate interessante. Coloco a resposta na sequência. E proponho que todos abram uma garrafa de vinho e participem do debate (como fazemos nos jantares de família)!
Texto de autoria de M. (o outro M., não eu):
Talvez já lhes tenha incomodado individualmente com esse assunto, com o qual encasqueto às vezes, o “primum non nocere”, que se atribui em espírito a Hipócrates (pois parece que a frase exata não está nos aforismas), “antes de tudo não causar dano”.
No juramento médico, há o sentido raso de não intencionar o mal com relação ao paciente, mas todos nós sabemos que ações bem intencionadas e salvadoras para a maioria (por exemplo, restaurar a pressão arterial em um paciente grave) também podem causar mal, e matar. E, por outro lado, não intervir quando o risco-benefício é favorável, temendo o dano improvável, é também lesar por omissão. A questão crucial é saber quando e em quem intervir – uma questão de “fato” (de diagnóstico, fato interpretado à luz do melhor conhecimento), mesmo que se admitam direitos individuais de negociar-se os limites de sub ou super tratamento.
Pois bem, as categorias diagnósticas (nosológicas) podem ser “acertadas” sindromicamente de modo a se adaptarem ao comportamento médico e à disponibilidade de medicamentos possivelmente eficazes para cada síndrome. Uma “amigdalite purulenta” (mais provavelmene causada por estreptococo) merece o risco da antibioticoterapia, ao passo que a não-purulenta não. (Essa díade ainda faz parte da nosologia brasileira, e provavelmente de outros países que não dispõem de testes estreptocócicos diretos, não é mais muito científica, apenas presta para não se prescrever antibiótico demais em uma condição benigna).
Mas na psiquiatria o negócio enrosca. Uma questão em ouriçado debate no novo DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders): a partir do DSM-4 foi acrescida a entidade distúrbio bipolar tipo II, pacientes que têm humor predominantemente depressivo na maior parte do tempo, mas que apresentam breves períodos (dias, mais que semanas) de hipomania – humor expansivo e/ou irritável que não é característico da pessoa, pensamento e discurso acelerados, inclinação ao risco com destemor (compras, sexo), mas sem chegar ao delírio, à psicose e à hospitalização.
A legitimidade é inegável, a síndrome é reconhecível, a resposta terapêutica é melhor com os neurolépticos atípicos e os antieplépticos estabilizadores de humor do que com os antidepressivos. Parece mesmo ser uma doença diferente da depressão pura, biologicamente falando, embora fenomenologicamente sejam na maior parte do tempo parecidas. Para não ser injusto: os períodos de hipomania podem ter grande importância na vida da pessoa e mesmo da humanidade, como quando permitem o início de projetos criativos (livros, negócios, guerras, etc), ou também quando dão em merda. E a depressão também, ora essa, ligando a alma ao sentido profundo das coisas, que é mesmo obscuro e sediço, suponho.
Mas, agora estou chegando ao ponto, o DSM pode ser “ajustado” para que se incluam ou excluam pacientes em uma categoria. No caso em questão, todos acordarão que cinco minutos de alegria explosiva não são critério suficiente para inclusão – mas serão necessários os quatro dias previstos no DSM-4? Na prática, a maioria dos episódios de hipomania dos bipolares tipo II tem um a três dias de duração, não quatro. Mas se você afrouxar o critério, incluirá sujeitos deprimidos ocasionalmente eufóricos, e não verdadeiramente bipolares. Uma vez incluído, há a propensão a usar aquelas drogas que mencionei, mais caras e tóxicas do que os antidepressivos. Aí vem um “primum non nocere” na cabeça do legislador do DSM, e ele perde de vista facilmente que esses critérios serão utilizados subsequentemente na elaboração de protocolos de pesquisa, no ensino aos médicos que estão chegando, e sobretudo no agrupamento de pacientes para o teste de drogas específicas.
Descolar a nosologia excessivamente da informação científica disponível, mesmo que com boa intenção, pode destruir a percepção de anomalias (no jargão kuhniano, é o acúmulo de anomalias uma característica da ciência normal, e também uma pré-condição para a mudança de paradigma) nas teorias vigentes, e assim obstar o progresso da ciência. É como se, ao avaliar o efeito dos antibióticos no curso clínico da amigdalite, desistíssemos de saber se a etiologia é bacteriana ou não, e concentrassemo-nos no efeito que as drogas têm em grupos divididos pelo aspecto macroscópico (purulência ou não), já que isso é tão prático e popular, e ainda reduz a prescrição total de antibióticos, o principal problema real que enfrentamos – o "primum non nocere" da questão.
Percebem o quanto isso é parecido com fazer política (diplomacia), em vez de fazer ciência? E percebem o quanto a ciência às vezes terá que se satisfazer (talvez por uma centena de anos) apenas com a imaginação?
Nenhum comentário:
Postar um comentário