sábado, 29 de setembro de 2012

Direito e a verdade

Minha resposta ao post anterior. Tragam mais vinho!

Os problemas que você levanta aparecem também no direito. Um exemplo simples: limites de velocidade. Ao estabelecer que o limite é 100Km/h, ao invés de 90 ou 110Km/h o legislador está também fazendo um cáculo de custo-benefício. Risco de acidente e fatalidades versus agilizar os meios de transporte (e consequentemente a economia, etc). O limite arbitrário de 100Km/h pode ser super ou subinclusivo, pois inclui o motorista com um carro antigo que não poderia andar nessa velocidade com segurança, e também o veículo mais moderno e sofisticado que atinge 300Km/h sem perder a estabilidade. O exemplo é simples, mas acho que o problema é o mesmo.

Como justificar essa determinação aparentemente arbitrária? No direito, o argumento é que o legislador prefere fazer o corte ao invés de delegar essa decisão para o aplicador da lei, seja ele o policial ou o juiz. A alternativa seria uma regra aberta, que diz: será multado e poderá ter sua carteira confiscada o motorista que dirigir a uma velocidade tão alta que imponha perigo a si mesmo e a terceiro. Nesse caso, fica a critério do policial e talvez do juiz, se o caso for parar em um corte, determinar o que é uma velocidade alta.

Dar esse tipo de discricionariedade para o aplicador da lei, todavia, é algo que não nos sentimos confortáveis em fazer. Ao menos não nos países com o sistema de civil law, como o Brasil e a maioria dos países da América Latina e da Europa continental. Desde a revolução francesa, nesses sistemas o juiz (o aplicador) é conhecido como "a boca da lei", ou seja, a pessoa que apenas proclama aquilo que foi ditado pelo legislador.

O contraste com os países de common law é evidente. Nos Estados Unidos, Canadá e outras ex-colônias britânicas, a função do juiz é fazer lei. Ele pode reverter o que o legislador disse e com frequência o faz. Nesse caso, ainda que o legislador tenha dito que há um limite de velocidade, o juiz pode entender que certas exceções são válidas e ao estabelecer quais seriam essas exceções, sua decisão vira regra a ser aplicada pelos policiais dali em diante. Ou seja, é um sistema que dá mais discrionariedade para o aplicador, nesse caso o juiz. Mas também é um sistema que prepara o aplicador para usar tal discrionariedade com parcimônia.

Não é à toa que aqui as faculdades de direito são pós-graduação. Você apenas pode cursar a graduação em direito depois de obter um outro bacharelado. E apenas podem virar juízes pessoas no fim da carreira, que já demonstraram competência e notório saber jurídico, e já tem idade suficiente para não ter qualquer ímpeto de agir como justiceiros. Isso sem falar no fato de que a faculdade prepare esses aspirantes a legisladores a contemplar os prós e contras de todas leis e decisões judiciais, ao invés de criar um sistema de decoreba de códigos e provisões legais, que é o que temos atualmente no Brasil.

Por que estou falando tudo isso? Porque eu acho que o seu texto precisa fazer uma distinção entre aqueles que formulam a política e aqueles que aplicam ela. O clínico que está lidando com o paciente no dia a dia do hospital não faz a ciência evoluir. Quem faz a ciência evoluir é o médico envolvido em pesquisa, que está com certeza em diálogo com o formulador de políticas públicas o tempo todo. E se os critérios cientificamente aceitos mudarem, muda a regra. A questão que se levanta é se o formulador de políticas públicas tem algum motivo para achar que pode dar ao clínico discricionariedade para decidir caso a caso, dando uma parâmetro pré-definido, como de um a quatro dias. É aí que a coisa pega.

Acho que eu iria mais longe, para argumentar que o formulador de políticas públicas provavelmente deve ter feito um cálculo um pouco mais complicado (ao menos assim espero). O cálculo seria: do universo de possíveis pacientes, qual o percentual que apresentaria os sintomas em menos de quatro dias, e desse universo qual a probabilidade de um paciente apresentar os sintomas sem ter o distúrbio. Se os números forem significativamente maiores para o segundo do que para o primeiro (ou seja apenas 20% dos pacientes que apresentam os sintomas em menos de quatro dias tem o distúrbio, enquanto que 95% dos pacientes que apresentam os sintomas em quatro dias ou mais tem o distúrbio), parece justificável que a regra fique como está. Caso contrário, o formulador de políticas públicas está assumindo um risco de erro de diagnóstico em 80% dos pacientes com sintomas em menos de quatro dias. Em contraste, o risco seria de apenas 5% nos casos de quatro dias ou mais de sintomas). Decide-se, portanto, pela opção que impõe menos custos para a sociedade (ainda que os 20% que ficaram sem medicação adequada não achem isso justo).

Se eu estiver certa nessa minha análise, quem quer que tenha formulado os guidelines não está seguindo o princípio de antes de tudo não causar dano no plano individual, mas sim no plano coletivo. Evita-se o risco de causar dano ao universo de 80% de pacientes, causando-se dano ao universo de 20% daqueles que poderiam se beneficiar da medicação.

A alternativa seria dar discricionariedade para os clínicos (ou para os aplicadores da lei), e assumir o risco de erro. Mas daí a questão é se temos uma infraestrutura de educacão, seleção e controle desses clínicos, que nos ofereça alguma garantia de que estão fazendo a coisa certa na maior parte do tempo. Se nada disso existir, os 20% ficam com o medicamento que precisam, mas um grupo de 80% de pacientes vai ser medicado de maneira equivocada.

Por isso é preciso mais do que regras boas, mas sim infraestrutura para garantir que quem aplica essas regras sabe o que está fazendo. No direito, ao menos no Brasil, eu te garanto que esse infraestrutura não existe. Ficamos, portanto, com o menor dos males...








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