Os passáros sobreviveram. E os vizinhos também. Depois da tempestade, tive a oportunidade de conhecer os famosos Joneses. O termo vem da expressão idiomática: "keeping up with the Joneses". A expressão se refere a essa ânsia que temos de ter um padrão de vida tão ou mais alto do que o do vizinho. Jones é um sobrenome bastante comum por aqui. É o equivalente do Silva no Brasil. E eles colocam o sobrenome no plural para se referir à família toda. Assim, Jones vira Joneses.
Pois no sábado de manhã, depois da tempestade, assim que a neve parou de cair, saíram todos os Joneses de todas as casas e começaram o longo processo de escavação. Sim, retirar neve é um processo de escavação. Com uma pá cada um, aos poucos, íam todos conseguindo ver primeiro a escada da casa, depois um pouco da calçada e, por fim, os carros. E o que eu descobri, depois de passar várias horas escavando com os Joneses, é que keeping up with the Joneses é uma tarefa difícil.
A primeira Jones com quem encontrei foi a minha locadora, que mora no andar de baixo da casa. Sem pá, na sacada da casa dela, ela agitava os braços, gritando a plenos pulmões:
- Isso aqui é tão melhor que a batalha da normandia. Eu tava de saco cheio da batalha da normandia!
Eu quase retruquei que aquele processo massivo de escavação não deixava de ser uma batalha, mas depois descobri que, durante a tempestade, ela ficou lendo um livro sobre a segunda guerra mundial. Portanto, ela estava mais se referindo ao alívio de poder sair de casa do que ao esforço físico que a retirada de toda aquela neve ia demandar. E ainda que ela estivesse se referindo ao esforço físico, o processo de limpeza certamente seria, pra ela, muito melhor que a batalha da normandia. Enquanto todos limpavam, ela se limitou a dar ordens, tirar fotos, e gritar que aquilo era melhor que a batalha.
E a primeira ordem dela foi para jogarem toda a neve no meio da rua, que tinha sido limpa por um trator para que os carros pudessem transitar. Imediatamente apareceu o segundo Jones para protestar. Se jogássemos a neve no meio da rua, ele não conseguiria sair com o carro. A primeira Jones respondeu que ele não tinha para onde ir com o carro, pois a cidade estava toda interditada. Além disso, argumentou ela, o trator ia passar novamente, com certeza. Ele, todavia, achava que o trator nunca mais daria o ar da graça e vetava a proposta da primeira Jones.
A discussão acalorada chamou a atenção da terceira Jones, que limpava sua casa do outro lado da rua. Ela veio se juntar ao grupo, visivelmente perturbada:
- Não tenho onde colocar toda a neve. Queria jogar na rua, mas também quero poder sair com o carro. Se eu não jogar na rua, não tenho mais onde jogar, pois meu jardim está entulhado.
Ao chegar à constatação sobre o jardim entulhado, ela voltava à frase inicial, afirmando que não tinha onde colocar tanta neve. E repetia tudo de novo até chegar no jardim entulhado de novo. E daí começava do início, sem lugar para tanta neve. O monólogo seria quase uma reza, se ela não estivesse ficando cada vez mais perturbada cada vez que repetia as frases e descobria, ao final da sequência, que nenhuma solução para o problema tinha sido encontrada. Tive vontade de pegar o livro sobre a batalha da normandia e começar a ler em voz alta para acalmá-la.
Para alívio de todos, em especial da terceira Jones (que a esse ponto já estava quase delirante com aquele quebra-cabeça da neve), o segundo Jones disse que ele ia construir um castelo de neve na entrada da casa dele. Trata-se de um adulto, pai de duas crianças, cidadão com emprego que paga suas contas em dia. Mas ele decidiu que naquele dia ele precisava de um castelo de neve. Portanto, toda a neve da rua seria acumulada na calçada na frente da casa dele.
Ninguém pareceu se assustar ou estranhar a proposta. Ao contrário. A primeira Jones aprovou prontamente:
- Você é um artista! Isso é tão melhor que a batalha da normandia! E voltou a tirar fotos.
A terceira Jones também gostou da idéia:
- Quer dizer que eu posso tirar a neve da minha calçada e jogar na sua?
Ela deu um suspiro profundo, aliviado. Parecia não acreditar que, de repente, o problema dela estava resolvido. Havia, afinal, um terceiro lugar que não era nem o jardim dela nem a rua. E ela não parecia se importar com o fato de que aquela solução implicava trabalho extra para ela, que agora tinha que atravessar a rua com uma pá carregada de neve, para soterrar o vizinho.
Quando as duas casas ficaram acessíveis e a terceira soterrada com a neve das duas primeiras, os três Joneses notaram que havia surgido mais ao fim da rua a quarta Jones. Uma senhora com seus sessenta anos, que aos poucos ia jogando pequenas pás de neve no seu quintal. Os Joneses que tinham acabado seu serviço (exceto pelo castelo de neve ainda a ser construído com toda aquela matéria prima) decidiram ajudar a senhora. Mas ela recusou a ajuda, alegando que a vizinha dela e o marido, que moravam na última casa da rua e ainda não haviam aparecido, precisam de mais ajuda que ela:
- Estou com saúde e consigo fazer isso sozinha. Os Joneses da outra casa, em contraste, não estão bem de saúde. Limpem, portanto, a casa deles.
Interessante notar que o diálogo não era informado por gentileza e cortesia. Ou seja, a quarta Jones não recusava a ajuda por educação. Na verdade, ela estava verdadeira e sinceramente protestando contra todos aqueles Joneses, que estavam privando ela do privilégio de poder limpar sua própria casa. Para ela, aquilo era um verdadeiro absurdo.
Os Joneses ignoravam solenemente o protesto e continuavam limpando a casa da quarta Jones quando o trator passou na entrada da rua. A primeira Jones correu para o meio da rua, acenando com os dois braços e gritando para que o trator entrasse. Todos pararam. O trator parou na entrada da rua, olhou cuidadosamente para a neve e para os Joneses, como que decidindo se entrava ou não e, depois de um longo minuto, fez a manobra indicando que ia entrar.
A terceira Jones imediatamente começou a jogar a neve da quarta Jones no meio da rua. Jogava de maneira frenética. Sim, aquele era o momento para evitar que aquela pobre mulher se encontrasse diante do dilema que ela tinha enfrentado. A essa altura, não cabia mais neve na calçada do segundo Jones e era pouco provável que mais alguém na rua iria se aventurar a construir um castelo de neve. A quarta Jones, todavia, gritava a plenos pulmões para que a terceira parasse.
O problema foi que o trator entrou e começou a ir na direção da montanha de neve na frente da casa do segundo Jones. Esse, ao ver que seu sonho de ter um castelo ia ser destruído por aquele troglodita sem imaginação manobrando o trator, se jogou entre o trator e seu futuro castelo, pedindo para ele parar.
- Isso é melhor que a batalha da normandia! Gritava a primeira Jones, enquanto fotografava a cena.
Uma vez explicado que aquela montanha não deveria ser removida, o trator se dirigiu para a casa da quarta Jones, com o intuito de limpar a garagem e entrada de carros. Mas ela protestou. Queria tirar a neve ela mesma. Estava com saúde. Que a deixassem em paz!
Quando o trator se dirigiu então para a casa dos que não estavam bem de saúde, a quarta Jones protestou também, alegando que se ele tirasse a neve de lá, os outros Joneses iam continuar limpando a casa dela. Um verdadeiro absurdo!
O trator se resignou então a retirar o pouco de neve que a terceira Jones tinha conseguido jogar no meio da rua. Feito isso, foi embora. A terceira Jones viu o trator partir desolada. Não tinha dado tempo de jogar muita neve na rua. O segundo Jones, por outro lado, estava aliviado. Seu castelo não estava mais sob risco de ser destruído. A quarta Jones parecia tristemente resignada com o fato de que todos continuavam a retirar a neve da sua casa, apesar de seus protestos. A única que não contribuia com a escavação era a primeira Jones, que continuava a tirar fotos no meio da confusão, achando tudo aquilo infinitamente melhor que a batalha da normandia.
E assim alguns viveram felizes para sempre, enquanto outros nem tanto. Afinal, é difícil keep up with the Joneses!
P.S. As fotos são cortesia da primeira Jones.
5 comentários:
Mariana, adorei o que escreveu e adorei ver tanta neve e relato sobre. Aqui um calor enorme. Só o ar condicionado nos salva. E um texto refrescante como esse! Bj
Aqui, com o calor e o futebol , o domingo fica repleto de Silvas, nos bares....E haja cerveja para refrescar !!! Bj e bom domingo!
ri muito!
Muito bom. Estava realmente acontecendo alguma coisa espontânea e real lá fora. Me identifiquei totalmente com a primeira Jones.
Adorei sua materia... Nesse dia eu desci do predio que eu moro para ver o acumulo de neve de perto (pois eu nunca havia visto um montao assim antes), e os moradores das casas proximas estavam procurando lugar para colocar a neve, ja que tudo estava tomado por ela.
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