segunda-feira, 25 de março de 2013

Trens e Tabus

A gente evita, faz de tudo, dá aquela prendidinha, mas um dia acontece. Ele sai, barulhento e demorado, te envergonhando da pior forma possível. E quando sai fedido? Não há nada mais constrangedor. Pois é. Mas acontece um dia na vida de todo mundo, não tem como escapar. E aconteceu comigo na semana passada, eu acho.

Estava dentro do metrô, com o fone de ouvindo, prestando atenção no meu audiobook quando ele me pegou desprevenida. Quando senti ele saindo, já era tarde demais para fazer alguma coisa. Comecei a torcer para não ser um daqueles demorados, mas foi em vão. Ele resolveu dar um show particular. E eu tive que ficar ali, esperando tudo aquilo acabar enquanto fingia que nada estava acontecendo. Ao menos não era fedido. Usei isso como consolo naquele momento de desespero, vergonha e humilhação. Estava causando uma pequena inconveniência aos demais passageiros, mas ao menos era apenas uma inconveniência sonora. Afinal, a inconveniência olfativa afeta mais profundamente: entra no seu âmago e fica lá impregnada e você não consegue pensar em outra coisa senão matar a pessoa que perturbou sua paz de espírito daquela forma. Me consolei pensando que ao menos eu não me encontrava entre aqueles que incomodam a humanidade de maneira tão aterradora.

Discretamente levantei os olhos para avaliar a situação. Esperava olhares de reprovação de todos os lados, e talvez algum rosto piedoso que me desse uma chance de pedir desculpas. Mas os olhares não estavam lá. Ninguém me olhava diretamente. Algumas pessoas trocaram um rápido olhar comigo, mas fiquei sem saber se era uma rápida reprovação ou uma troca não intencional de olhares. Continuei a procurar por um olhar acusatório, um sinal de que alguém tinha testemunhado o meu pecado, mas não consegui achar nada conclusivo...

E foi aí que bateu meu desespero. Eu estava com fones de ouvido. Eu não sabia se algum ruído tinha sido produzido ou não. Se houve algum ruído, eu precisava me envergonhar como manda o figurino. Se não tivesse havido ruído, todavia, eu podia respirar aliviada, pois a heresia teria passado desapercebida e, com certeza, seria perdoada por qualquer ente metafísico que tivesse notado o que acabara de acontecer. Mas eu não sabia! Eu não sabia o que tinha acontecido! Como agir, se você não sabe se acabou de fazer algo errado ou não? 

Comecei a olhar em volta novamente. E daí notei que todas as pessoas ao meu redor estavam com fones, como eu. Portanto, ainda que tivesse havido sonoridade no evento, eles não saberiam. Pensei momentaneamente naquele problema discutido em todos os cursos de filosofia: se algo ocorre em um quarto escuro sem que ninguém veja, ouça, sinta ou possa vir a saber do acontecido, podemos dizer que o evento ocorreu? Um dos argumentos é que não, a realidade é somente aquilo que percebemos sensorialmente. Acho que parte da nossa sensação de alívio quando não há sonoridade ou odor é exatamente a idéia de que nenhuma outra pessoa vai ficar sabendo que aquilo aconteceu. Se o evento não passou a fazer parte da realidade de nenhuma outra pessoa, ele não ocorreu. Portanto, se estavam todos de fone, ainda que tivesse havido qualquer ruído, é como se nada tivesse acontecido. Problema resolvido.

E foi aí que vi a velhinha lendo o livro dela sentada do outro lado do vagão. Ela não tinha fones. Portanto, caso o evento tivesse o potencial de fazer parte de alguma realidade alheia, ele tinha se tornado parte da realidade daquela velhinha. Era a ela que eu devia meu pedido de desculpas. Comecei a buscar sinais de que ela sabia do que tinha acontecido. Mas ela lia avidamente seu livro, sem erguer a cabeça. Encarei ela durante o restante do trajeto, na expectativa de receber algum sinal -- apenas ela podia me dizer o que tinha acontecido naquele vagão há três estações atrás. Apenas ela sabia da verdade! Mas ou ela não queria compartilhar a verdade comigo, ou ela não havia presenciado o evento, mesmo sem fone. Uma verdadeira tortura!

Cheguei à conclusão de que seria inapropriado me aproximar da velhinha para perguntar se ela tinha ouvido algo. Não consegui achar uma maneira delicada e simpática de formular a pergunta, por mais que a questão estivesse me perturbando. Resolvi que, em nome da civilidade, teria que conviver para sempre com aquela incerteza. Mas precisei colocar aqui no blog esse desabafo para não deixar que toda essas regras de civilidade acabem por aniquilar tudo que há de mais humano e mais orgânico em mim. Mas já consigo sentir os olhares de reprovação direcionados a mim pelo leitores, exceto por aqueles que estavam com a página do facebook aberta enquanto liam o blog e não prestaram atenção no texto. Peço desculpas pela inconveniência causada por esse post, mas também gostaria de lembrá-los que ela poderia ter sido muito pior... 

4 comentários:

Maria Regina disse...

Muitos fazem , poucos admitem!...rs

Claudio disse...

Apesar de nosso cérebro super sofisticado, e da invenção da escrita – a mais fantástica tecnologia humana segundo Hélio Schwartsman (Folha, 09.03.2013), temos ainda forte componente “animal”.
Podemos fazer nossas refeições com talheres de prata. Podemos montar nossos banheiros com o melhor do design italiano. Porém, não há vivalma que consiga se sobrepor às imperiosas necessidades orgânicas.
Nem a rainha da Inglaterra em toda sua pompa e majestade, nem o papa Chico I podem se esquivar de “sentar no trono”.

Marcelo disse...

Mariana, imediatamente lembrei dos relatos do Pierre Clastres, sobre a peidorrência insolente dos Yanomâmi (esse e outros tópicos menos razos estão no "Antropologia da Violência"). Mas, cioso de que a Academia e as Redes Sociais não querem mais saber do lado feio e fedido da etnografia, e visando a poupar o seu blog de eventual inclusão no índex pagão informal do cruz-credo, me calarei. Cláudio, tem um poema do Auden, A Geografia da Casa, que se expande gostosamente no seu assunto. Vão duas estrofes traduzidas meio nas coxas (opa!):

Erguidos do penico,
Os bebês ouvem de suas mães
As primeiras palavras
Imparciais de louvor mundano:
A partir de então, iniciar
O dia com uma evacuação
Satisfatória traz bom presságio
Por toda a vida adulta.

...

Ó Mãe de todos, mantende
Nossos compassivos intestinos
Abertos pela vida inteira,
Purgai nossas mentes também:
Concedei-nos um final gentil,
E não uma segunda infância,
Petulante, de esfíncter fraco,
Nalgum hotel barato.

(Amém!)

Anônimo disse...

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