quinta-feira, 28 de abril de 2011

De volta às origens

Estava eu checando uma palavra qualquer no dicionário, na letra "c" e resolvi checar a palavra "candango". Sempre digo às pessoas que sou candanga, que é o termo usado para pessoas que nasceram na capital, Brasília. Para minha surpresa, todavia, essa definição não estava no dicionário. E para piorar as coisas, as definições que estavam lá não eram muito elogiosas: 

Candango s.m.  
1. nome que os africanos davam aos portugueses (derivado do kangundu que significa vilão, ruim, ordinário);
2. indivíduo desprezível, abjeto;
3. indivíduo destituído de bom gosto;
4. nome que designa cada um dos operários que trabalharam nas grandes construções da cidade de Brasília (DF);
5. cada um dos primeiros habitantes de Brasília;

Para não ter uma nova crise de identidade (a última que tive foi quando meu cabelo encaracolou...), estou tentando me encaixar nas definições, numa tentativa desesperada de permanecer candanga:


1. ainda que eu não seja portuguesa, sou descendente. Portanto, posso ter adquirido o título (de vilã) por herança;
2. tenho certeza que quando meus alunos recebem as notas alguns deles acham que sou um ser desprezível e abjeto. Portanto, sou candanga ao menos duas vezes por ano;
3. sempre que desembarco no aeroporto, minha mãe manifesta seu horror com minhas roupas fora de moda, que não combinam uma com a outra (até hoje lembro do "você não pode usar uma calça marrom com uma blusa azul, Mariana!). Portanto, tenho certeza que ela e todas as pessoas que entendem de moda iriam dizer que sou destituída de bom gosto;
4. minha grande construção em Brasília foi a plataforma que construí quando tinha uns 9 anos no topo da árvore perto da garagem do prédio. Serve?
5. acho que meus pais foram um dos primeiros habitantes de Brasília, se a gente estender o conceito de primeiro uns bons 10 anos depois da criação da cidade. Talvez possa adquirir o título por consaguinidade...
6. também posso argumentar, como boa advogada, que o dicionário ainda não incorporou o uso moderno do termo, porque a língua é muito mais dinâmica do que qualquer dicionário... 

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Certezas da vida

"Nada é certo na vida, exceto a morte e os impostos."  Quando Benjamin Franklin escreveu a frase que iria ficar tão famosa (na língua inglesa, pelo menos), ele claramente não tinha contemplado os níveis de sonegação fiscal que alguns países em desenvolvimento conseguem alcançar. Há nações em que o estado recolhe apenas 40% do total dos impostos devidos. Ou seja, pra um monte de gente por aí, só tem uma coisa certa na vida, a morte. Os impostos devidos podem desaparecer em um piscar de olhos, dependendo das circunstâncias.

Foi com esse pensamento que eu saí do escritório da contadora hoje, depois dela avaliar os dados pra minha declaração do imposto de renda. Se eu declarasse a renda que obtive com consultorias no Brasil (algo em torno de 7.000 dólares canadenses), teria que pagar 3.000 dólares de imposto. Se eu não declarasse essa renda, não devia nada para o governo. A decisão -- e a responsabilidade -- eram minha, disse a contadora, uma senhora indiana simpática e sorridente. Depois de me recomendar um restaurante indiano, ela sugeriu que eu fosse pra casa pensar sobre o assunto e voltasse lá quando eu tivesse decidido o que fazer. 

A tentação de sonegar o imposto era grande. Significava que minha poupança ia ter 3.000 dólares a mais no fim desse mês; ou que eu podia viajar pra Cuba durante o verão; ou que eu podia comprar uma Vespa e sair pela cidade livre, leve e solta; ou podia significar duas ou três passagens para o Brasil, com toda a comida e diversão que as viagens para o Brasil incluem. Enfim, 3.000 dólares não é uma quantia que se joga pela janela assim sem pestanejar.

Enquanto eu caminhava pela rua, me lembrei da conversa que tive com minha consultora financeira sobre o assunto. Eu tinha mencionado que era provável que eu teria que pagar impostos, se eu declarasse a renda que recebi no Brasil. Tivemos essa conversa antes mesmo de saber os montantes. Ela não pestanejou: - Pague. É melhor prevenir do que remediar ("You better be safe than sorry"). Ligar para ela a essa altura do campeonato, portanto, não ia ajudar. Ainda que minha poupança (a principal preocupação dela) fosse sofrer, ela ia me mandar voltar imediatamente para a contadora pra declarar tudo e pagar o imposto.

Por que os impostos eram certos para Benjamin Franklin, mas não são pra mim? Por que eles são certos para minha consultora financeira, mas não pra minha contadora? Uma dupla de pesquisadores americanos argumentaria que a razão é que Franklin e minha consultora são americanos, enquanto que eu e minha contadora somos do Brasil e da India. Ou seja, o problema é cultural. 

Esses pesquisadores fizeram uma pesquisa interessante sobre diferentes culturas e sua relação com leis. Basicamente, eles pegaram todos os representantes da ONU de diversos países que moram em Nova Iorque, e calcularam com qual frequência (i) eles estacionavam ilegalmente, e (ii) pagam as multas que recebiam. O experimento se torna particularmente interessante porque os funcionários da ONU são considerados corpo diplomático e, por causa disso, são isentos das multas. Ou seja, se eles estacionarem ilegalmente, vão receber o papelzinho da multa mas o governo nunca vai cobrar a quantia. Para quem não tem muita propensão a cumprir a lei, é o paraíso. E foi exatamente isso que os pesquisadores mostraram: diplomatas de países como Brasil e India estacionavam ilegalmente com uma frequência muito maior (às vezes o dobro ou triplo de vezes) que dos países anglo-saxôes e, em especial, dos países Nórdicos. E esses outros diplomatas quase sempre pagavam as poucas multas que recebiam, ao contrários dos brazucas e seus coleguinhas do sul do equador...

A pesquisa é reveladora porque quebra com um dos pressupostos mais básicos com os quais muitos juristas operam: as pessoas obedecem a lei porque senão elas serão punidas, ou porque vivem em um ambiente em que outras pessoas obedecem a lei. Ao contrário disso, o experimento mostra que as pessoas que tendem a obedecer a lei o fazem independente de punição ou do local onde se encontram. E eu, com toda a minha dúvida, parecia estar me encaixando muito bem no protótipo da cidadã subdesenvolvida que não obedece as leis. 

Fiquei meio deprimida e revoltada com essa conclusão, afinal esse tipo de comportamento é exatamente a coisa que mais me causa ojeriza quando vou ao Brasil. Ainda assim, toda minha revolta comigo mesma não me fez dar marcha ré e voltar para o escritório da minha contadora imediatamente pra pagar o que eu devia. 

Tentei me convencer de que eu certamente seria pega em algum momento. Em vão. A probabilidade do governo canadense conseguir obter algum tipo de dado do quanto eu ganhei no Brasil parecia ínfima, em especial porque o próprio pessoal que me pagou no Brasil não sabia direito quanto eles tinham me dado, e quanto de imposto eles tinham recolhido (se é que recolheram alguma coisa)...E ainda que eu conseguisse me convencer que eu ia ser pega, os pesquisadores de Nova Iorque iam falar que minha cultura ainda ia me impedir de obedecer a lei. Mas eu estava decidida a provar para eles que minha cultura não é determinante do meu comportamento, senão além de não pagar imposto preciso desistir da idéia de que dá para melhorar o Brasil...


Daí eu tentei pensar que, diferentemente do governo brasileiro, aqui eu tenho assistência médica gratuita, segurança, e paz de espírito. Ou seja, eu deveria estar pagando meus impostos sem pestanejar, pois era até um preço baixo por todos os benefícios que eu estava recebendo. Lembrei inclusive do episódio em que eu liguei para a polícia as 3 da manhã porque eu tinha ouvido "alguém" quebrar um vidro no meu quintal, que era dividido com outras casas. Em menos de 10 minutos tinha uma equipe de quinze homens armados no meu quintal, vasculhando tudo com lanternas, enquanto a mulher do serviço de emergência estava comigo no telefone, me dando instruções para ficar dentro de casa até que eles tivessem terminado as buscas. Eles terminaram as buscas, e um oficial bateu na minha porta, com seu fuzil, colete a prova de balas, capacete e lanterna para me informar que tinha um guaxinim no meu quintal vasculhando o lixo. Fiquei rouxa de vergonha, e comecei a me desculpar. O oficial me interrompeu no meio da frase e disse que eu fiz o certo. Se eu ouvisse barulhos no quintal de madrugada, não interessa quais fossem, eu tinha que chamar a polícia. Esse era o trabalho deles: garantir que eu estava segura. Fui dormir naquele dia pensando como eu amo esse país! Ainda assim, hoje eu não conseguia me convencer que 15 policiais armados no meu quintal as três da manhã valiam 3.000 dólares...


Foi aí que eu entendi o que estava acontecendo. Era o que em inglês se chama ownership bias, que eu não sei muito bem como traduz mas seria algo como o efeito de ter uma propriedade (recomendo o livro do Dan Ariely sobre o assunto). Baseados em experimentos, alguns economistas mostraram que bens de mercado não tem um valor absoluto. Ao contrário, as pessoas valorizam mais as coisas depois de adquiri-las. Por exemplo, um dos experimentos perguntava quanto algumas pessoas estavam dispostas a pagar por uma caneca de café. Daí essas pessoas recebiam canecas gratuitamente. Depois de um tempo, essas pessoas tinham a possibilidade de vender as canecas. Como as canecas tinham sido gratuitas, vender elas seria sempre lucrativo, a qualquer preço. Mas havia uma expectativa de que as pessoas iriam pedir mais ou menos o preço que elas tinha declarado antes de ganhar as canecas. Todavia, não foi isso que aconteceu. As pessoas que tinham ganhado as canecas pediram preços muito maiores do que haviam declarado anteriormente, e alguns apenas concordaram a preços extorsivos (ou seja, preços muito maiores do que o valor de mercado das canecas).

Era exatamente isso que estava acontecendo comigo, o ownership bias. Eu pago mais do que 3.000 dólares de imposto por mês, mas eu nem noto porque o valor é deduzido do meu salário antes do montante ser depositado. Portanto, penso que pago isso de imposto todo mês e não me incomoda. O problema é que o dinheiro do Brasil entrou na minha conta. Ou seja, eu adquiri propriedade sobre aquele montante (como as pessoas que ganharam canecas), e agora eu valorizo isso muito mais do que eu valorizaria se alguém tivesse me falado que iam deduzir 3.000 antes de fazer o pagamento. Eu sei que 3.000 dólares são 3.000 mil dólares, e não interessa se eu perco o dinheiro antes ou depois de receber o pagamento. Mas esse raciocínio não elimina a sensação -- totalmente psicológica e irracional -- de que perder 3.000 dólares que eu tinha ganho é pior do que deixar de ganhar 3.000 dólares. Conclui que os governos são muito expertos de recolher imposto na fonte, pois caso contrário a tentação de sonegar ia ser muito grande.   


Voltei para o escritório da contadora e falei pra ela que ia declarar todo o montante. Ela soltou alguma piada qualquer e me deu o boleto para pagar no banco. Ainda não consegui decidir se paguei os 3.000 dólares por causa do risco de cair na malha fina, ou da reprimenda moral da minha consultora financeira, ou do meu medo de ser confundida com pessoas de países subdesenvolvidos que não obedecem a lei, ou da minha paúra de ver que eu estou agindo de maneira completamente irracional, por causa do ownership bias. No momento, estou achando que eu paguei só pra poder escrever essa história no blog. Afinal, se eu tivesse sonegado, não ia ficar declarando isso por aí em público. Portanto, sinta-se prestigiado: você acaba de ler uma história que me custou 3.000 dólares!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Crianças em desenvolvimento

Em homenagem a todas as minhas amigas que nos últimos anos viraram mães e agora andam com seu pimpolhos, seguem minhas impressões de como os bebês crescem:

Fase 1: antes de conseguir andar, eles dançam na cadeirinha e choram quando não tem música (afinal essa vida de cadeirinha deve ser muito monótona....)




Fase 2: eles começam a andar e agora podem dançar a vontade, celebrando toda a liberdade de não ter que ficar preso(a) a uma cadeirinha




Fase 3: Daí eles começam a falar. As crianças dos Estados Unidos contam histórias sobre mercados (venderam os robôs), guerras (destruíram o planeta) e poder (não mexa com Vader)



Enquanto isso, do outro lado do oceano, as crianças francesas estão preocupadas com liberdade (no final, todos podem fazer o que querem, até as crianças), igualdade (veja a preocupação dela com os animais pobres que não tinham dinheiro pra comer), e fraternidade (o leão mata o hipopótamo e perde todos seus poderes) 


Once upon a time... from Capucha on Vimeo.

Fase 4: Daí eles(as) cansam de contar histórias, voltam a dançar e cantar, e soltam a franga...





Fase 5: Daí eles(as) se formam na faculdade, arranjam um emprego, começam a ter filhos e todo o ciclo começa novamente....

Ps - Thanks J. and tia for the videos! 

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vida pós São Francisco

Enquanto eu estou aqui, de doce em doce na minha vida pós-diabetes, descobri que meu contemporâneos da São Francisco andam fazem coisas bastante interessantes por aí. Claro que uma parte deles virou juiz(a), promotor(a), advogado(a). Mas uma outra parte -- não menos considerável -- resolveu se aventurar por aí.

O Salone escreveu um livro entitulado, 'Irredutivelmente Liberal - Política e Cultura na Trajetória de Júlio de Mesquita Filho'. Sim, o livro é sobre um antecessor nosso na São Francisco, pois nós somos assim auto-centrados...

A Graci, que adora viajar, está em Berlim, estudando direito em alemão! E, como great minds think alike, ela criou um blog que chama Graci-in-berlin.blogspot.com (dá uma olhada no endereço do meu blog, pra você ver a coincidência). E, como não poderia deixar de ser, ela fala da São Francisco em um dos posts.

Por fim, a Otávia resolveu usar todo seu conhecimento jurídico para fazer bolos decorados. Ela já cozinhava maravilhosamente bem na faculdade, e acho que ela decidiu que ia ser mais feliz ganhando dinheiro fazendo uma coisa que ela gosta. Como toda São Franciscana que se preze, ela tem um blog, e já até aparecendo em programas de TV!  Tenho certeza que um dia desses ela faz uma referência à São Francisco em rede nacional...



sábado, 16 de abril de 2011

A mente humana: essa ilustre desconhecida

Durante uma das nossas conversas semanais ao telefone, minha mãe recomendou um artigo sobre meu pintor favorito que saiu na Veja. Eu tenha absoluta ojeriza pela revista, de maneira que minha resposta não foi muito entusiasmada. Minha mãe insistiu: 

- Leia. O artigo está muito bem escrito. O autor do artigo diz que o Hopper é o pintor do amor.
- Pintor do amor??? Mãe, se tem alguma coisa que o Hopper não é, é pintor do amor.  Ele pode ser o pintor da solidão, do vazio, da individualidade norte-americana, mas não do amor.
- Ah, minha filha, era alguma coisa poética assim...

No final das contas, o título do artigo era "O homem que pintava com a alma", o que soa bastante cliché para meus ouvidos (mas, como eu disse antes, não gosto da revista e talvez esteja sendo injusta com o sujeito que escreveu o artigo...). Mas o ponto interessante da conversa não é o quanto de poesia se pode encontrar no título do artigo, e sim a razão pela qual minha mãe se referiu ao artigo desta forma. 


Em uma conversa com um colega, descobri essa semana que há dois tipos de memória. Uma memória associa um pedaço de informação com a experiência gerada para a pessoa que está adquirindo aquela informação, enquanto o outro tipo associa um pedaço de informação com outros pedaços de informação, que não estão associados àquela pessoa. Acho que o primeiro chama memória episódica e a segunda eu esqueci, então vou me referir a ela como não episódica.

O exemplo que meu colega me deu é o seguinte: se você mostra uma foto antiga, a pessoa que tem memória episódica forte, vai ser capaz de lembrar qual a ocasião em que a foto foi tirada (casamento, festa de aniversário, etc) e qual a sensação que a festa causou (boa ou ruim). Em contraste, se você mostra uma foto antiga para alguém cuja memória mais forte é a não episódica, essa pessoa consegue indicar os nomes das pessoas na foto, a profissão delas, a relação que elas têm entre si (quem é casado com quem, quem é filho de quem), mas é incapaz de lembrar quando e porque a foto foi tirada. 


Algum tempo depois da conversa, eu percebi que isso explicava porque minha mãe não lembrava o título do artigo sobre o Hopper. A informação que ela tinha gravado era a impressão que o artigo tinha deixado nela, ou seja, o fato de ela achou o título e talvez o artigo bastante poético. Em contraste, uma pessoa que tem uma memória episódica fraca provavelmente associaria o conteúdo do artigo com o conteúdo de outras análises de Hopper (ou de outros pintores). Essa segunda pessoa seria portanto capaz de lembrar com precisão o título e a idéia central do artigo, mas seria pouco capaz de lembrar qual a impressão que o artigo causou nela. 


Obviamente todos temos os dois tipos de memória, mas a idéia é que na maioria dos casos uma é predominante. E em alguns poucos casos, uma é quase inexistente. Eu, por exemplo, tenho uma memória absolutamente episódica, como minha mãe. A principal evidência disso é o fato de que eu não lembro o nome da segunda memória, pois gravei apenas aquela que explicava como funciona minha mente. Ou seja, assim como minha mãe, quando leio algo é mais provável que eu lembre da impressão que tive de um artigo do que das informações contidas dentro dele. Títulos? Nem pensar! Obviamente, isso dificulta um pouco minha vida acadêmica, já que toda vez que eu preciso citar alguém, eu preciso ler o negócio de novo pra ver se o(a) autor(a) estava falando aquilo mesmo (isso quando eu me lembro quem falou, pois tem dias em que nem isso eu lembro...). 

Apesar dos pesares, acho que a memória episódica tem também suas vantagens: acho que eu faço mais livre associação entre as idéias, e sou mais criativa por causa disso. Acho que por isso que eu trabalho mais com políticas públicas (i.e. busca de soluções criativas para problemas complicados) e sou uma topeira no que diz respeito à atividades rotineiras de advogados, tais como memorizar códigos e procedimentos...

Coincidentemente, nessa mesma semana, me deparei com a resposta Larry Summers (ex-presidente de Harvard e ex-conselheiro do Obama) ao livro mais recente da Amy Chua (professora da faculdade de direito da Universidade de Yale), no qual ela revela a dura disciplina que impõe sobre as filhas, exigindo nada menos que excelência acadêmica e em todos os outros aspectos da vida, sob pena de castigos severos. Não sei se o livro já foi traduzido para o português, mas a tradução seria algo como "O Grito de Guerra da Mãe Tigresa". Summers disse que acha que Chua está errada, acrescentando que talvez os próprios filhos dele se surpreendam com essa afirmação.  Segue minha tradução de um trecho da resposta dele:

"Em um mundo onde as coisas que exigem disciplina e austeridade podem ser feitas por computadores, será que queremos manter a ênfase -- típica da educação tradicional -- em disciplina, acuidade, desempenho impecável e regularidade? Criatividade pode ser um bem ainda mais valioso que educadores e pais deveriam enfatizar. Em Harvard, os melhores estudantes se tornam professores -- e os piores se tornam milionários que doam muito dinheiro para a escola.


Não está totalmente claro se nossa veneração pelo desempenho acadêmico tradicional é  totalmente adequada. Qual dos dois primeiro-anistas de Harvard foram os que mais transformaram o mundo nos últimos 25 anos? Há bons argumentos para nomear Bill Gates e Mark Zuckerberg, e nenhum dos dois chegou a se formar. Uma exigente mãe tigresa provavelmente não apoiaria a decisão de seu filho de abandonar a faculdade."

Acho que isso não vale somente para educadores, mas vale também pra vida em geral. Nesse sentido, o artigo da Veja -- apesar de não ser poético -- é consideravelmente bom, pois enfatiza exatamente o fato de que os quadros de Hopper são extremamente abertos a leituras distintas e frequentemente contraditórias. "Ele [Hopper] já foi considerado subjetivo e objetivo, realista e modernista, formalista solitário e individualista nostálgico".Tentar comparar Hopper com contemporâneos, predecessores e antecessores ajuda a entender o que ele poderia ter sido e não foi, mas não nos diz exatamente o que ele é. A técnica dele é bastante única e tem um impacto psicológico marcante no observador, em especial naqueles que tem memória episódica (como eu!). 

Apesar de ajudar a me entender e a entender minha mãe, o conceito de memória episódica pode se tornar um pouco confuso em alguns casos. O exemplo -- dado pela própria Veja - é do senhor que, durante uma das visitas guiadas à exposição, após citar Freud e identificar objetos fálicos na pintura, classificou Hopper como um homem sexualmente reprimido. Se o sujeito tem memória episódica, boa parte da interpretação é baseada no repertório pessoal dele. Por outro lado, se ele tem memória não episódica, ele pode estar simplesmente associando as informações que ele vê, com outros tipos de informações, não conectadas as ele. Enfim, não sei quem, de fato, é reprimido nessa história, Hopper ou o senhor que se aventurou a dar sua opinião... 



P.S. - J. fez a gentileza de mandar os nomes exatos de cada um dos tipos de memoria:

Psychologists distinguish two types of long-term memory. One, semantic memory, records things consciously learned without first-hand experience—history lessons at school, for example. The other, episodic memory, records memorable events from a person’s own life. http://www.economist.com/node/18584074 

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Desigualdade, democracia e desespero

Segue o trecho de um texto de Calligaris, publicado em 2001, que vem bastante a calhar:

"José Bonifácio afirmou que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática".
 

A desigualdade da qual se trata não é apenas de renda. Também, hoje, não é propriamente uma desigualdade civil ou política, pois, segundo a letra da lei, não há mais, entre nós, cidadãos de segunda classe.
 

O lugar de nosso maior mal-estar social parece estar no descompasso entre esse princípio formal e a realidade concreta. Acontece que os cidadãos das camadas mais pobres estão mudando a imagem que eles têm de si mesmos. X, por exemplo, sabe que ele não é nem servo nem escravo: ele tem direitos. Mas, ao mesmo tempo, ele é levado a tolerar uma punição e a mostrar gratidão, como um escravo. Por quê? Será que a lei não é clara? Precisa melhorá-la ou implementá-la melhor? Infelizmente, o problema, nessa altura, parece ser de solução mais difícil, pois ele é cultural ou mesmo francamente psicológico: reside na representação das classes "inferiores" no espírito de uma boa parte das elites. Coquetel complicado: os desfavorecidos começam a acreditar na igualdade dos direitos e a se ver como possíveis cidadãos. No entanto, muitos favorecidos seguem percebendo ao redor (e abaixo) de si apenas um exército de servos e escravos -para os quais imaginam e querem, por exemplo, que valha a regra: "Quebrou um prato? Leva açoite e fica sem comida!".

A violência que assola as últimas décadas não precisaria de outra causa. Bastaria esta contradição.
 



CONTARDO CALLIGARIS, "Valet Parking" e cidadania, Folha de SP, 26 de julho de 2001.

Há razão para se ter esperanças? Eu acho que não. Toda vez que converso com alguém da classe média, vejo implícito esse tipo de discurso. Se mudar a lei não adianta, o que vai adiantar?

PS - Obrigada, pai, pelo texto!
  

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Meu Brasil brasileiro

Acho que eu desisti oficialmente de tentar decidir se o Brasil é um caso perdido, ou se ainda há algum motivo para ter esperanças de recuperação. A declaração do Bolsonaro me faz pensar que é um caso perdido, mas a resposta (e revolta) da mídia e da população em geral me faz pensar que apesar dos pesares ainda há razões para se ter esperança de que um dia as coisas vão melhorar. Acrescento ainda que minha resposta favorita foi a da minha mãe, que classificou o sujeito como um "babaca sem rumo". Acho que o o título merecia ser divulgado e utilizado.

Daí sai o Bolsonaro e entra o Delfim Neto, que declarou em um programa de TV que

"Há uma ascensão social incrível. A empregada doméstica, infelizmente, não existe mais. Quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter."

Uma ONG que defende o direito das empregadas domésticas exigiu um pedido de desculpas.  Razão para se ter esperança? Acho que não. a maior parte da classe média brasileira acha que ONG serve só para defender quem viola a lei e os direitos humanos (ou seja, as ONGs servem só para defender quem ameaça os privilégios da classe média). Além disso, a classe média já entendeu que não pode ser racista (porque dá cadeia!), mas ainda não aceitou que não pode ser classicista (porque isso ainda não dá cadeia....). Portanto, não me empolguei com a notícia.

Mas daí sai uma nota, supostamente de uma Ministra, em repúdio à declaração de Delfim. Agora sim. Se a nota é de fato autêntica, há motivos para esperança. O problema é que a nota  não foi publicada em nenhum veículo oficial do governo ou em jornal de grande circulação. Portanto, pode ser apenas uma jogada de marketing das ONGs, o que nos traz de volta ao ponto anterior: o Brasil não tem solução. 

Transcrevo, de qualquer forma, a declaração. Vale a pena ler, mesmo por aqueles que vêem seus privilégios ameaçados pelas ONGs...

O ex-ministro e a senzala

Data: 11/04/2011
A declaração do economista e ex-ministro Delfim Netto neste domingo (4/4), no programa "Canal Livre", da TV Band, que comparou as empregadas domésticas a animais em extinção, evidencia o quanto estamos distante do conceito de igualdade, aqui compreendida em todos seus aspectos.

Delfim Netto personaliza o pensamento persistente de um Brasil colonial, que enxergava negras e negros como seres inferiores, feitos para servir a uma elite branca. Séculos nos distanciam daquele período, mas a fala do ex-ministro demonstra que essa cultura escravocrata permanece, lamentavelmente, até os dias atuais. Disse Delfim Netto: "a empregada doméstica, infelizmente, não existe mais. Quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter". Mais do que uma afirmação infeliz, a comparação demonstra o total desrespeito, a desvalorização e a invisibilidade, além do desconhecimento sobre a realidade da valorosa atividade das quase sete milhões de mulheres trabalhadoras domésticas.

No Brasil, o trabalho doméstico é a ocupação que agrega o maior numero de mulheres, 15,8% do total da ocupação feminina, de acordo com dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2008), do IBGE. E a maioria dessa categoria é formada por mulheres, sobretudo negras. Desse total, a despeito de todos os incentivos governamentais para formalização da atividade, 73,2% não têm carteira assinada e, por conseguinte, não contam com qualquer amparo trabalhista e previdenciário previstos para todas trabalhadoras e trabalhadores.

A informalidade acarreta uma série de violações de direitos, como carga horária bem acima do limite legal, excesso de horas trabalhadas sem remuneração extra, salários abaixo do mínimo estabelecido, entre outros. Segundo esse levantamento da PNAD 2008 - período em que o salário mínimo era de R$ 415,00 -, o rendimento médio mensal entre as trabalhadoras com carteira assinada era de R$ 523,50. Do total que ainda estão na informalidade, a média caia para R$ 303,00 (27,0% abaixo do teto salarial), sendo a condição das trabalhadoras domésticas negras era ainda pior: elas não percebiam mais de R$ 280,00, ou seja 67,4% do salário mínimo.

O conjunto dessas informações demonstra que, mesmo em uma ocupação tradicionalmente feminina e marcada pela precariedade, as mulheres, e em especial as negras, encontram-se em situação mais desfavorável do que os homens, refletindo a discriminação racial, a segmentação ocupacional e a desigualdade no mercado de trabalho.

O governo federal tem feito esforços para regularização da atividade, incentivando o empregador através de descontos no Imposto de Renda, entre outras ações. Temos como desafio eliminar a desigualdade vivida por mulheres trabalhadoras domésticas no mundo do trabalho. Isso significa não só abordar os aspectos legais, mas de reconhecer e enfrentar o pensamento escravocrata que ainda persiste em parte da sociedade.

É lamentável que ainda hoje alguém pronuncie em rede de TV, sem qualquer sombra de constrangimento, o preconceito e a discriminação. Para além da formalização da categoria, o país tem compromissos com a igualdade de gênero e raça, inclusive como signatário de tratados internacionais de direitos humanos.

As declarações do ex-ministro Delfim Netto expõem a face perversa do racismo, do preconceito e o pressuposto de que as pessoas são diferentes e que, portanto, são ou não merecedoras de direitos. Por essa visão, existem os animais e seus "donos". Identificar os discursos que perpetuam a cultura da desigualdade significa combater a violência dissimulada e a mais explícita, que impedem os avanços sociais, o reconhecimento da cidadania, do tratamento igualitário para todas e todos e, por decorrência, da democracia.

Iriny Lopes
Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM)
 

PS - thanks J. for sending the piece!

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Diários de uma diabética: capítulo final

Minha vida de diabética chegou ao fim. Aconteceu em um dia normal, não fazia nem muito calor nem muito frio. Fui de ônibus para a clínica, como faço de três em três meses, para checar o peso, o índice de açucar e pedir a benção da endrocrinologista. Seguindo o protocolo de normalidade do dia, minha endocrinologista entrou no consultório, perguntou como eu estava e sem nenhuma comoção me deu a notícia bombastíca:

- Você não tem diabetes. (voz calma e controlada)
- Como assim?!?!?! (voz pouco calma e pouco controlada)
- O resultado da curva glicêmica indica que você tem pré-diabetes, mas o indíce para diabetes é acima de 11. O seu é 8.9. (voz ainda mais calma e ainda mais controlada)


Ok. Sou um milagre da natureza, pensei. Nunca ouvi falar de alguém que havia se curado da diabetes. Imaginei minha cara estampada nos jornais no dia seguinte, primeira página. Entrevista coletiva para a imprensa. Eu virando objeto de estudos para os pesquisadores do departamento de medicina e objeto de assédio da mídia. Quem sabe eu podia até virar garota propaganda da Biobest, o iogurte que eu como todos os dias, de manhã, de tarde e de noite (e de madrugada, as vezes...). Vi meu rosto estampado em camisetas, como o do Che Guevara, liderando a revolução em prol de um mundo mais saudável (afinal, esse negócio de socialismo saiu de moda e as crianças de hoje precisam de algum líder revolucionário com quem elas se identifiquem). Com um sorriso pouco discreto no rosto, perguntei:


- Quer dizer que eu estou curada? 

Estava esperando ver na resposta as portas da esperança e todo o meu futuro de fama e sucesso se abrindo diante de mim.

- Eu sinceramente acho que você nunca teve diabetes. Seus resultados para hemoglobina glicosilada sempre estiveram bastante sob controle. 




Meus pensamentos megalomaníacos se espatifaram no chão e agora eu estava puta (desculpem o vocabulário, mas essa é a palavra que melhor capta meu sentimento naquele momento). Comecei a pensar em todo o trabalho que tive com dieta e exercício. Pensei em todas as pessoas que tiveram que inventar cardápios mirabolantes porque eu não podia comer arroz, batata, farinha, açucar, e mais uma série de outras coisas que constituem basicamente 97% dos alimentos que pessoas normais e civilizadas consomem. Pensei em todos os doces que eu tinha deixado de comer por causa do diagnóstico equivocado. Lembrei de todos os copos de vinho intragáveis que fui obrigada a tomar em bares onde o que se deve pedir é cerveja. Pensei em todas a privação que eu tinha passado em vão, porque causa da incompetência alheia. E pensei em todo o sangue que eu perdi, furando meus dedos quatro vezes por dia para medir meu açúcar. Comecei a pensar que fui mais uma das milhares vítimas diárias de erro médico do mundo. Meu caso estava beirando um caso de violação de direitos humanos. E estava pronta para processar quem quer que tivesse sido o culpado disso tudo! 


- Como assim? Como que eu nunca tive diabetes? Eu estou tomando remédios e sendo tratada nessa clínica há quase dois anos! Como você me receita remédios, me dá um medidor de açúcar, manda eu mudar todo meu estilo de vida sem ter certeza se eu tinha diabetes?
- Eu nunca vi o diagnóstico. Você chegou aqui por recomendação da sua médica de família, que foi quem indicou pra mim que você tinha diabetes. Eu pedi outro exame da curva glicêmica porque seus resultados estavam muito normais.


Vi toda minha esperança com o sistema de saúde público canadense se esvair diante de mim. Quer dizer que a primeira fez uma burrada e a segunda segue no vácuo, sem checar? Aposto que ela ganhou um monte de dinheiro nessa história! Comecei a elaborar minha teoria da conspiração: aposto que isso é um caso de corrupção. A médica de família faz um falso diagnóstico, manda pra especialista, a especialista recebe o pagamento do estado, coloca uma parte no bolso e manda uma parte para a médica de família. Pronto, lá estava eu de volta aos jornais, dessa vez cumprindo meu dever cívico. Não ia sair na primeira página nem ter direito a camiseta, mas minha megalomania consegue se adaptar facilmente a novas circunstâncias....

Marchei até o consultório da minha médica de família. Estava pronta para desvendar todo aquele esquema de corrupção que estava desviando meus preciosos impostos do sistema de saúde pública canadense. Mas minha entrada triunfal no consultório da minha médica não foi seguida de uma descoberta reveladora. Ao contrário, foi apenas uma confirmação de que o Canadá tem de fato um dos índices mais baixos de corrupção do mundo. Minha médica de família me mostrou o diagnóstico inicial, me indicou que apesar da minha curva de glicose não estar acima de 11, estava acima de 10, e a hemoglobina glicosilada estava certamente no patamar de diabetes.


Ok. Não havia erro médico ou esquema de corrupção, aparentemente. Se tivesse tal esquema, elas não teriam razão para revelar a farsa, pensei. Voltei então à hipótese inicial: sou um milagre da natureza. Minha médica não sem empolgou com a minha tese. Segundo ela, eu estava em um período muito estressante (divórcio, finalização da tese de doutorado), combinado com péssimos hábitos alimentares, falta de exercício físico e pré-disposição a diabetes. Exceto pela predisposição a diabetes, tudo mudou. Portanto, segundo ela, meu corpo voltou ao estado em que estava antes. Ou seja, eu não era um milagre da natureza. Muito pelo contrário.


Moral da história? A primeira moral da história é que talvez eu precise de tratamento psiquiátrico para minha megalomania. 

A segunda moral da história é que há males que vêm pro bem. No dia em que recebi o diagnóstico, sai do consultório sem rumo, sentei no banco de uma praça e pensei profundamente sobre a minha vida. Cheguei a conclusão que eu estava me matando de trabalhar. Ficava acordada até altas horas, pulava refeições, ficava sentada na frente do computador de manhã, de tarde e de noite, e comia em locais de qualidade absolutamente questionável (tipo o carro de comida chinesa na frente da biblioteca ou o carrinho de cachorro quente na frente da faculdade). E depois do diagnóstico eu decidi que minha saúde era prioridade. Não interessa quão atrasado esteja o artigo, hoje eu paro para comer, correr e dormir. As pessoas podem esperar. E se não quiserem esperar, tudo bem também. Não vou morrer se meu artigo não for incorporado nos anais de algum simpósio ou virar um capítulo de um livro. E os alunos podem aguentar uma aula mal-preparada de vez em quando. Como resultado dessa epifania, acho que minha qualidade de vida aumentou muito depois do diagnóstico (e agora vai aumentar ainda mais com uns docinhos de quando em quando...).

A terceira moral de história é que a gente precisa de algumas aventuras dessas pra ter posts para o blog e histórias pra contar para meus sobrinhos (os atuais e os ainda por vir!). Afinal, sem isso, quem iria topar uma cervejinha comigo?

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Só porque minha irmã me fez acreditar que eu tenho uma legião de fãs aguardando ansiosamente por posts (vide comentário no post anterior),

só porque hoje fez 20 graus em Toronto e o ar voltou a ter cheiro de ar ao invés de cheiro de nada (e eu estou ignorando o fato de que vai nevar de novo no sábado),

só porque as aulas acabaram e minha agenda está mais flexível (apesar de eu não estar de férias, como pensa a maioria das pessoas),

só porque a vida é curta e esse negócio de ficar trabalhando o tempo todo é a maior furada (combinado com o fato de que eu sou uma geek, que se diverte escrevendo e lendo....),

só porque a Dilma mandou aumentar a velocidade da banda larga mas manteve o preço, aumentando a inclusão digital e a quantidade de leitores potenciais do meu blog (e falou que as empresas que vierem pedir dinheiro ao governo vão dar com a cara na porta), 

diga ao povo que estou de volta!