Minha vida de diabética chegou ao fim. Aconteceu em um dia normal, não fazia nem muito calor nem muito frio. Fui de ônibus para a clínica, como faço de três em três meses, para checar o peso, o índice de açucar e pedir a benção da endrocrinologista. Seguindo o protocolo de normalidade do dia, minha endocrinologista entrou no consultório, perguntou como eu estava e sem nenhuma comoção me deu a notícia bombastíca:
- Você não tem diabetes. (voz calma e controlada)
- Como assim?!?!?! (voz pouco calma e pouco controlada)
- O resultado da curva glicêmica indica que você tem pré-diabetes, mas o indíce para diabetes é acima de 11. O seu é 8.9. (voz ainda mais calma e ainda mais controlada)
Ok. Sou um milagre da natureza, pensei. Nunca ouvi falar de alguém que havia se curado da diabetes. Imaginei minha cara estampada nos jornais no dia seguinte, primeira página. Entrevista coletiva para a imprensa. Eu virando objeto de estudos para os pesquisadores do departamento de medicina e objeto de assédio da mídia. Quem sabe eu podia até virar garota propaganda da Biobest, o iogurte que eu como todos os dias, de manhã, de tarde e de noite (e de madrugada, as vezes...). Vi meu rosto estampado em camisetas, como o do Che Guevara, liderando a revolução em prol de um mundo mais saudável (afinal, esse negócio de socialismo saiu de moda e as crianças de hoje precisam de algum líder revolucionário com quem elas se identifiquem). Com um sorriso pouco discreto no rosto, perguntei:
- Quer dizer que eu estou curada?
Estava esperando ver na resposta as portas da esperança e todo o meu futuro de fama e sucesso se abrindo diante de mim.
- Eu sinceramente acho que você nunca teve diabetes. Seus resultados para hemoglobina glicosilada sempre estiveram bastante sob controle.
Meus pensamentos megalomaníacos se espatifaram no chão e agora eu estava puta (desculpem o vocabulário, mas essa é a palavra que melhor capta meu sentimento naquele momento). Comecei a pensar em todo o trabalho que tive com dieta e exercício. Pensei em todas as pessoas que tiveram que inventar cardápios mirabolantes porque eu não podia comer arroz, batata, farinha, açucar, e mais uma série de outras coisas que constituem basicamente 97% dos alimentos que pessoas normais e civilizadas consomem. Pensei em todos os doces que eu tinha deixado de comer por causa do diagnóstico equivocado. Lembrei de todos os copos de vinho intragáveis que fui obrigada a tomar em bares onde o que se deve pedir é cerveja. Pensei em todas a privação que eu tinha passado em vão, porque causa da incompetência alheia. E pensei em todo o sangue que eu perdi, furando meus dedos quatro vezes por dia para medir meu açúcar. Comecei a pensar que fui mais uma das milhares vítimas diárias de erro médico do mundo. Meu caso estava beirando um caso de violação de direitos humanos. E estava pronta para processar quem quer que tivesse sido o culpado disso tudo!
- Como assim? Como que eu nunca tive diabetes? Eu estou tomando remédios e sendo tratada nessa clínica há quase dois anos! Como você me receita remédios, me dá um medidor de açúcar, manda eu mudar todo meu estilo de vida sem ter certeza se eu tinha diabetes?
- Eu nunca vi o diagnóstico. Você chegou aqui por recomendação da sua médica de família, que foi quem indicou pra mim que você tinha diabetes. Eu pedi outro exame da curva glicêmica porque seus resultados estavam muito normais.
Vi toda minha esperança com o sistema de saúde público canadense se esvair diante de mim. Quer dizer que a primeira fez uma burrada e a segunda segue no vácuo, sem checar? Aposto que ela ganhou um monte de dinheiro nessa história! Comecei a elaborar minha teoria da conspiração: aposto que isso é um caso de corrupção. A médica de família faz um falso diagnóstico, manda pra especialista, a especialista recebe o pagamento do estado, coloca uma parte no bolso e manda uma parte para a médica de família. Pronto, lá estava eu de volta aos jornais, dessa vez cumprindo meu dever cívico. Não ia sair na primeira página nem ter direito a camiseta, mas minha megalomania consegue se adaptar facilmente a novas circunstâncias....
Marchei até o consultório da minha médica de família. Estava pronta para desvendar todo aquele esquema de corrupção que estava desviando meus preciosos impostos do sistema de saúde pública canadense. Mas minha entrada triunfal no consultório da minha médica não foi seguida de uma descoberta reveladora. Ao contrário, foi apenas uma confirmação de que o Canadá tem de fato um dos índices mais baixos de corrupção do mundo. Minha médica de família me mostrou o diagnóstico inicial, me indicou que apesar da minha curva de glicose não estar acima de 11, estava acima de 10, e a hemoglobina glicosilada estava certamente no patamar de diabetes.
Ok. Não havia erro médico ou esquema de corrupção, aparentemente. Se tivesse tal esquema, elas não teriam razão para revelar a farsa, pensei. Voltei então à hipótese inicial: sou um milagre da natureza. Minha médica não sem empolgou com a minha tese. Segundo ela, eu estava em um período muito estressante (divórcio, finalização da tese de doutorado), combinado com péssimos hábitos alimentares, falta de exercício físico e pré-disposição a diabetes. Exceto pela predisposição a diabetes, tudo mudou. Portanto, segundo ela, meu corpo voltou ao estado em que estava antes. Ou seja, eu não era um milagre da natureza. Muito pelo contrário.
Moral da história? A primeira moral da história é que talvez eu precise de tratamento psiquiátrico para minha megalomania.
A segunda moral da história é que há males que vêm pro bem. No dia em que recebi o diagnóstico, sai do consultório sem rumo, sentei no banco de uma praça e pensei profundamente sobre a minha vida. Cheguei a conclusão que eu estava me matando de trabalhar. Ficava acordada até altas horas, pulava refeições, ficava sentada na frente do computador de manhã, de tarde e de noite, e comia em locais de qualidade absolutamente questionável (tipo o carro de comida chinesa na frente da biblioteca ou o carrinho de cachorro quente na frente da faculdade). E depois do diagnóstico eu decidi que minha saúde era prioridade. Não interessa quão atrasado esteja o artigo, hoje eu paro para comer, correr e dormir. As pessoas podem esperar. E se não quiserem esperar, tudo bem também. Não vou morrer se meu artigo não for incorporado nos anais de algum simpósio ou virar um capítulo de um livro. E os alunos podem aguentar uma aula mal-preparada de vez em quando. Como resultado dessa epifania, acho que minha qualidade de vida aumentou muito depois do diagnóstico (e agora vai aumentar ainda mais com uns docinhos de quando em quando...).
A terceira moral de história é que a gente precisa de algumas aventuras dessas pra ter posts para o blog e histórias pra contar para meus sobrinhos (os atuais e os ainda por vir!). Afinal, sem isso, quem iria topar uma cervejinha comigo?
- Você não tem diabetes. (voz calma e controlada)
- Como assim?!?!?! (voz pouco calma e pouco controlada)
- O resultado da curva glicêmica indica que você tem pré-diabetes, mas o indíce para diabetes é acima de 11. O seu é 8.9. (voz ainda mais calma e ainda mais controlada)
Ok. Sou um milagre da natureza, pensei. Nunca ouvi falar de alguém que havia se curado da diabetes. Imaginei minha cara estampada nos jornais no dia seguinte, primeira página. Entrevista coletiva para a imprensa. Eu virando objeto de estudos para os pesquisadores do departamento de medicina e objeto de assédio da mídia. Quem sabe eu podia até virar garota propaganda da Biobest, o iogurte que eu como todos os dias, de manhã, de tarde e de noite (e de madrugada, as vezes...). Vi meu rosto estampado em camisetas, como o do Che Guevara, liderando a revolução em prol de um mundo mais saudável (afinal, esse negócio de socialismo saiu de moda e as crianças de hoje precisam de algum líder revolucionário com quem elas se identifiquem). Com um sorriso pouco discreto no rosto, perguntei:
- Quer dizer que eu estou curada?
Estava esperando ver na resposta as portas da esperança e todo o meu futuro de fama e sucesso se abrindo diante de mim.
- Eu sinceramente acho que você nunca teve diabetes. Seus resultados para hemoglobina glicosilada sempre estiveram bastante sob controle.
Meus pensamentos megalomaníacos se espatifaram no chão e agora eu estava puta (desculpem o vocabulário, mas essa é a palavra que melhor capta meu sentimento naquele momento). Comecei a pensar em todo o trabalho que tive com dieta e exercício. Pensei em todas as pessoas que tiveram que inventar cardápios mirabolantes porque eu não podia comer arroz, batata, farinha, açucar, e mais uma série de outras coisas que constituem basicamente 97% dos alimentos que pessoas normais e civilizadas consomem. Pensei em todos os doces que eu tinha deixado de comer por causa do diagnóstico equivocado. Lembrei de todos os copos de vinho intragáveis que fui obrigada a tomar em bares onde o que se deve pedir é cerveja. Pensei em todas a privação que eu tinha passado em vão, porque causa da incompetência alheia. E pensei em todo o sangue que eu perdi, furando meus dedos quatro vezes por dia para medir meu açúcar. Comecei a pensar que fui mais uma das milhares vítimas diárias de erro médico do mundo. Meu caso estava beirando um caso de violação de direitos humanos. E estava pronta para processar quem quer que tivesse sido o culpado disso tudo!
- Como assim? Como que eu nunca tive diabetes? Eu estou tomando remédios e sendo tratada nessa clínica há quase dois anos! Como você me receita remédios, me dá um medidor de açúcar, manda eu mudar todo meu estilo de vida sem ter certeza se eu tinha diabetes?
- Eu nunca vi o diagnóstico. Você chegou aqui por recomendação da sua médica de família, que foi quem indicou pra mim que você tinha diabetes. Eu pedi outro exame da curva glicêmica porque seus resultados estavam muito normais.
Vi toda minha esperança com o sistema de saúde público canadense se esvair diante de mim. Quer dizer que a primeira fez uma burrada e a segunda segue no vácuo, sem checar? Aposto que ela ganhou um monte de dinheiro nessa história! Comecei a elaborar minha teoria da conspiração: aposto que isso é um caso de corrupção. A médica de família faz um falso diagnóstico, manda pra especialista, a especialista recebe o pagamento do estado, coloca uma parte no bolso e manda uma parte para a médica de família. Pronto, lá estava eu de volta aos jornais, dessa vez cumprindo meu dever cívico. Não ia sair na primeira página nem ter direito a camiseta, mas minha megalomania consegue se adaptar facilmente a novas circunstâncias....
Marchei até o consultório da minha médica de família. Estava pronta para desvendar todo aquele esquema de corrupção que estava desviando meus preciosos impostos do sistema de saúde pública canadense. Mas minha entrada triunfal no consultório da minha médica não foi seguida de uma descoberta reveladora. Ao contrário, foi apenas uma confirmação de que o Canadá tem de fato um dos índices mais baixos de corrupção do mundo. Minha médica de família me mostrou o diagnóstico inicial, me indicou que apesar da minha curva de glicose não estar acima de 11, estava acima de 10, e a hemoglobina glicosilada estava certamente no patamar de diabetes.
Ok. Não havia erro médico ou esquema de corrupção, aparentemente. Se tivesse tal esquema, elas não teriam razão para revelar a farsa, pensei. Voltei então à hipótese inicial: sou um milagre da natureza. Minha médica não sem empolgou com a minha tese. Segundo ela, eu estava em um período muito estressante (divórcio, finalização da tese de doutorado), combinado com péssimos hábitos alimentares, falta de exercício físico e pré-disposição a diabetes. Exceto pela predisposição a diabetes, tudo mudou. Portanto, segundo ela, meu corpo voltou ao estado em que estava antes. Ou seja, eu não era um milagre da natureza. Muito pelo contrário.
Moral da história? A primeira moral da história é que talvez eu precise de tratamento psiquiátrico para minha megalomania.
A segunda moral da história é que há males que vêm pro bem. No dia em que recebi o diagnóstico, sai do consultório sem rumo, sentei no banco de uma praça e pensei profundamente sobre a minha vida. Cheguei a conclusão que eu estava me matando de trabalhar. Ficava acordada até altas horas, pulava refeições, ficava sentada na frente do computador de manhã, de tarde e de noite, e comia em locais de qualidade absolutamente questionável (tipo o carro de comida chinesa na frente da biblioteca ou o carrinho de cachorro quente na frente da faculdade). E depois do diagnóstico eu decidi que minha saúde era prioridade. Não interessa quão atrasado esteja o artigo, hoje eu paro para comer, correr e dormir. As pessoas podem esperar. E se não quiserem esperar, tudo bem também. Não vou morrer se meu artigo não for incorporado nos anais de algum simpósio ou virar um capítulo de um livro. E os alunos podem aguentar uma aula mal-preparada de vez em quando. Como resultado dessa epifania, acho que minha qualidade de vida aumentou muito depois do diagnóstico (e agora vai aumentar ainda mais com uns docinhos de quando em quando...).
A terceira moral de história é que a gente precisa de algumas aventuras dessas pra ter posts para o blog e histórias pra contar para meus sobrinhos (os atuais e os ainda por vir!). Afinal, sem isso, quem iria topar uma cervejinha comigo?
3 comentários:
Com açucar , com afeto,vá saborear seus doces prediletos.....
Beijos
Mãe
E aprendeu a cozinhar! O que não faz a necessidade !!!
Beijos
Mãe
Mariana, boa notícia!! Adorei a parte de revisar a vida! Quando vier ao Brasil, uma cervejinha geladíssima a aguarda! Ah, e muitas idas ao Paulistânia (vc ainda não conhece) que tem um pastel de camarão imperdível!
Bjs e uma páscoa cheia de chocolates bem gostosos! Sua madrinha, Maria José
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