Durante um dos jantares da conferência em Israel estava conversando com um colega holandês sobre diferenças culturais. Comentávamos o fato de que o jantar tinha sido marcado para 7:30pm. Esse horário era muito tarde pra ele, que costuma comer as 5:30pm, mas era muito cedo para os latino-americanos, que começam a pensar em comida a partir das 8:30pm. Brinquei com ele que eles comiam cedo como os americanos. Ele imediatamente respondeu que essa era provavelmente a única coisa que eles tinham em comum com "aquele país" (acentue-se o forte tom de desprezo na voz do holandês, que eu não consigo reproduzir aqui). E acrescentou: não sei como as pessoas conseguem viver nos Estados Unidos.
Eu imediatamente argumentei que concordava com o desprezo que ele tinha pelos Estados Unidos, mas achava que o Canadá era muito diferente. Estava pronta pra comprar uma briga, já que a maioria das pessoas pensa que a parte francesa do Canadá, Quebec, é bastante européia, mas o resto do Canadá é igual aos Estados Unidos. Para minha surpresa, todavia, ele imediatamente concordou e passamos uma boa meia hora falando como os Canadenses apreciam boa comida, são mais educados, e em geral muito mais preocupados com qualidade de vida do que com sucesso profissional a todo custo.
A única coisa de positiva que esses dois países têm em comum é a cultura não-sexista, afinal sexismo e machismo impera nos países latinos (tanto europeus, quanto latino-americanos). E, nesse caso, uma imagem vale mais do que mil palavras:
Tradução da legenda que acompanha a foto, que anda circulando na internet: O ministro Canadense (à esquerda) completamente absorvido em si mesmo. O Obama com o impecável profissionalismo exigido nos círculos de poder nos Estados Unidos. O Sarkozi e o Berlusconi, em contraste, não hesitaram em dar uma olhada -- pouco discreta-- para a bunda da moça.
Ou seja, nos Estados Unidos e Canadá, os homens têm (ou são forçados a ter) compostura. E muitos aspectos dessa compostura são impostos por lei. A lei canadense interpreta estupro muito mais amplamente que outras legislações, como a brasileira. Um marido, por exemplo, pode ser condenado por estupro caso tenha forçado a esposa a fazer sexo contra sua vontade. E isso inclui situações em que a mulher começou a fazer sexo e quis parar no meio. A Supreme Corte do Canadá explicitamente disse que o consentimento tem que ser comunicado antes e durante o ato sexual, e o argumento de que ele foi dado antes não permite que o sujeito se sinta no direito de continuar o ato contra a vontade da mulher. Infelizmente no Brasil ainda temos que lidar com sentenças em que os juízes acreditam que o estuprador -- um perfeito desconhecido -- não deve ser condenado porque a mulher estava usando roupas provocantes na rua. Alguém pode me explicar como usar roupas provocantes dá a um estranho o direito de fazer sexo com você sem seu consentimento?
Mas exceto pelas leis que forçam os homens a ter um mínimo de compostura, há diferenças significativas entre os Estados Unidos e o Canadá.
Primeiro, a regulação sobre produtos industralizados é muito mais rígida no Canadá. Faça o seguinte teste: compre um KitKat (um biscoito de waffle coberto com chocolate) em cada um dos países e experimente uma mordida sem ver qual é qual. Você vai ver que o Canadense é infinitamente melhor. O governo aqui limita a quantidade de açucar e gordura que os fabricantes podem por no produto, o que acaba gerando um produto com mais sabor e mais saudável. Assim, a mesma empresa, com o mesmo produto, mesma embalagem, é forçada a oferecer dois produtos distintos no Canadá e nos Estados Unidos. Em contraste, os Estados Unidos, na tentativa de tornar as merendas escolares mais saudáveis acabou de passar uma regulação dizendo que pizza qualifica como legume, por causa do molho de tomate. Como diz o Renato Russo, "que país é esse?".
Segunda diferença entre Canadá e Estados Unidos: direito societário. Assisti duas palestras essa semana que discutiam um caso chamado BCE, decidido pela Suprema Corte canadense (veja um resumo em espanhol aqui). A legislação americana é famosa por considerar que os diretores de empresas tem uma obrigação de proteger os interesses dos acionistas, o que gera uma obrigação de aumentar os lucros da empresa. A corte canadense, em contraste, disse que os diretores tinha uma obrigação com a empresa em si (the corporation), não com os acionistas (the shareholders). Portanto, ao decidirem como agir, os diretores de empresas canadenses precisam levar em conta os interesses de todos afetados negativamente pelos atos da empresa (stakeholders), não apenas dos acionistas. Muitos estão se perguntando se isso se estende, por exemplo, a uma obrigação com comunidades negativamente afetadas por empresas de exploração de recursos naturais. Parece que esse é ainda um tópico controverso. Mas com certeza a decisão da corte em BCE ilustra que esse é um país onde a ganância -- assim como os impulsos sexuais -- apenas ter lugar se não estão violando direitos e interesses de outras pessoas.
Por fim, os canadenses se desculpam por tudo, toda hora. Isso é uma coisa tipicamente canadense. Nos Estados Unidos, a grosseria e falta de educação impera. Isso é especialmente verdade em Nova Iorque. Meu amigo A., muito adequadamente, apelidou a cidade de "Planeta dos Macacos". Ainda acho o título muito mais apropriado que Big Apple. Mas não a falta de educação não se concentra em Manhattan. Lembro da minha prima M. me visitando em New Haven. Fomos fazer compras e a caixa do supermercado começou a gritar conosco -- anda! anda! -- porque estávamos demorando muito (do ponto de vista dela) para ensacar as compras. Provavelmente aqui no Canadá a caixa ia se desculpas por não estar ajudando....
Para dar uma idéia dos extremos aos quais os canadenses podem chegar, basta notar que eles se desculpam pelos ônibus que não estão em circulação:
Logo depois do jantar e da longa conversa com o meu colega holandês, eu descobri que esse aspecto da cultura canadense é uma diferença cultural gritante. Pedi a um colega israelense para me acompanhar até um mercado aberto, pois queria comprar uma banana. Queria apenas uma única banana, pra comer na manhã seguinte. O feirante começou a reclamar que eles vendem por caixo, não por banana, etc. Imediatamente, como boa aspirante a cidadania canadense, pedi desculpas. E, para minha surpresa, tomei uma bronca. Meu colega israelense me disse para nunca me desculpar, em hipótese alguma. No meio da bronca, ele explicou, enfaticamente, que pedir desculpa era sinal de fraqueza. Eu resolvi não discutir o assunto, mas não pude deixar de ficar conjecturando se os conflitos naquela parte do Oriente Médio seriam menos intensos se a cultura deles fosse um pouco mais aberta a ocasionais pedidos de desculpas. Afinal, não é a toa que o Canadá tem uma grande tradição com missões de paz no cenário internacional.
Fica aqui, portanto, minha declaração de amor a esse país, com um pedido de desculpas para todos que potencialmente podem ficar ressentidos.
Um comentário:
por isso a solução é o banco de esperma. mesmo no Brasil estão bombando, deu matéria na Veja dessa semana. mas todas querem espermas altos de olhos azuis. certamente ajudará a elevar a estatura mediana de nossa população - o risco de consanguinidade aumentará, contudo. sexo é mesmo próximo demais da violência para padrões civilizados. espero com alegria a minha velhice, para me desvincilhar desse embaraço. e não sou o único, acredite. parece-me que os japoneses desculpam-se bastante também, assumindo com naturalidade a modéstia e submissão como postura inicial nas relações - mas é óbvio que há muito de ritualização nesse comportamento, exigindo implicitamente da contraparte uma atitude equivalente. quando o outro não corresponde, sai de baixo. impossível não lembrar do Goffman, canadense. beijo!
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