Sempre que eu via meu avô escrevendo farmácia com ph (pharmacia) eu pensava: porque ele não escreve com efe? Ele vê na entrada da farmácia que a grafia da palavra mudou. Ele sabe que mudou. Por que ele insiste em usar a grafia antiga? Agora eu estou tendo o mesmo problema. Não consigo escrever idéia sem acento, apesar de saber que a grafia da palavra mudou. Depois de ser treinada a sua vida inteira em uma certa grafia, a grafia nova simplesmente parece errada. Eu sei que a grafia mudou. Eu escrevo a palavra sem acento primeiro. Mas daí minha mão hesita. Fico ali encarando aquela coisa estranha, sabendo que, no fundo no fundo, tem algo de errado com ela e, de repente, bum. Coloco o acento.
Isso me levou a conclusão de que estou envelhecendo. Sim, "os anos passam e a gente fica mais velho". E a melhor forma de medir isso é ver quanto daqueles comportamentos estranhos, que antes você observava em "gente velha", você anda adotando ultimamente.
O clímax dessa minha reflexão surgiu no momento em que me deparei com o novo fenômeno da música brasileira, Michel Teló. A única coisa que consegui pensar é: essa juventude está perdida. Onde esse mundo vai parar? No meu tempo, as músicas eram mais sofisticadas e respeitosas!
Eu não só pensei isso, como elaborei uma análise para sustentar minha conclusão. Comecemos pelo fato de que não vale comparar Michel Teló com Chico Buarque e Caetano. Isso seria comparar maçãs com laranjas, como eles dizem aqui. Ou seja, é uma comparação falsa. É como você pedir pra tartaruga apostar corrida com o coelho. Apenas podemos comparar os lerdinhos com lerdinhos. Portanto, precisamos comparar Michel Teló com música para as massas.
Então vamos comparar Michel Teló com o que fazia sucesso antes dele. Por exemplo, em 2007 a Ivete Sangalo cantava seu hit, Me Abraça, Me Beija. Para os que não conhecem a obra-prima, ouçam a música abaixo (mas notem que o vídeo não é o oficial):
Bastar ouvir isso para ver como (i) a Ivete está falando de um relacionamento, não de algo passageiro na balada no sábado a noite; (ii) o Teló está visivelmente focado na beleza física da menina que passa, enquanto a Ivete fala de um nível muito mais profundo de conexão emocional: o cheiro da pessoa amada; (iii) e, convenhamos, "aí se eu te pego" é infinitamente mais vulgar do que pedir "me abraça, me beija". Afinal, o primeiro não implica consentimento da outra parte, o que pode não ser algo relevante em uma balada, mas não pode faltar em um relacionamento.
E, nas minhas nostálgicas elocubrações, não pude deixar de ir mais longe. Olha só a letra da música com a qual eu pulava carnaval em Brasília, com a Banda Eva (frequentadora assídua das casas de show da cidade!).
Nem preciso analisar a profundidade disso, certo? Referências bíblicas, que provavelmente o Michel Teló nem sequer entenderia. Palavras como a "odisséia terrestre", que provavelmente são muito complexas para o público já em 2007, que dirá hoje em dia. E -- mais importante -- nada de beijo e abraço. Isso é muito mundano. Para o seu amor de verdade, você pede: "me dá força pra viver".
Ou seja, o mundo anda claramente em declínio. Sempre que eu ouvia "gente velha" vir com esse papo de "no meu tempo...", eu pensava: por que essas pessoas não abrem suas mentes para o novo, abraçam as mudanças, e celebram com os jovens a vida? Agora eu sei. É porque quando você olha pra tudo isso, você sabe que tem alguma coisa errada. A música do Michel Teló é como a palavra idéia sem acento. Tá errado.
Acho que vou pesquisar preços das mensalidades de casas de repouso aqui em Toronto, ao invés de ficar assistindo o declínio do mundo via YouTube....
P.S. - esse post é dedicado a J. que deu toda a inspiração para essa elocubração com seu vasto conhecimento musical. Todos os erros, imprecisões e omissões do post são de minha inteira responsabilidade.
Um comentário:
Alguém tentando explicar o fenômeno Michel Teló disse que de tempos em tempos surgem músicas que inexplicavelmente se tornam conhecidas e cantadas no mundo todo. Assim foi com Pata Pata da Miriam Makeba...e Macarena ( quem nunca dançou ?!). A sorte talvez possa explicar isso. Acredito que nem o autor da letra ,nem o próprio Michel tinham dimensão do sucesso quando lançaram a música.
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