Meu co-autor não se conforma que nosso livro não virou best-seller. A editora nos garante que o livro encontra-se no top da lista de vendas deles, mas ainda assim ele protesta. O protesto, no fundo, no fundo, é inveja. Dois professores do MIT lançaram recentemente um livro na mesma linha do nosso, chamado Why Nations Fail e estão bombando no New York Times e nas livrarias de aeroporto (vale mencionar que ver nosso livro em uma livraria de aeroporto é o sonho de consumo do meu co-autor). Meu co-autor vê o sucesso deles e se morde de raiva.
A indignação dele é tanta, que ele já passou horas especulando sobre as possíveis razões do nosso "fracasso". Atualmente, sua hipótese preferida é que não escolhemos o título certo. What Makes Poor Countries Poor - Institutional Determinants of Development é muito longo e muito chato, diz ele. A arremata logo em seguida, com um tom amargurado: Why Nations Fail is catchy (não sei como traduzir isso...).
Ao contrário do meu co-autor, eu não acho que nosso livro foi um fracasso e não tenho nenhuma frustação com o fato de que nossas fotos não estão nas estandes das livrarias dos aeroportos ou de qualquer lugar. Eu tenho consciência que escrevemos um livro acadêmico, publicado por uma editora acadêmica, e vendido primordialmente para acadêmicos. E -- para quem não sabe -- esse é um grupo relativamente pequeno de pessoas. Na verdade, me surpreendi quando a editora falou que éramos um best-seller acadêmico, pois nem isso eu esperava.
A diferença entre um livro acadêmico e um dirigido ao público em geral -- como eu tentei explicar para meu co-autor -- é que esse último é escrito em linguagem acessível e de maneira bastante didática. Por exemplo, nosso concorrente é um livro cheio de histórias. Para mostrar os diferentes caminhos que a Coréia do Norte e do Sul tomaram, eles contam a história de dois gêmeos separados no momento do nascimento. Um foi morar na Coréia do Norte e o outro na do Sul. O reencontro, 50 anos depois, não apenas ilustra as diferenças no nível de desenvolvimento dos dois países (as diferenças de riqueza, educação e saúde dos dois gêmeos é abissal), mas serve para que os autores mostrem que não se trata de geografia (os dois países são quase idênticos em recursos naturais e acesso ao mar) nem cultura (que era a mesma para os gêmeos e o resto da população).
Em contraste, nosso livro apresenta o mesmo argumento com regressões, estatísticas, e um bando de outros números que fazem muito pouco sentido para a maioria das pessoas. Qualquer um que vê a quantidade de números no primeiro parágrafo de qualquer um dos capítulos do livro desiste da leitura ali mesmo (exceto nossos alunos, que são obrigados a penar com o texto...). Enfim, nosso livro não vai ser best-seller nunca. E o dia em que um livro desse for best-seller, pode cancelar o prêmio Nobel de literatura, pois o mundo anda de mal a pior....
Escrevo tudo isso porque ontem eu tive uma evidência muito clara de como minha hipótese está certa. Terminei de ler o livro de Drauzio Varella, Estação Carandiru, sobre a Casa de Detenção. O livro tem uma descrição interessantíssima da vida dentro do presídio, contada através de histórias da vida dos detentos (em contraste com o livro mais atual, que foca nos carcereiros). O capítulo final, todavia, foca no massacre do Carandiru, contado a partir da voz dos presos. E é aqui que o número 111 presos mortos fica muito mais humano e mais palpável.
Sempre compartilhei da opinião de que a morte destes presos no que ficou conhecido como o massacre do Carandiru é uma violação de qualquer princípio mais básico e primitivo de legalidade. Qualquer país que se auto-entitule um Estado de Direito não pode se coadunar com, e muito menos autorizar, uma atitude como esta da parte da polícia. Como disse Madison, em um dos artigos dos Federalistas:
"If men were angels, no government would be necessary.
If angels
were to govern men, neither external nor internal controls on
government would
be necessary. In framing a government which is to be administered by
men over
men, the great difficulty lies in this: you must first enable the
government to
control the governed; and in the next place oblige it to control
itself. A
dependence on the people is, no doubt, the primary control on the
government;
but experience has taught mankind the necessity of auxiliary
precautions.
This policy of supplying,
by opposite and rival interests,
the defect of better motives, might be traced through the whole system
of human
affairs, private as well as public. We see it particularly displayed in
all the
subordinate distributions of power, where the constant aim is to divide
and
arrange the several offices in such a manner as that each may be a
check on the
other -- that the private interest of every individual may be a
sentinel over
the public rights. These inventions of prudence cannot be less
requisite in the
distribution of the supreme powers of the State."
http://www.constitution.org/fed/federa51.htm
Ou seja, quem está preso não é anjo, mas quem é oficial de polícia também não é. E assim como os presos, os policiais também devem ser punidos por desobedecerem a lei. Se não há punição para os representantes do estado, esse se torna uma entidade sem controle, disposta a todo tipo de abuso de poder, como o que aconteceu no Carandiru. Todavia, 20 anos depois, esses policiais ainda não foram julgados. Ou seja, não somos um Estado de Direito ainda.
Essa era minha análise do episódio antes de ler o livro de Varella. Conhecer a história dos presos, suas personalidades e idiossincrasias, e colocar um nome em cada um dos números que formam aquele número abstrato, 111, deixa o episódio intensamente mais triste e infinitamente mais revoltante. E é mais triste ainda pensar nas consequências nefastas que esse massacre teve para o sistema prisional e a estrutura do crime organizado no país (veja meu post sobre o outro livro do Varella).
Não surpreende que o livro de Varella, que é cheio de histórias (e sem nenhuma tabela estatística assustadora), tenha sido um best-seller no Brasil. O que surpreende é que tenham sido vendidos 460 mil exemplares. Em um país de quase 200 milhões de pessoas, isso representa pouco mais de 2% da população. Peço perdão aos meus leitores pelo dado estatístico, mas meu ponto aqui é o seguinte: para que haja uma mudança da opinião pública e pressão popular a favor da punição dos culpados, é preciso que mais gente leia o livro. O mesmo poderia se tornar, por exemplo, leitura obrigatória nas escolas. Afinal, como mostram os autores de Why Nations Fail, às vezes mil palavras valem mais do que um único número.
Nenhum comentário:
Postar um comentário