O aniversário da minha irmã caiu num dia em que eu queria distância do facebook. Ainda não consegui definir bem esses dias, mas eles são basicamente caracterizados por um completo ceticismo com relação a todo aquele exercício de interação social via internet.
Fato é que eu tentei colocar algo lá. Entrei várias vezes no site (o que tem sido cada vez mais raro pra mim hoje em dia). Rascunhei uns três posts, mas desisti de todos. A minha fórmula "feliz aniversário. tudo de bom!" funciona muito bem para o resto do mundo, mas minha irmã merece algo melhor. O problema é que não baixava a inspiração. E aquele feed na lateral da tela com updates incessantes não estava ajudando meu processo criativo.
Resolvi então buscar umas fotos para ver se alguma lembrança do passado viria com uma frase que fizesse juz ao momento. Não achei nada. No ápice do desespero, resolvi ligar. Sabe aquela coisa privada que a gente fazia antigamente e a pessoa ficava super feliz? Pois é. Liguei. Minha irmã atende e fica surpresa com a ligação. Tomei como um sinal positivo.
Parabéns pra cá, felicidades pra lá, e logo estamos colocando a conversa em dia. As duas trabalhando muito. Será que vale a pena? Com certeza não vale. Qual a opção? Mudar pra Cuba, talvez. Sim, porque Coréia do Norte não tem capitalismo, mas tem um louco governando. Entre louco no governo ou toda a loucura do livre mercado, preferimos ficar com a segunda opção. Sem dúvida. Mas temos Cuba, que não seria de todo mal. O problema é que não sabemos o quanto vai durar. Passamos mais uns minutos sonhando com nossa vida fora do sistema e desligamos.
Minha irmã voltou à opressão do sistema capitalista e eu voltei à opressão do facebook. Enquanto minha irmã é esmagada pelo motor produtivo, eu -- que não tenho que produzir nada, e recebo um salário pra pensar grandes ideias -- fiquei lá sozinha no meu escritório confabulando com meus botões: ligação sem o post no
facebook não pega bem, né? Com certeza não pega. Estou até agora imaginando as pessoas horrorizadas com meu silêncio. "Você viu, Zezinho? Mariana não desejou feliz aniversário pra própria irmã..." Discussões em bares e dentro dos lares, durante o jantar. Uma vergonha! Afinal, parabéns que
se preza precisa ser aquele que todo mundo vê. Senão, não conta.
Mas eu sei que a minha irmã entendeu meu silêncio. Ela sabia que eu estava resistindo ao sistema. Precisavamos nós duas de um pouco de esperança. E esse foi meu modo de dar a ela um dia melhor: dando o pontapé inicial pra acabar com a opressão. A revolução começa com o facebook e termina com o fim do sistema capitalista! E conseguimos nesse histórico 24 de outubro essa grande vitória: passou-se o aniversário sem post. Agora, é só aguardar, que uma vida muito melhor está por vir.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Surpresa do Dia
https://m.youtube.com/watch?v=zag_Masf6FA
Promises Like Pie-Crust
by Christina Georgina Rossetti
(1830-1894)
Promise me no promises,
So will I not promise you:
Keep we both our liberties,
Never false and never true:
Let us hold the die uncast,
Free to come as free to go:
For I cannot know your past,
And of mine what can you know?
You, so warm, may once have been
Warmer towards another one:
I, so cold, may once have seen
Sunlight, once have felt the sun:
Who shall show us if it was
Thus indeed in time of old?
Fades the image from the glass,
And the fortune is not told.
If you promised, you might grieve
For lost liberty again:
If I promised, I believe
I should fret to break the chain.
Let us be the friends we were,
Nothing more but nothing less:
Many thrive on frugal fare
Who would perish of excess.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Dia de jacaré
Nada melhor para descrever meu dia, do que essa fábula do querido Pratinha:
"Vivia a floresta na mais densa calmaria até aparecer a coruja, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas: "Como vocês podem se achar felizes se são paus mandados do leão? Como podem se achar livres se só fazem o que permite o leão? Como podem dormir tranquilos se correm o risco de, a qualquer momento, serem devorados pelo leão? Abaixo a ditadura leonina!". "Bravo!", gritou o coelho. "Apoiada!", bradou a gazela. "Ente, ente, ente, coruja presidente!", puxou o tatu.
Daí em diante, os animais passaram a viver revoltados, só pensando no absurdo que era estar continuamente sob o jugo daquela juba. A coruja, então, organizou uma assembleia. Depois de um caloroso debate, chegou-se à conclusão de que havia um único bicho, em toda a floresta, capaz de destronar o autoungido rei dos animais: o jacaré.
Boiando no rasinho, só com aqueles olhos melífluos pra fora d'água, o jacaré ouviu a explicação da coruja e as súplicas de seus companheiros silvícolas. "Vocês querem que eu ajude?" "Sim!", responderam todos. "Querem a paz na floresta?" "Siiim!" "Querem parar de sofrer com a supremacia leonina?" "Siiiiiim" -e, mal o coro suplicante terminou de ecoar por entre as copas das árvores, o jacaré arremeteu contra a coruja e, num bote certeiro, a engoliu inteirinha, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas."
Estou agora ao sol, de barriga cheira.
Essa e outras fábulas estão disponíveis aqui: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/09/1515827-fabulas-monterrosianas-ii.shtml
"Vivia a floresta na mais densa calmaria até aparecer a coruja, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas: "Como vocês podem se achar felizes se são paus mandados do leão? Como podem se achar livres se só fazem o que permite o leão? Como podem dormir tranquilos se correm o risco de, a qualquer momento, serem devorados pelo leão? Abaixo a ditadura leonina!". "Bravo!", gritou o coelho. "Apoiada!", bradou a gazela. "Ente, ente, ente, coruja presidente!", puxou o tatu.
Daí em diante, os animais passaram a viver revoltados, só pensando no absurdo que era estar continuamente sob o jugo daquela juba. A coruja, então, organizou uma assembleia. Depois de um caloroso debate, chegou-se à conclusão de que havia um único bicho, em toda a floresta, capaz de destronar o autoungido rei dos animais: o jacaré.
Boiando no rasinho, só com aqueles olhos melífluos pra fora d'água, o jacaré ouviu a explicação da coruja e as súplicas de seus companheiros silvícolas. "Vocês querem que eu ajude?" "Sim!", responderam todos. "Querem a paz na floresta?" "Siiim!" "Querem parar de sofrer com a supremacia leonina?" "Siiiiiim" -e, mal o coro suplicante terminou de ecoar por entre as copas das árvores, o jacaré arremeteu contra a coruja e, num bote certeiro, a engoliu inteirinha, com seu sobretudo, suas olheiras e suas ideias subversivas."
Estou agora ao sol, de barriga cheira.
Essa e outras fábulas estão disponíveis aqui: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/09/1515827-fabulas-monterrosianas-ii.shtml
sábado, 20 de setembro de 2014
Em busca da perenidade
Perenidade? Não sabia qual era o substantivo de perene quando pensei no título para esse post. Talvez fosse perenez ( como em lucidez)? Quiça poderia ser perenice (Como velhice)? Não sei.
Sim, estou perdendo o português. E junto com a perda vem a preguiça de checar no dicionário. Fica aqui, portanto, a ressalva: sei o que busco, ainda que não saiba como descrevê-la (perenidade, perenez ou perenice?). Um problem de PPP: perda do português e preguiça...
Em contraste com as incertezas gramaticais, o tempo está começando a esfriar. Não há incerteza alguma sobre o fato de que o inverno logo estará aqui. Decidi então registrar a existência das plantas não perenes que vão desaparecer do quintal nas próximas semanas.
Já falei antes da minha angústia com a situação. Talvez haja alguma ironia no fato de que perder as plantas me incomode mais do que perder meu português. Mas, como expliquei antes, não se trata de uma escolha no caso das plantas. Eis o problema.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Colocando a Santaella na faixa vermelha
Era fã da Santaella e da semiótica quando estudava na Escola de Comunicações e Artes. Mas o tempo passa e a gente amadurece. Hoje, sou fã da Marjorie, cujo texto recomendo (ver link no fim do post).
Depois de passar quatro dias me locomovendo com uma bicicleta em Amsterdam em julho, além de não ter carro e usar a bicicleta quase todos os dias (weather permitting) pra ir trabalhar aqui em Toronto, concordo que precisamos de uma revolução em São Paulo.
Guilhotina para acadêmicos desinformados. E que venham mais faixas vermelhas e toda a alegria que vem junto com elas!
http://m.huffpost.com/br/entry/5816142
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Cada um tem a ciclovia que merece
Há algumas semanas, um vídeo feito por um ciclista em Toronto virou febre na internet (ao menos aqui em Toronto). O video mostra como a ciclovias da cidade são frequentemente ocupadas por veículos de todo tipo (polícia, caminhões entregando cerveja, taxis e carros privados), que dão uma "paradinha" forçando os ciclistas a entrar na faixa de automóveis para seguir seu caminho.
Resposta dos paulistanos para o ciclista canadense?
- Sabe de nada inocente. Você acha que tem um problema? Veja isso:
(foto tirada por um usuário do facebook em São Paulo no dia 20 de agosto de 2014).
E a resposta do paulistano que usa twitter para o ciclista canadense? #firstworldproblems.
Pois é, cada um com a ciclovia que merece.
.
Resposta dos paulistanos para o ciclista canadense?
- Sabe de nada inocente. Você acha que tem um problema? Veja isso:
(foto tirada por um usuário do facebook em São Paulo no dia 20 de agosto de 2014).
E a resposta do paulistano que usa twitter para o ciclista canadense? #firstworldproblems.
Pois é, cada um com a ciclovia que merece.
.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
sábado, 9 de agosto de 2014
O troco e a racionalidade
- Deu 27,80, senhora.
- Tá aqui, trinta. Pode ficar com o troco.
- Não, minha senhora. Pega o troco.
E em questão de segundos o sujeito sacou duas moedas de um real e duas de dez centavos. Estiquei a mão pensando: santo deus, lá vou eu voltar com um saco de quinhentas moedas pra Toronto de novo.
- Com dez trocos desses, as senhora paga outra corrida.
O ponto do taxista é muito válido. Na verdade, é uma das primeiras lições de qualquer curso de educação financeira: de pouco em pouco a galinha enche o papo. Aprendi isso em um curso em Toronto, na aula do muffin. A instrutora mostrou o preço de um muffin no Starbucks (uns Ca$2,50), e calculou quanto uma pessoa gastaria se comesse um por dia, de manhã de segunda a sexta-feira (5 x 2,50 = 12,50 por semana; ou 50 reais por mês) num período de 10 anos (52 semanas x 50 reais = 2600 por ano). E era uma quantia significativa. Tipo uns 25.000 dólares.
Lição do dia? Ao invés de ficar esperando ganhar na mega-sena, é melhor começar a contar as pequenas economias que se pode fazer no dia-a-dia, tipo não comer muffin no Starbucks e não deixar o taxista com o troco. (Confesso que não sei se você pode comprar um muffin com o troco que o taxista não aceitou - precisamos consultar um especialista).
Feliz com a idéia de que a população brasileira está começando a se familiarizar com princípios básicos de administração financeira, desço do táxi. Entro no avião e começo a revisar minhas notas de aula: "O agente racional auto-interessado busca maximizar sua utilidade individual". Essa é a premissa básica da aula que eu precisava dar assim que saísse do avião e ali estava eu, me deparando com uma situação que não parecia se encaixavar naquele modelo de racionalidade.
Se o taxista fosse um agente racional auto-interessado, teria embolsado o troco e agradecido. Portanto, como explicar para meus alunos que o modelo era válido? Seria o taxista irracional? Talvez eu pudesse inventar uma história de que era um hippie dirigindo um carro pelas ruas de São Paulo. Exceto que hippies em geral não são muito bons com princípios básicos de educação financeira - afinal, a filosofia deles é não se importar com dinheiro...
O taxista paulistano não era o primeiro a me deixar com um grande problema intelectual para resolver. Um carioca, uma vez, fez algo ainda mais inexplicável.
- São R$22,20.
Dei R$25 pra ele.
- A senhora não tem troco?
- Não tenho. Se o senhor não tiver troco, pode ficar com os R$25.
Ele imediatamente sacou a nota de 5 reais e esticou o braço insistentemente para devolvê-la.
- Não, não, minha senhora! A senhora fica com os 5 reais.
- Por que? perguntei confusa.
- Ora, porque é a senhora que vai perder mais dinheiro. Eu só perco R$2,20. A senhora ia perder R$2,80 se me deixasse com o troco.
Um era um hippie com educação financeira e o outro era o justiceiro do troco. Se alguém não tem troco, fica com a diferença quem ia perder mais dinheiro. Afinal, a outra partilha seria injusta, não? O problema dessas histórias é: como convencer meus alunos a acreditar em um modelo baseado em uma premissa de racionalidade, quando tem tanto louco no mundo?
A resposta, ao meu ver, é simples (apesar de eu ter demorado muito tempo para formulá-la...). A utilidade individual não se limita a ganhar mais dinheiro. Cada um tem uma utilidade diferente. Alguém que quer ser rico valoriza mais o dinheiro que outras coisas. Esse pegaria o troco. Mas o taxista paulistano claramente valoriza algo mais do que o dinheiro. Talvez mostrar o conhecimento dele de educação financeira seja mais importante para ele do que ficar com dois reais. Talvez o taxista carioca valorize mais a justiça do que a acumulação de riqueza. Portanto, ambos estavam maximizando sua utilidade individual e estavam portanto se comportando como agentes racionais auto-interessados.
Eu tinha acabado de salvar minha aula quando me ocorreu que a explicação poderia ser outra. Talvez ambos os taxistas tivessem ficado com o orgulho ferido de "receber esmola" de uma mulher jovem. Afinal, isso feriria o orgulho de qualquer machista. Portanto, a utilidade que ambos poderiam estar preservando ali era a superioridade dos homens sobre as mulheres. Um comportamento perfeitamente racional para cada um deles, mas bastante prejudicial para a sociedade como um todo. Portanto, já ficava ali o ponto de conexão com a próxima aula: a versão descritiva (o mundo é assim) e a versão normativa (o mundo deveria ser assim) do modelo.
Só espero que algum dia alguém escreva um livro sobre como as vezes há mais coisas a se aprender dentro de táxis do que dentro das universidades...
- Tá aqui, trinta. Pode ficar com o troco.
- Não, minha senhora. Pega o troco.
E em questão de segundos o sujeito sacou duas moedas de um real e duas de dez centavos. Estiquei a mão pensando: santo deus, lá vou eu voltar com um saco de quinhentas moedas pra Toronto de novo.
- Com dez trocos desses, as senhora paga outra corrida.
O ponto do taxista é muito válido. Na verdade, é uma das primeiras lições de qualquer curso de educação financeira: de pouco em pouco a galinha enche o papo. Aprendi isso em um curso em Toronto, na aula do muffin. A instrutora mostrou o preço de um muffin no Starbucks (uns Ca$2,50), e calculou quanto uma pessoa gastaria se comesse um por dia, de manhã de segunda a sexta-feira (5 x 2,50 = 12,50 por semana; ou 50 reais por mês) num período de 10 anos (52 semanas x 50 reais = 2600 por ano). E era uma quantia significativa. Tipo uns 25.000 dólares.
Lição do dia? Ao invés de ficar esperando ganhar na mega-sena, é melhor começar a contar as pequenas economias que se pode fazer no dia-a-dia, tipo não comer muffin no Starbucks e não deixar o taxista com o troco. (Confesso que não sei se você pode comprar um muffin com o troco que o taxista não aceitou - precisamos consultar um especialista).
Feliz com a idéia de que a população brasileira está começando a se familiarizar com princípios básicos de administração financeira, desço do táxi. Entro no avião e começo a revisar minhas notas de aula: "O agente racional auto-interessado busca maximizar sua utilidade individual". Essa é a premissa básica da aula que eu precisava dar assim que saísse do avião e ali estava eu, me deparando com uma situação que não parecia se encaixavar naquele modelo de racionalidade.
Se o taxista fosse um agente racional auto-interessado, teria embolsado o troco e agradecido. Portanto, como explicar para meus alunos que o modelo era válido? Seria o taxista irracional? Talvez eu pudesse inventar uma história de que era um hippie dirigindo um carro pelas ruas de São Paulo. Exceto que hippies em geral não são muito bons com princípios básicos de educação financeira - afinal, a filosofia deles é não se importar com dinheiro...
O taxista paulistano não era o primeiro a me deixar com um grande problema intelectual para resolver. Um carioca, uma vez, fez algo ainda mais inexplicável.
- São R$22,20.
Dei R$25 pra ele.
- A senhora não tem troco?
- Não tenho. Se o senhor não tiver troco, pode ficar com os R$25.
Ele imediatamente sacou a nota de 5 reais e esticou o braço insistentemente para devolvê-la.
- Não, não, minha senhora! A senhora fica com os 5 reais.
- Por que? perguntei confusa.
- Ora, porque é a senhora que vai perder mais dinheiro. Eu só perco R$2,20. A senhora ia perder R$2,80 se me deixasse com o troco.
Um era um hippie com educação financeira e o outro era o justiceiro do troco. Se alguém não tem troco, fica com a diferença quem ia perder mais dinheiro. Afinal, a outra partilha seria injusta, não? O problema dessas histórias é: como convencer meus alunos a acreditar em um modelo baseado em uma premissa de racionalidade, quando tem tanto louco no mundo?
A resposta, ao meu ver, é simples (apesar de eu ter demorado muito tempo para formulá-la...). A utilidade individual não se limita a ganhar mais dinheiro. Cada um tem uma utilidade diferente. Alguém que quer ser rico valoriza mais o dinheiro que outras coisas. Esse pegaria o troco. Mas o taxista paulistano claramente valoriza algo mais do que o dinheiro. Talvez mostrar o conhecimento dele de educação financeira seja mais importante para ele do que ficar com dois reais. Talvez o taxista carioca valorize mais a justiça do que a acumulação de riqueza. Portanto, ambos estavam maximizando sua utilidade individual e estavam portanto se comportando como agentes racionais auto-interessados.
Eu tinha acabado de salvar minha aula quando me ocorreu que a explicação poderia ser outra. Talvez ambos os taxistas tivessem ficado com o orgulho ferido de "receber esmola" de uma mulher jovem. Afinal, isso feriria o orgulho de qualquer machista. Portanto, a utilidade que ambos poderiam estar preservando ali era a superioridade dos homens sobre as mulheres. Um comportamento perfeitamente racional para cada um deles, mas bastante prejudicial para a sociedade como um todo. Portanto, já ficava ali o ponto de conexão com a próxima aula: a versão descritiva (o mundo é assim) e a versão normativa (o mundo deveria ser assim) do modelo.
Só espero que algum dia alguém escreva um livro sobre como as vezes há mais coisas a se aprender dentro de táxis do que dentro das universidades...
sexta-feira, 25 de julho de 2014
Sobre a polícia
Você acha que é só no Brasil? A polícia faz uso excessivo da força, mata inocentes e efetua prisões ilegais durante protestos no Canadá também. A diferença entre o Canadá e o Brasil, todavia, não é apenas a frequência com a qual tais problemas ocorrem, mas como o governo e a sociedade reagem a eles.
Dois exemplos de respostas a abusos pela polícia de Toronto:
1) Ontem, Toronto estava discutindo se o atual chefe da polícia deve ser reconduzido ao cargo. Discussão pública para determinar se ele fez um bom trabalho, e um debate acirrado sobre a questionável atuação da polícia (e consequentemente dele) ao repreender com violência e prisões ilegais os protestos na reunião dos G-20.
2) Hoje saiu o relatório propondo reformas no treinamento e preparação dos policiais para lidar com problemas que envolvem saúde mental. O relatório foi produzido depois que a polícia matou, no ano passado, com vários tiros, um jovem que estava armado com apenas uma faca em um bonde, tendo um surto psicótico.
Em suma, abuso e violência policial acontecem em vários lugares, não apenas no Brasil. A questão é: que medidas tomamos quando esses incidentes ocorrem? Punir quem agiu mal é importante (e os oficiais envolvidos nos dois casos foram condenados). Mas mais importante que isso é analisar que tipo de reformas são necessárias para evitar que esses problemas voltem a ocorrer no futuro. O Canadá, nesses dois exemplos, mostra duas estruturas institucionais que permitem isso.
Se o Brasil quer uma polícia mais funcional, precisa começar um debate público sobre quais estruturas institucionais precisamos para poder fazer os ajustes necessários quando os problemas (que serão inevitáveis) ocorrerem. Só assim podemos sonhar com uma polícia que se identifica menos com um esquadrão de justiceiros acima da lei e mais com o cidadão comum, que seria algo mais ou menos assim:
Dois exemplos de respostas a abusos pela polícia de Toronto:
1) Ontem, Toronto estava discutindo se o atual chefe da polícia deve ser reconduzido ao cargo. Discussão pública para determinar se ele fez um bom trabalho, e um debate acirrado sobre a questionável atuação da polícia (e consequentemente dele) ao repreender com violência e prisões ilegais os protestos na reunião dos G-20.
2) Hoje saiu o relatório propondo reformas no treinamento e preparação dos policiais para lidar com problemas que envolvem saúde mental. O relatório foi produzido depois que a polícia matou, no ano passado, com vários tiros, um jovem que estava armado com apenas uma faca em um bonde, tendo um surto psicótico.
Em suma, abuso e violência policial acontecem em vários lugares, não apenas no Brasil. A questão é: que medidas tomamos quando esses incidentes ocorrem? Punir quem agiu mal é importante (e os oficiais envolvidos nos dois casos foram condenados). Mas mais importante que isso é analisar que tipo de reformas são necessárias para evitar que esses problemas voltem a ocorrer no futuro. O Canadá, nesses dois exemplos, mostra duas estruturas institucionais que permitem isso.
Se o Brasil quer uma polícia mais funcional, precisa começar um debate público sobre quais estruturas institucionais precisamos para poder fazer os ajustes necessários quando os problemas (que serão inevitáveis) ocorrerem. Só assim podemos sonhar com uma polícia que se identifica menos com um esquadrão de justiceiros acima da lei e mais com o cidadão comum, que seria algo mais ou menos assim:
sexta-feira, 18 de julho de 2014
A liberdade é azul
Assisti esse filme quando ainda estava no segundo grau. Ele me marcou tanto, que voltei a vê-lo inúmeras vezes desde então. Por muito tempo, achei que era a cinematografia que me encantava. A fotografia do filme é belíssima, especialmente a predominância da cor azul. Recentemente, todavia, comecei a desconfiar que o que me atraia tanto no filme era o enredo.
A história, basicamente, é de uma mulher que perde o filho e o marido em um acidente de carro e começa a tentar cortar todos os laços que tem com outras pessoas. Ela tenta se isolar do mundo, por mais difícil que pareça a tarefa. Há várias cenas marcantes da protagonista em uma piscina vazia, buscando uma solidão que parece difícil encontrar em qualquer outro lugar.
A fotografia do filme é tão impressionante, que levamos algum tempo até voltar a racionalizar o filme. Eu, pessoalmente, levei duas décadas. Mas assim que consegui elaborar algo mais analítico, a primeira pergunta foi: o que essa história tem a ver com liberdade? Liberdade, lembremos, é o título do filme. E ao olhar para o roteiro ficamos um pouco atormentados com a idéia de que uma mulher que acaba de perder sua família em um acidente de carro possa ser descrita, a partir daí, como um ser livre.
Como a liberdade imposta parece algo que não deve ser celebrado, ou sequer contemplado, temos uma tendência natural a focar na liberdade escolhida ou desejada. Ou seja, a busca da protagonista por uma libertação de todo e qualquer vínculo com terceiros. É um desejo de se ver livre de sociedade e de todo e qualquer contato com outros seres humanos. Por que? Porque qualquer vínculo que se cria é uma potencial fonte de dor e sofrimento, porque é uma potencial perda.
Uma outra interpretação é o desejo da protagonista de se livrar de toda e qualquer memória da sua vida anterior. A cena em que ela destrói a última peça na qual seu marido, um compositor, estava trabalhando, sustenta essa hipótese: ela não quer se libertar da sociedade, mas sim do seu passado. Ela quer se livrar das memórias da vida que tinha, e que perdeu. Essa é a liberdade que busca.
Eu estava trabalhando com essas hipóteses (todas aventadas em diferentes críticas do filme) quando me deparei com uma frase bastante curiosa.
"Liberdade depois do confinamento é diferente da simples liberdade. Ainda que a liberdade em si possa ser uma forma de confinamento".
O livro de onde veio a frase não é bom, e não faz referência alguma ao filme, mas para mim a frase ofereceu uma interpretação interessante sobre o filme: a busca por isolamento da protagonista, que pode ser lida como uma busca por confinamento, é, ao mesmo tempo, uma busca por liberdade. É um ato de liberdade porque a liberdade imposta, igualmente, é um confinamento.
É quase como se ela estivesse protestando por ter sobrevivido ao acidente: se ela não podia ter o confinamento que escolheu (seu vínculo com o marido e o filho), ela também não quer desfrutar da liberdade imposta, que nada mais era que ser confinada a viver uma vida que ela não escolheu. Daí seu isolamento social: enquanto aquilo pode ser lido como um confinamento auto-imposto, ao mesmo tempo parece ser a forma mais robusta através da qual a protagonista consegue expressar sua escolha, e portanto afirmar sua liberdade.
Enfim, azul não é necessariamente a cor mais quente.
P.S. - Esse post é dedicado a T., que passou por mais perdas que qualquer pessoa poderia humanamente suportar nos últimos meses.
A história, basicamente, é de uma mulher que perde o filho e o marido em um acidente de carro e começa a tentar cortar todos os laços que tem com outras pessoas. Ela tenta se isolar do mundo, por mais difícil que pareça a tarefa. Há várias cenas marcantes da protagonista em uma piscina vazia, buscando uma solidão que parece difícil encontrar em qualquer outro lugar.
A fotografia do filme é tão impressionante, que levamos algum tempo até voltar a racionalizar o filme. Eu, pessoalmente, levei duas décadas. Mas assim que consegui elaborar algo mais analítico, a primeira pergunta foi: o que essa história tem a ver com liberdade? Liberdade, lembremos, é o título do filme. E ao olhar para o roteiro ficamos um pouco atormentados com a idéia de que uma mulher que acaba de perder sua família em um acidente de carro possa ser descrita, a partir daí, como um ser livre.
Como a liberdade imposta parece algo que não deve ser celebrado, ou sequer contemplado, temos uma tendência natural a focar na liberdade escolhida ou desejada. Ou seja, a busca da protagonista por uma libertação de todo e qualquer vínculo com terceiros. É um desejo de se ver livre de sociedade e de todo e qualquer contato com outros seres humanos. Por que? Porque qualquer vínculo que se cria é uma potencial fonte de dor e sofrimento, porque é uma potencial perda.
Uma outra interpretação é o desejo da protagonista de se livrar de toda e qualquer memória da sua vida anterior. A cena em que ela destrói a última peça na qual seu marido, um compositor, estava trabalhando, sustenta essa hipótese: ela não quer se libertar da sociedade, mas sim do seu passado. Ela quer se livrar das memórias da vida que tinha, e que perdeu. Essa é a liberdade que busca.
Eu estava trabalhando com essas hipóteses (todas aventadas em diferentes críticas do filme) quando me deparei com uma frase bastante curiosa.
"Liberdade depois do confinamento é diferente da simples liberdade. Ainda que a liberdade em si possa ser uma forma de confinamento".
O livro de onde veio a frase não é bom, e não faz referência alguma ao filme, mas para mim a frase ofereceu uma interpretação interessante sobre o filme: a busca por isolamento da protagonista, que pode ser lida como uma busca por confinamento, é, ao mesmo tempo, uma busca por liberdade. É um ato de liberdade porque a liberdade imposta, igualmente, é um confinamento.
É quase como se ela estivesse protestando por ter sobrevivido ao acidente: se ela não podia ter o confinamento que escolheu (seu vínculo com o marido e o filho), ela também não quer desfrutar da liberdade imposta, que nada mais era que ser confinada a viver uma vida que ela não escolheu. Daí seu isolamento social: enquanto aquilo pode ser lido como um confinamento auto-imposto, ao mesmo tempo parece ser a forma mais robusta através da qual a protagonista consegue expressar sua escolha, e portanto afirmar sua liberdade.
Enfim, azul não é necessariamente a cor mais quente.
P.S. - Esse post é dedicado a T., que passou por mais perdas que qualquer pessoa poderia humanamente suportar nos últimos meses.
domingo, 13 de julho de 2014
Bundas, Accountability e Miúdos
Cá estou de volta à terrinha. Me encantei tanto com o lugar na primeira visita,
que não me restou outra opção senão voltar. E uma das coisas que tinha
me encantado em Portugal da primeira vez era esse português sofisticado,
muito literário e quase poético, que eles usam para discutir idéias
sofisticadas, mas também para coisas do dia a dia.
Pois estava eu no jantar a elogiar a língua portuguesa usada por eles, quando fui interrompida por uma manifestação de amor ao modo como nós, brasileiros, usamos a língua. Exemplo? Bunda! Disseram entusiasmados. Bunda? Disse eu, incrédula. Sim, bunda. Responderam enfáticos.
Seguiu-se então uma longa declaração de amor ao fato de que inventamos coisas, jogamos com variações e damos cor a um mundo um tanto melancólico e triste (basta ouvir um fado para ver). Imagine, explicou uma das fã do nosso português, que os portugueses tem só as palavras rabo, traseiro e cú. Essa última, esclareceu ela, vocês usam apenas para o orifício, enquando nós, portugueses, a usamos de maneira mais abrangente para incluir também o que vocês chamam de bunda. Mas, segundo ela, não havia nada de mais leve e descompromissado do que a palavra bunda. Imagine o Jorge Amado tendo que falar "rabo de preta", ao invés de "bunda de negra". Perde-se metade da beleza da história só em essa troca de duas palavras.
Outra palavra que os encanta é ouvidoria. Alguém que ouve. Nada mais singelo, simpático e representativo do que fazem aqueles que exercem essa função: são ouvidores. Ouvem o que os outros dizem. E em Portugal, perguntei? Temos ouvidores, mas chamamos eles dos nomes mais exdrúxulos. Nada que se compare a ouvidoria.
A discussão sobre ouvidoria me lembrou da palavra accountability, que não tem tradução no nosso português do Brasil. Teria em Portugal?, perguntei. Também não. Perguntei se achavam que isso era sinal de que nós estávamos menos preocupados com accountability do que os países cuja língua tinha uma tradução para a palavra.
Ora, responderam, isso é como dizer que os outros não sentem saudade só porque não tem uma tradução para a palavra. Claro que eles sentem. O anglo-saxões tem o missing e longing, que não traduz saudade, mas claramente indica que eles sentem falta, assim como nós. Talvez não sintam com a intensidade que nós sentimos, e daí a necessidade de termos uma palavra específica para esse sentimento. Ou seja, talvez essas palavras sejam uma sinal de quão profundamente algumas idéias e sentimentos penetram e vivem em certas culturas. Enquanto os anglo-saxões parecem se preocupar mais intensamente com accountability, talvez nós, os portugueses, sentimos saudades com mais intensidade, ou ao menos não nos acanhamos em expressar o que estamos sentindo, afinal somos latinos, concluiram.
Divagações a parte, tentei sustentar que o português de Portugal era infinitamente mais poético que o nosso: considere, por exemplo, que vocês chamam as crianças de miúdos. Não consigo pensar em uma forma mais carinhosa e ao mesmo tempo mais representativa de descrever as crianças. Ora, responderam, miúdo é uma descrição literal do que são. Pessoas miúdas. Vocês inventam coisas, disseram, como a palavra supimpa. Outro exemplo? Pitaco.
Respondi que preferia mil vezes viver em um mundo povoado de miúdos e com bons vinhos, do que em um mundo cheio de bundas sumpimpas e pessoas dando pitacos em tudo, inclusive a língua portuguesa. E cá voltarei, sempre que puder.
Pois estava eu no jantar a elogiar a língua portuguesa usada por eles, quando fui interrompida por uma manifestação de amor ao modo como nós, brasileiros, usamos a língua. Exemplo? Bunda! Disseram entusiasmados. Bunda? Disse eu, incrédula. Sim, bunda. Responderam enfáticos.
Seguiu-se então uma longa declaração de amor ao fato de que inventamos coisas, jogamos com variações e damos cor a um mundo um tanto melancólico e triste (basta ouvir um fado para ver). Imagine, explicou uma das fã do nosso português, que os portugueses tem só as palavras rabo, traseiro e cú. Essa última, esclareceu ela, vocês usam apenas para o orifício, enquando nós, portugueses, a usamos de maneira mais abrangente para incluir também o que vocês chamam de bunda. Mas, segundo ela, não havia nada de mais leve e descompromissado do que a palavra bunda. Imagine o Jorge Amado tendo que falar "rabo de preta", ao invés de "bunda de negra". Perde-se metade da beleza da história só em essa troca de duas palavras.
Outra palavra que os encanta é ouvidoria. Alguém que ouve. Nada mais singelo, simpático e representativo do que fazem aqueles que exercem essa função: são ouvidores. Ouvem o que os outros dizem. E em Portugal, perguntei? Temos ouvidores, mas chamamos eles dos nomes mais exdrúxulos. Nada que se compare a ouvidoria.
A discussão sobre ouvidoria me lembrou da palavra accountability, que não tem tradução no nosso português do Brasil. Teria em Portugal?, perguntei. Também não. Perguntei se achavam que isso era sinal de que nós estávamos menos preocupados com accountability do que os países cuja língua tinha uma tradução para a palavra.
Ora, responderam, isso é como dizer que os outros não sentem saudade só porque não tem uma tradução para a palavra. Claro que eles sentem. O anglo-saxões tem o missing e longing, que não traduz saudade, mas claramente indica que eles sentem falta, assim como nós. Talvez não sintam com a intensidade que nós sentimos, e daí a necessidade de termos uma palavra específica para esse sentimento. Ou seja, talvez essas palavras sejam uma sinal de quão profundamente algumas idéias e sentimentos penetram e vivem em certas culturas. Enquanto os anglo-saxões parecem se preocupar mais intensamente com accountability, talvez nós, os portugueses, sentimos saudades com mais intensidade, ou ao menos não nos acanhamos em expressar o que estamos sentindo, afinal somos latinos, concluiram.
Divagações a parte, tentei sustentar que o português de Portugal era infinitamente mais poético que o nosso: considere, por exemplo, que vocês chamam as crianças de miúdos. Não consigo pensar em uma forma mais carinhosa e ao mesmo tempo mais representativa de descrever as crianças. Ora, responderam, miúdo é uma descrição literal do que são. Pessoas miúdas. Vocês inventam coisas, disseram, como a palavra supimpa. Outro exemplo? Pitaco.
Respondi que preferia mil vezes viver em um mundo povoado de miúdos e com bons vinhos, do que em um mundo cheio de bundas sumpimpas e pessoas dando pitacos em tudo, inclusive a língua portuguesa. E cá voltarei, sempre que puder.
quinta-feira, 10 de julho de 2014
Sobre a civilidade alemã
Me disseram que assistir o jogo na Alemanha seria tranquilo. E foi.
Todos os bares da cidade estavam com bandeiras da Alemanha e do Brasil
na entrada. Um dos alemães levou uma camiseta do Brasil para me
emprestar, pois a minha estava suja.
E começou o jogo.
Comemoraram o primeiro gol. No segundo e no terceiro, comemoraram, mas vieram me dizer que sentiam muito por aquilo que parecia uma pré anunciada derrota. No quarto, perguntaram o que estava acontecendo com o nosso time. No quinto, proclamaram que aquele resultado era excessivo. No sexto, se ofereceram para me levar de volta ao hotel, caso eu não quisesse continuar assistindo o jogo. No sétimo, decidiram pagar minha conta, pois segundo eles "eram o mínimo que podiam fazer". No final havia mais incredulidade do que celebração entre o grupo.
Me deixaram no hotel lamentando quão triste era para o Brasil perder em casa daquela forma. Perguntei com quem eles preferiam competir na final. A resposta foi nada estratégica: preferiam ver uma final com a Argentina, pois uma final com dois países europeus seria pouco representativa da diversidade que a copa do mundo deve representar. E assim será.
Deixo a Alemanha hoje, agradecida por toda a hositalidade, desejando a eles sorte na final e o mesmo brinde que me ofereceram na terça-feira: que vença o melhor time!
E começou o jogo.
Comemoraram o primeiro gol. No segundo e no terceiro, comemoraram, mas vieram me dizer que sentiam muito por aquilo que parecia uma pré anunciada derrota. No quarto, perguntaram o que estava acontecendo com o nosso time. No quinto, proclamaram que aquele resultado era excessivo. No sexto, se ofereceram para me levar de volta ao hotel, caso eu não quisesse continuar assistindo o jogo. No sétimo, decidiram pagar minha conta, pois segundo eles "eram o mínimo que podiam fazer". No final havia mais incredulidade do que celebração entre o grupo.
Me deixaram no hotel lamentando quão triste era para o Brasil perder em casa daquela forma. Perguntei com quem eles preferiam competir na final. A resposta foi nada estratégica: preferiam ver uma final com a Argentina, pois uma final com dois países europeus seria pouco representativa da diversidade que a copa do mundo deve representar. E assim será.
Deixo a Alemanha hoje, agradecida por toda a hositalidade, desejando a eles sorte na final e o mesmo brinde que me ofereceram na terça-feira: que vença o melhor time!
domingo, 15 de junho de 2014
A doçura dos cascudos
A cidade de
Santiago é infestada de cachorros de rua. Dormem por toda parte, se reúnem em
bandos nas esquinas e frequentemente estão no meio dos pedestres esperando o
sinal verde abrir para atravessar na faixa. É quase impossível perambular pela
cidade sem notá-los a cada esquina.
Da última
vez que visitei Santiago, fiquei impressionada com toda a funcionalidade
e obediência às regras desse país. A América Latina faz muitas coisas
maravilhosamente bem, mas cumprir com a lei e manter a ordem não estão na
lista. Santiago tem muitas coisas em comum com o resto do continente, mas nesse aspecto parece uma grande exceção à regra (ou falta de
regra) latino americana. E isso inclui os cascudos* nas ruas de Santiago: não
atacam ninguém, não latem, não brigam entre si e, como disse antes, esperam o
sinal fechar para atravessar a rua na faixa.
Estava
pronta para me impressionar com toda a boa governança chilena de novo mas, dessa vez, ao prestar atenção nos cascudos, outra
coisa me chamou atenção: toda a doçura que governa essa cidade.
Um dos
livros apresentados na conferência que me trouxe aqui começava com uma história
interessante sobre política municipal. Os habitantes de Santiago prefeririam
ter menos cachorros na rua, mas não apoiam sacrificar os cachorros. Portanto, o
governo fica em uma sinuca de bico, pois não podem mandar a carrocinha
“eliminar” todos os cachorros de rua. Certamente a medida seria seguida de
enormes protestos populares. Ao mesmo tempo, não pode acolher todos os
cachorros que perambulam pelas ruas de Santiago: os custos da empreitada
certamente afetaria o orçamento da saúde, educação e vigilância sanitária. Ou
seja, protestos, certamente.
Qual a
solução? Não fazer nada. Quer dizer, o governo não faz nada. A população toma
conta dos cachorros. E tomam conta de verdade. Vi cachorros dormindo na porta
de lojas de artigos de luxo e na frente da Casa da Moeda, o a palácio do
governo. Ninguém solicita delicadamente que eles saiam. Chutá-los, muito menos.
Mas o cuidado vai além disso. Há baldes de água pregados em árvores, com os dizerems "água para perritos vagos" e uma
solicitação para que não se jogue lixo no balde. E há cachorros agasalhados.
Muitos. Afinal, o inverno é frio em Santiago e alguém se deu ao trabalho de
providenciar pulôver de lã para os cascudos, que desfilam comportadamente pelas
ruas com seus agasalhos.
E a doçura da população chilena não é apenas direcionada aos cascudos. No primeiro dia que entrei no condomínio onde estava hospedada, o porteiro me chamou. Achei que ia perguntar quem eu era e onde estava indo. Ledo engano. Para minha surpresa, ele me perguntou porque eu estava mancando. Fiquei eu numa sinuca de bico: como traduzir “hip problem”? Apontei para meu “hip”, dizendo que tinha “un problema a cá”. “Ah, las caderas”. Sim, estou com um problemas nas cadeiras. Sorri, agradecida e entretida pela tradução. Ele sorriu com toda compaixão que alguém poderia ter com minhas cadeiras, e se despediu com um “se cuide”.
E o
porteiro não foi uma exceção. Da próxima vez que estiver no Chile note como
todos se despedem com um “que se vaya bien”. Eu traduzi isso como aquele “tudo
de bom” que a gente no Brasil deseja apenas a amigos e família e, em geral,
somente em aniversários e despedidas. Aqui não. Eles desejam isso para todo
mundo, todos os dias. A caixa do supermercado me desejou tudo de bom. Todos os
garçons também. Até o funcionário do metrô me desejou tudo de bom, mesmo depois
de passar meia hora lidando com minha confusão com o sistema de bilhetes deles
(tem um bilhete para hora do rush, outro para a hora dos que não tem horário, e
um terceiro para os boêmios -- e cada um é um preço). Para não deixar tanta
gentileza passar batido, saquei em cada uma dessas oportunidades o melhor do
meu portunhol: “Que se vaya bien para usted tambien!”.
E assim
foram minhas interações com esse povo chileno que consegue ser eficiente,pontual e cumprir com as leis sem perder a ternura. Jamais. Na minha última
visita, acabei associando o cumprimento de regras com o alto
índice de desenvolvimento deles. Não mudei de ideia com relação a isso, mas
acrescento aqui um novo elemento: é mais
fácil viver e cumprir com as regras numa sociedade gentil. Fui pedir orientação
aos carabineros (polícia chilena) e encontrei duas pessoas solícitas e
sorridentes que não apenas me indicaram onde ir, mas puxaram papo: perguntaram
de onde eu era e comentaram o jogo do Brasil na copa. Minhas duas tentativas de
pedir orientação a policiais no Brasil foram respondidas com uma cara feia e um
resmungo (afinal, eles estão lá para combater a criminalidade, não dar
informações, e eu obviamente estava atrapalhando a missão!).
Em suma, como
diz a camiseta: “gentileza gera gentileza”. Eu acho que gentileza gera também gera
bom comportamento. Basta olhar para os cascudos de Santiago ou para os carabineiros,
que têm um dos índices mais baixos de violência da América Latina e contam com
altos índices de confiança da população. Os cascudos são doces porque todo mundo trata eles com gentileza. Em suma, é uma doçura coletiva que se
auto-reforça, criando um ciclo virtuoso de doçura e bom comportamento por toda
a cidade.
E eu
suspeito que essa doçura chegue até o vinho, pois só isso pode explicar como
eles conseguem produzir essa coisa maravilhosa que é o vinho chileno. Um brinde
a eles! E que se vaya bien!
*P.S. "Cascudos" é o
apelido que minha irmã dá a todos os cachorros do mundo. Não sei de onde veio,
mas acho tão simpático que resolvi emprestá-lo.
quarta-feira, 28 de maio de 2014
quarta-feira, 21 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
Despedidas
Saí de Brasília em 1994. Era um tarde quente e ensolarada, como quase todas as tarde no planalto central. Para mim, tudo aquilo era uma grande aventura. Sair da casa dos meus pais. Mudar para uma cidade nova. Explorar novos horizontes. Conhecer novas pessoas. Minha animação com tudo de novo que estava por vir era tanta, que eu não estava prestando atenção no que eu estava deixando pra trás. Só olhava pra frente.
Hoje, vinte anos depois, me despeço de Londres onde passei os últimos 5 meses. E essa despedida completamente diferente da despedida em Brasília. Estou contando tudo que estou fazendo pela última vez. Última viagem no metrô, último jantar no meu restaurante preferido, último latte na esquina do escritório. Estou apenas olhando para trás e contabilizando tudo que vou deixar de fazer, ver, apreciar e degustar a partir de segunda-feira. E a razão para toda essa melancolia não é a falta de motivos para estar animada com tudo que tenho pela frente. Pelo contrário. Enquanto em 1994 toda minha animação era motivada pela oportunidade de viver e morar na paulicéia desvairada, agora a animação deveria ser ainda maior: vou visitar 8 países nos próximos dois meses. Mas não é.
Foi só hoje, no meio das despedidas, que eu entendi porque os olhos da minha mãe se encheram de água na rodoviária de Brasília há 20 anos atrás. Lembro de entrar no ônibus intrigada com aquilo. Eu não ia desintegrar. Vinha visitar. Prometi ligar todos os dias. Na minha cabeça, não havia motivo para tristeza. Eu "só" estava mudando pra São Paulo. Mas hoje, durante o último almoço com as pessoas com quem eu convivi nesses cinco meses, meus olhos encheram de água também.
É possível manter contato via skype, mas não é a mesma coisa que decidir espontaneamente tomar uma cerveja depois do expediente. É possível mandar uma mensagem perguntando se está tudo bem, mas não é a mesma coisa que estar ali, e ver na cara da pessoas que algo não está bem. E ainda que possa haver novos reencontros, eles não serão nos lugares que viraram nossos restaurantes favoritos. Nem serão as mesmas conversas, pois nossas vidas não vão mais estar interligadas da forma que estavam quando estávamos todos juntos trabalhando no mesmo lugar.
Obviamente, os laços que desenvolvi em 17 anos de Brasília eram muito mais profundos que aqueles que desenvolvi em 5 meses em Londres. Mas precisei de 20 anos para entender que algo intangível se perde quando saímos de um lugar. Isso, obviamente, não é motivo para ficar. Mudanças nos rejuvenescem. Novas experiências fazem bem pra alma. Novas pessoas virão. Mas antes de olhar para frente, decidi parar aqui um momento para celebrar o fato de que hoje, finalmente, entendi o poema de T.S. Eliott:
Hoje, vinte anos depois, me despeço de Londres onde passei os últimos 5 meses. E essa despedida completamente diferente da despedida em Brasília. Estou contando tudo que estou fazendo pela última vez. Última viagem no metrô, último jantar no meu restaurante preferido, último latte na esquina do escritório. Estou apenas olhando para trás e contabilizando tudo que vou deixar de fazer, ver, apreciar e degustar a partir de segunda-feira. E a razão para toda essa melancolia não é a falta de motivos para estar animada com tudo que tenho pela frente. Pelo contrário. Enquanto em 1994 toda minha animação era motivada pela oportunidade de viver e morar na paulicéia desvairada, agora a animação deveria ser ainda maior: vou visitar 8 países nos próximos dois meses. Mas não é.
Foi só hoje, no meio das despedidas, que eu entendi porque os olhos da minha mãe se encheram de água na rodoviária de Brasília há 20 anos atrás. Lembro de entrar no ônibus intrigada com aquilo. Eu não ia desintegrar. Vinha visitar. Prometi ligar todos os dias. Na minha cabeça, não havia motivo para tristeza. Eu "só" estava mudando pra São Paulo. Mas hoje, durante o último almoço com as pessoas com quem eu convivi nesses cinco meses, meus olhos encheram de água também.
É possível manter contato via skype, mas não é a mesma coisa que decidir espontaneamente tomar uma cerveja depois do expediente. É possível mandar uma mensagem perguntando se está tudo bem, mas não é a mesma coisa que estar ali, e ver na cara da pessoas que algo não está bem. E ainda que possa haver novos reencontros, eles não serão nos lugares que viraram nossos restaurantes favoritos. Nem serão as mesmas conversas, pois nossas vidas não vão mais estar interligadas da forma que estavam quando estávamos todos juntos trabalhando no mesmo lugar.
Obviamente, os laços que desenvolvi em 17 anos de Brasília eram muito mais profundos que aqueles que desenvolvi em 5 meses em Londres. Mas precisei de 20 anos para entender que algo intangível se perde quando saímos de um lugar. Isso, obviamente, não é motivo para ficar. Mudanças nos rejuvenescem. Novas experiências fazem bem pra alma. Novas pessoas virão. Mas antes de olhar para frente, decidi parar aqui um momento para celebrar o fato de que hoje, finalmente, entendi o poema de T.S. Eliott:
What we call the beginning is often the end And to make an end is to make a beginning. The end is where we start from. And every phrase And sentence that is right (where every word is at home, Taking its place to support the others, The word neither diffident nor ostentatious, An easy commerce of the old and the new, The common word exact without vulgarity, The formal word precise but not pedantic, The complete consort dancing together) Every phrase and every sentence is an end and a beginning, Every poem an epitaph. And any action Is a step to the block, to the fire, down the sea's throat Or to an illegible stone: and that is where we start. We die with the dying: See, they depart, and we go with them. We are born with the dead: See, they return, and bring us with them. The moment of the rose and the moment of the yew-tree Are of equal duration. A people without history Is not redeemed from time, for history is a pattern Of timeless moments. So, while the light fails On a winter's afternoon, in a secluded chapel History is now and England. With the drawing of this Love and the voice of this Calling We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time. Through the unknown, remembered gate When the last of earth left to discover Is that which was the beginning; At the source of the longest river The voice of the hidden waterfall And the children in the apple-tree Not known, because not looked for But heard, half-heard, in the stillness Between two waves of the sea. Quick now, here, now, always - A condition of complete simplicity (Costing not less than everything) And all shall be well and All manner of thing shall be well When the tongues of flame are in-folded Into the crowned knot of fire And the fire and the rose are one.
domingo, 11 de maio de 2014
Esteriótipos (IV): os Portugueses
Esse post fecha minha série sobre esteriótipos. Faltava apenas um post sobre esteriótipos equivocados. Minha aula sobre nossos equívocos veio de uma visita inesquecível à terrinha.
Assim que coloquei meu pés em terras portuguesas, descobri que absolutamente ninguém em Portugal fala "ora pois". Mas o mais interessante não é isso, e sim a elegância e generosidade com que eles nos acolhem, apesar da infâme piada. Afinal, não custaria nada fazer chacota do bando de brasileiros que grosseiramente chega lá repetindo isso a torto e a direito, sem antes checar se é de fato verdade. E eu, infelizmente, fui uma dessas pessoas. Entretanto, a reação deles me surpreendeu. Ao invés de se portar como nós nos portaríamos -- fazendo piada dos outros --, os portugueses gentilmente me informaram que eles não usam essa expressão, mas queriam entender a origem dessa lenda urbana. Imaginam eles que faça parte de um português arcaico que acabou por sobreviver mais tempo entre os imigrantes no Brasil, mas desapareceu por lá. Eu não consegui descobrir, infelizmente.
E esse episódio ilustra bem o quanto nossa impressão de Portugal é equivocada. Ao contrário dos boatos que correm por aí, descobri em Portugal um povo inteligente, muito pouco literal, e falando um português que parecia pura literatura. Acho que o fato de que eu convivi apenas com pessoas do meio acadêmico durante minha estadia deve ter contribuído para isso. Ainda assim, acho que vale registrar isso aqui.
Quando perguntei sobre os boatos que os brasileiros espalham sobre portugueses sendo muito literais, a resposta foi: "é compreensível que haja ressentimento por causa da relação colonial. Nós não temos motivo para nutrir isso. Portanto, olhamos para seu país como iguais, e esperamos ser tratados como tais, ainda que isso não ocorra sempre. E nosso sentimento é, por vezes, de preocupação -- está o Brasil indo na direção certa? -- mas, na maior parte das vezes, com admiração. As novelas, a música e a literatura brasileira nos encantam."
E para provar isso, fica aqui, para quem ainda não viu, o relato emocionante de um escritor português sobre os(as) brasileiros(as) na FLIP, a feira literária de Parati
Portanto, além da minha declaração de amor, deixo aqui meu agradecimento a Portugal. Por ter me recebido de braços abertos, pela generosidade e interesse em nossa cultura, pela paciência com nosso "ressentimento" e por responder com tanta elegância as nossas grosserias.
Portugal me ensinou muito sobre a vida e sobre a nossa história comum. E ainda tenho muito a aprender com os portugueses. Por isso, de todos os lugares que visitei, esse é o lugar aonde quero voltar muitas vezes. E não acreditem nas más línguas que ficam criando falsos esteriótipos e andam dizendo por aí que eu só quero voltar por causa do pastéis de belém!
Assim que coloquei meu pés em terras portuguesas, descobri que absolutamente ninguém em Portugal fala "ora pois". Mas o mais interessante não é isso, e sim a elegância e generosidade com que eles nos acolhem, apesar da infâme piada. Afinal, não custaria nada fazer chacota do bando de brasileiros que grosseiramente chega lá repetindo isso a torto e a direito, sem antes checar se é de fato verdade. E eu, infelizmente, fui uma dessas pessoas. Entretanto, a reação deles me surpreendeu. Ao invés de se portar como nós nos portaríamos -- fazendo piada dos outros --, os portugueses gentilmente me informaram que eles não usam essa expressão, mas queriam entender a origem dessa lenda urbana. Imaginam eles que faça parte de um português arcaico que acabou por sobreviver mais tempo entre os imigrantes no Brasil, mas desapareceu por lá. Eu não consegui descobrir, infelizmente.
E esse episódio ilustra bem o quanto nossa impressão de Portugal é equivocada. Ao contrário dos boatos que correm por aí, descobri em Portugal um povo inteligente, muito pouco literal, e falando um português que parecia pura literatura. Acho que o fato de que eu convivi apenas com pessoas do meio acadêmico durante minha estadia deve ter contribuído para isso. Ainda assim, acho que vale registrar isso aqui.
Quando perguntei sobre os boatos que os brasileiros espalham sobre portugueses sendo muito literais, a resposta foi: "é compreensível que haja ressentimento por causa da relação colonial. Nós não temos motivo para nutrir isso. Portanto, olhamos para seu país como iguais, e esperamos ser tratados como tais, ainda que isso não ocorra sempre. E nosso sentimento é, por vezes, de preocupação -- está o Brasil indo na direção certa? -- mas, na maior parte das vezes, com admiração. As novelas, a música e a literatura brasileira nos encantam."
E para provar isso, fica aqui, para quem ainda não viu, o relato emocionante de um escritor português sobre os(as) brasileiros(as) na FLIP, a feira literária de Parati
Portanto, além da minha declaração de amor, deixo aqui meu agradecimento a Portugal. Por ter me recebido de braços abertos, pela generosidade e interesse em nossa cultura, pela paciência com nosso "ressentimento" e por responder com tanta elegância as nossas grosserias.
Portugal me ensinou muito sobre a vida e sobre a nossa história comum. E ainda tenho muito a aprender com os portugueses. Por isso, de todos os lugares que visitei, esse é o lugar aonde quero voltar muitas vezes. E não acreditem nas más línguas que ficam criando falsos esteriótipos e andam dizendo por aí que eu só quero voltar por causa do pastéis de belém!
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Esteriótipos (III): Os Italianos
A Itália é f**a (no sentido ruim do termo). Estive lá três vezes. E
todas as vezes a impressão foi péssima. E não estou sozinha em achar isso. Parece
que tem mais gente que concorda comigo:
E a versão ao vivo e a cores é muito pior do que o filminho.
Em uma visita anterior, tive uma experiência horrível com todos os meios de transporte possíveis. Os ônibus são totalmente disfuncionais (como mostra o vídeo), os taxistas te enganam, e depois de viver na pele a incompetência completa e absoluta da Allitalia em um vôo doméstico, prometi nunca mais reclamar do Brasil (leia aqui).
Nessa visita, tive o desprazer de interagir com a cultura burocrática da Itália. Esqueci meu laptop no raio-x do aeroporto de Florença. Noto a burrada assim que chego em Londres. Entro no website: o setor de achado e perdidos funciona de 8 as 9am e das 4 as 5pm (sim, você não leu errado. É isso mesmo. Não me pergunte o que fazem o resto do dia). Ligo as 7am de Londres, 8am em Florença:
- Departamento de Achados e Perdidos;
- Bom dia. Ontem eu esqueci meu laptop no aparelho de Raio-X da segurança do aeroporto. Vocês acharam, por acaso, algum laptop?
- A senhora pode por gentileza descrever o laptop?
- (Descrevo o modelo, marca, tamanho) e está em com uma capa preta.
- Qual o número na capa?
- Vocês acharam meu computador?
- Minha senhora, qual o número na capa?
- Oi?
- Minha senhora, tem um número na capa. Preciso saber qual esse número.
- Meu senhor, o "número" na capa é um símbolo da marca da empresa que produz a capa. Eu não lembro qual é o número. Qual a relevância do número na capa?
- Senhora, eu preciso me certificar que o computador pertence a senhora.
Eu pensando: claro que você precisa se certificar disso. Vai que uma pessoa aleatória resolve te ligar de Londres as 7 da manhã, te dando a descrição exata do computador que você tem em mãos? Vai que essa pessoa descobriu -- sabe-se lá como -- qual a marca e tudo. E agora está tentado se apropriar indevidamente do objeto. Você, obviamente, precisa impedi-la de cometer essa infração! Claro!
Nota de esclarecimento: o "número" na capa era um símbolo de infinito (logomarca da empresa que produz a capa), e o sujeito achou que era um 8....
- Okay. Eu posso comprovar que eu sou a dona porque eu tenho a senha.
- Qual a senha?
- Oi?
- Qual a senha?
- Olha, o senhor vai me desculpar, mas não vou te passar minha senha. Há arquivos e dados pessoais dentro desse computador. Não posso correr o risco de um estranho acessar os arquivos.
- Tudo bem. Todavia, a senhora vai precisar digitar a senha quando vier buscar o computador.
- Meu senhor, eu estou em Londres. Portanto, um amigo meu vai buscar o computador pra mim.
- Bom, nesse caso, a senhora precisa escrever uma carta delegando a ele autoridade para retirar o computador. A carta precisa ser acompanhada de uma cópia do seu passaporte e ele vai precisar trazer o passaporte dele. E vamos pedir para que ele digite a senha.
Resposta que eu dei: okay.
Resposta que eu queria ter dado: senhor, será que o senhor não está levando muito a sério sua função? Caso não tenha notado, o senhor trabalha em um mero departamento de achados e perdidos em um pequeno aeroporto, que funciona apenas duas horas por dia.
Resposta que eu certamente não deveria ter dado: Mais alguma coisa? A assinatura não precisa ser registrada em cartório, com reconhecimento de firma? Se eu aparecer com um documento com uma simples assinatura sua síndrome de pequena autoridade não vai ter um chilique? Tem certeza?
E foi assim eu descrobri que a burocracia italiana é muito pior do que reza a lenda. Meu amigo, que fez a gentileza de buscar o computador, arrematou:
- Você deu sorte deles efetivamente funcionarem no horário que eles anunciam no website. Muitas vezes não tive essa sorte. Mas obviamente cheguei lá com toda a papelada exigida e eles não sabiam do que se tratava, tiveram que chamar seis pessoas até conseguirem achar o computador, e ninguém me pediu senha nenhuma. Checar os documentos? Que documentos?
Qual a explicação para tanta incompetência? Muita gente acredita que a religião explica boa parte disso. Os países protestantes são mais eficiente, funcionais e ricos porque os princípios religiosos deles são mais condizentes com o sistema capitalista. Eu , todavia, estou começando a acreditar na hipótese contrária: a burocracia não é ruim porque eles são católicos. Acho que eles são católicos porque a burocracia é ruim. Qualquer um acaba virando católico se for obrigado a interagir com esse tipo de burocracia regularmente. Não há cristo que aguente....
domingo, 6 de abril de 2014
Esteriótipos (II): Os Noruegueses
Logo antes de eu embarcar para Oslo, na Noruega, saiu um longo artigo no The Guardian, questionando a idéia de que os países nórdicos são uma sociedade perfeita (leia aqui). O artigo é baseado em um livro, intitulado The Almost Nearly Perfect People.
Sobre os Noruegueses, o autor do livro apontava para o fortalecimento da extra direita no país, além do fato de que o país promovia o uso de recursos renováveis com o dinheiro do petróleo que vende para o resto do mundo. Ou seja, um bando de hipócritas conservadores esse noruegueses.
No dia anterior ao meu vôo, o The Guardian publica a resposta ao artigo (leia aqui). A resposta do norueguês é chata e pouco interessante (e talvez a razão seja porque o sujeito é um professor universitário). Ele basicamente fala que a sociedade sociedade civil tem ativamente se manifestado contra essa tendência direitista, em especial contra o novo governo. O professor acusa o autor do livro que ignorar estudos sobre o assunto.
A resposta? Meu livro não é um estudo acadêmico, mas sim uma coletânea de impressões de um viajante.
O sujeito da finlândia decide então compartilhar suas impressões de viajante: somos uma sociedade em que bons alunos viram médicos, enquanto na Inglaterra, de acordo com as pessoas com quem conversei, vocês ainda estão mais preocupados em saber de qual família vêm os alunos do que olhar para as notas que eles conseguiram. Além disso, diz o finlandês, quando saí para um pub numa sexta-feira a noite em Londres, achei que nossas bebeiras não são muito diferentes das inglesas.
O autor do livro se defende falando que usou as estatísticas da OCDE e do FMI. O sujeito da Dinamarca então responde: quer olhar para estatísticas? Então considere que nós somos um dos mais educados, menos corruptos e mais produtivos países do mundo. Além disso, somos os mais felizes, o que mostra que os anti-depressivos que estamos tomando de fato funcionam!

Daí você vê aquela decoração que lembra a IKEA, mas é ainda mais sofisticada, e você pensa: há muita beleza nessa simplicidade. E isso também vêm desde da época Viking: os barcos que eles construíam não eram apenas funcionais e duradouros, mas eram verdadeiras obras-primas.
Mas não se engane: apesar da sofisticação, há muito do esteriotípico Viking no sangue deles. Por exemplo, o país inteiro é viciado em livros, filmes e séries de TV sobre assassinatos, crime e sangue.
E além de sublimar o lado Viking com ficção, eles também se rebeldiam de verdade. O governo criou um monopólio estatal para controlar a venda e consumo de bebidas alcóolicas. Resultado: a maioria das pessoas produz bebida alcóolica em casa, a partir da fermentação da batata. E eles, com suas roupas e hábitos pouco sofisticados, sentados em uma sala com uma das decorações masi sofisticadas do mundo, falam que fazem isso com o maior orgulho.
sexta-feira, 4 de abril de 2014
Música do Dia
Achei um dos meus pianistas favoritos tocando Chico Buarque.
Conclusão: não é preciso ganhar na mega sena para ganhar o dia.
Conclusão: não é preciso ganhar na mega sena para ganhar o dia.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
Esteriótipos (I): Os Ingleses
O blog está meio às moscas porque ando viajando muito. Sinto como se tivesse ganhado a sorte grande: cada semana um país diferente. Maior parte das viagens à trabalho. Portanto, os gastos são mínimos e a diversão é muita.
Meu itinenário em fevereiro:
1) primeiro fim de semana: Noruega;
2) segundo fim de semana: Itália;
3) terceito fim de semana: Nova Iorque;
4) quarto de semana: Portugal (passei a semana toda lá. Portanto, foram dois fins de semana);
Daí entra março e as viagens não param: assim que voltei de Portugal, fui para Berlim.
Se alguém me dissesse, nos anos em que eu estava cursando meu doutorado, que seguir carreira acadêmica era forma mais efetiva de viajar de graça e comer muito bem, eu não acreditaria. Pois, cá estou...
Além de comer muito bem nessas viagens, estou aprendendo muito. Em especial sobre esteriótipos. Uma parte dos esteriótipos é verdadeira, mas não pelas razões que pensávamos.
Tome, por exemplo, os ingleses. Eles, de fato, falam muito sobre o tempo. Mas não fazem isso porque são uns chatos e não tem nada mais interessante para conversar. Ao contrário do que reza a lenda, descobri que, na Inglaterra, o tempo é tão imprevisível que é impossível não pensar no assunto. E, assim como os ingleses, os estrangeiros não estão imunes. Meu tio, que esteve aqui no ano passado, tinha dois comentários sobre a viagem: (1) amei Londres; (2) chove várias vezes, mas você entra em um café, espera um pouco e a chuva passa.
De fato, chove uma média de três vezes por dia, às vezes com intervalos super ensolarados. Para vocês terem um idéia da instabilidade: tem dias em que eu acordo e está chovendo; entro no banho e, dez minutos depois, quando saí do banho, já parou de chover; enquanto eu preparo meu café e saio de casa, abre o sol; caminho feliz da vida até o escritório; assim que entro no meu escritório começa a chover de novo. Se entre 7 e 9 da manhã já aconteceu tudo isso, imagina o resto do dia.
E se considerarmos os agitados pubs, que se enchem de grupos falantes e animados quase todas as noites, e o Monty Python aí sim é que temos a certeza de que os ingleses não são nada chatos. Muito pelo contrário!
Meu itinenário em fevereiro:
1) primeiro fim de semana: Noruega;
2) segundo fim de semana: Itália;
3) terceito fim de semana: Nova Iorque;
4) quarto de semana: Portugal (passei a semana toda lá. Portanto, foram dois fins de semana);
Daí entra março e as viagens não param: assim que voltei de Portugal, fui para Berlim.
Se alguém me dissesse, nos anos em que eu estava cursando meu doutorado, que seguir carreira acadêmica era forma mais efetiva de viajar de graça e comer muito bem, eu não acreditaria. Pois, cá estou...
Além de comer muito bem nessas viagens, estou aprendendo muito. Em especial sobre esteriótipos. Uma parte dos esteriótipos é verdadeira, mas não pelas razões que pensávamos.
Tome, por exemplo, os ingleses. Eles, de fato, falam muito sobre o tempo. Mas não fazem isso porque são uns chatos e não tem nada mais interessante para conversar. Ao contrário do que reza a lenda, descobri que, na Inglaterra, o tempo é tão imprevisível que é impossível não pensar no assunto. E, assim como os ingleses, os estrangeiros não estão imunes. Meu tio, que esteve aqui no ano passado, tinha dois comentários sobre a viagem: (1) amei Londres; (2) chove várias vezes, mas você entra em um café, espera um pouco e a chuva passa.
De fato, chove uma média de três vezes por dia, às vezes com intervalos super ensolarados. Para vocês terem um idéia da instabilidade: tem dias em que eu acordo e está chovendo; entro no banho e, dez minutos depois, quando saí do banho, já parou de chover; enquanto eu preparo meu café e saio de casa, abre o sol; caminho feliz da vida até o escritório; assim que entro no meu escritório começa a chover de novo. Se entre 7 e 9 da manhã já aconteceu tudo isso, imagina o resto do dia.
E se considerarmos os agitados pubs, que se enchem de grupos falantes e animados quase todas as noites, e o Monty Python aí sim é que temos a certeza de que os ingleses não são nada chatos. Muito pelo contrário!
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
Degustação Acadêmica
Visitei Oxford na semana passada. A cidade respira academia por todos os poros. Todos são estudantes, professores, pesquisadores. A cada esquina, um prédio histórico revela um departamento, uma biblioteca, ou uma sala de leitura. E, escondidos pela cidade, há passeios charmosos, em meio a jardins e campos, para caminhadas meditativas. Há uma aura de seriedade em todo ser que lá habita.
Eu estava, todavia, esperando ter um pouco de diversão. Meu cicerone havia me convidado para participar de um evento de degustação de vinhos. Segundo ele, um grupo de estudantes havia organizado uma sociedade degustadora de vinhos. Eles se reuniam todo sábado para duas rodadas de degustação. Enquanto os turistas veriam apenas a aura austera da cidade, eu estava esperando ter acesso à alma dela: os salões secretos, escondidos nos subterrâneos dos prédios, onde a máscara caia e rolavam verdadeiros carnavais. E eu, por mero acaso, teria acesso a uma dessas festas clandestinas e aguardava ansiosamente pela experiência.
E qual não foi minha surpresa ao encontrar um grupo de mais ou menos 20 estudantes, sentados comportadamente nas mesas, com suas folhas de anotações, aguardando o vinho ser servido. E assim foi. Durante duas horas, esses jovens de 19, 20, 21 anos, permaneceram calados, provando do vinho e fazendo anotações metódicas. Nada de festa. Nada de piadas. Nada de brincadeira. Ao contrário, o diálogo era sério e crítico, quando a instrutora do grupo questionava a avaliação que eles teriam feito do vinho tal ou do vinho qual. A maioria deles cuspia o vinho no baldinho. Ou seja, não era sequer uma embriaguez coletiva silenciosa o que estava ocorrendo ali.
Não me surpreende que tenha sido nessa cidade que algumas das mais criativas obras de literatura tenham surgido. C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien são os melhores exemplos da literatura de fantasia que saiu desse lugar tão bem comportado. Lá, veste-se de forma elegante, porta-se de maneira impecável, conversa-se sobre temas de alta relevância intelectual, e bebe-se como se fosse um exercício de treinamento militar. Alguma hora, o que há de humano, orgânico e espontâneo dentro desses seres, por menor que seja, precisa se manifestar.
Até eu, depois daquelas duas horas de degustação verdadeiramente acadêmica, estava pronta para trombar com Harry Potter e um dragão na próxima esquina. Mas nem depois de 12 taças de vinho muito bem saboreadas eu consegui encontrar eles...
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Numa tarde quente, fui me embora de Brasília...
Achei essa música por acaso, e as memórias foram muitas.
Oswaldo Montenegro era o que eu ouvia crescendo em Brasília.
E a letra da música tem tudo a ver comigo: "fui me embora de Brasília num submarino no Lago Paranoá".
Mas o mais legal mesmo foi ver a mãe do Oswaldo, Dona Elvira Montenegro, com todo o entusiasmo que lhe é característico, sentada na platéia cantando junto. Maravilhosas lembranças da minha professora de filosofia da 5a série no colégio Alvorada....
P.S. - E de canja ainda tem Léo e Bia com participação especial de Zeca Baleiro. "No centro de um planalto vazio...."
Oswaldo Montenegro era o que eu ouvia crescendo em Brasília.
E a letra da música tem tudo a ver comigo: "fui me embora de Brasília num submarino no Lago Paranoá".
Mas o mais legal mesmo foi ver a mãe do Oswaldo, Dona Elvira Montenegro, com todo o entusiasmo que lhe é característico, sentada na platéia cantando junto. Maravilhosas lembranças da minha professora de filosofia da 5a série no colégio Alvorada....
P.S. - E de canja ainda tem Léo e Bia com participação especial de Zeca Baleiro. "No centro de um planalto vazio...."
domingo, 19 de janeiro de 2014
Viajando no Direito Inglês
Ontem fiz uma pequena viagem de London até Salisbury, onde se pode visitar a famosa catedral com o mesmo nome, e o monumento pré-histórico Stonehenge. Achei tudo bonito e interessante, tirei fotos como qualquer turista, etc, etc.
Mas o passeio teve uma outra dimensão, que eu apenas pude apreciar porque dou aula de direito, e mais especificamente porque vivo em um país que não apenas usa o sistema da common law, mas que ainda é bastante influenciado pela legislação inglesa.
A common law, diferentemente do sistema brasileiro e da maioria da Europa Continental (civil law), é baseada em casos. Há muito poucas leis escritas e toda e qualquer disputa trazida perante a corte é decidida pelo juiz, com base em bom senso e, se possível, fazendo referência a casos anteriores que enfrentaram a mesma questão.
Um dos primeiros casos que meus alunos lêem no curso de contratos trata de um comerciante inglês no século XIX que programou uma viagem de negócios após consultar os horários disponíveis de trens, segundo informação fornecida pela empresa (Denton v. Great Northern Railway Company, 1865). O viajante conseguiu ir de London até a primeira cidade, mas ao tentar embarcar para a segunda cidade descobriu que aquela linha não estava mais em operação. Processou a empresa pelo prejuízo que teve. Como ele não tinha comprado a passagem, mas simplesmente planejado a viagem, a pergunta era se havia um contrato entre ele e a empresa, que havia sido quebrado. A corte decidiu a favor do consumidor, criando um dos precedentes mais controversos do curso.
Assim que eu comecei a programar minha viagem, consegui ver claramente o resultado do caso: as empresas de trens colocam os horários disponíveis na internet, mas avisam que não se responsabilizam por mudanças. Basta dar uma olhada nas letrinhas pequenas no último parágrafo do panfleto com os horários (aqui) E para aqueles que estão achando um absurdo as letrinhas pequenas que ninguém vai ler, há dois outros casos que discutem quão pequenas e visíveis as letrinhas devem ser. A resposta, basicamente, é: depende de quão abusiva (e portanto inesperada) for a cláusula. Nesse caso, como trata-se de senso comum, não se espera muita visibilidade. Ou seja, proteção ao consumidor aqui começou há muito tempo atrás.
Já no final do curso, discutimos um segundo caso, no qual um sujeito que tinha comprado uma pintura da catedral de Salisbury, alega que a mesma não tinha sido pintada pelo famoso John Constable (Leaf v. International Galleries, 1950). Na falta de um "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta", o caso foi parar no judiciário inglês. A pergunta que a corte teve que responder era a seguinte: o comprador pagou pela pintura que estava na frente dele, ou ele pagou por uma pintura do tal do John Constable. No primeiro caso, se ele assumiu erroneamente que era John Constable, problema dele. No segundo caso, o fato da pintura não ser o que estava estipulado no contrato invalidava a transação e dava a ele o direito de recuperar seu dinheiro. A corte acabou não respondendo a pergunta, pois disse que reclamar cinco anos depois da compra era tarde demais. Portanto, a questão da anulação do contrato devido a "erro" teve que ser decidida em outros casos.
Foi fascinante não apenas ver a famosa catedral de perto (por fora e por dentro), mas o mais interessante foi encontrar na lojinha de conveniências vários cartões postais com a famosa pintura de John Constable, que discuto todo ano com meus alunos.
Por fim, dentro da catedral, encontra-se uma das quatro cópias da Magna Carta, assinada em 1215 pelo rei João 1o. Todas as cláusulas estão em uma única página, afinal, papel não era fácil de achar naquela época!
Para caber em uma única página, o documento -- disse a guia -- contém tantas abreviações que é praticamente impossível de ler sem ser um especialista. A boa notícia é que eles oferecem uma tradução em inglês que eu e minhas colegas, todas advogadas, obviamente paramos para ler cláusula por cláusula. Tem muita coisa interessante lá (assunto que vou deixar para outro post).
Duas cláusulas que achei particulamente interessantes:
– Logo que uma mulher fique viúva,
receberá imediatamente sem dificuldade alguma, seu dote e herança,
não ficando obrigada a satisfazer quantia alguma por esta restituição,
nem pela pensão de viuvez, de que for credora, no tocante aos bens
possuídos pelo casal, até à morte do marido; poderá permanecer
na casa principal deste por espaço de quarenta dias, contados desde
o do falecimento; e se lhe consignará, entretanto, dote, caso não
o tenha sido antecipadamente. Estas disposições serão executadas,
se a sobredita casa principal não for uma fortaleza; mas, se o for,
ato contínuo, será oferecida à viúva outra casa mais
conveniente, onde possa viver com decência até que se designe o
seu dote, segundo aviso prévio, percebendo dos bens comuns de ambos
os cônjuges o necessário para sua honesta subsistência. A pensão
será conforme a terça parte das terras possuídas pelo marido, a não
ser que lhe corresponda menor quantidade em virtude de um contrato
celebrado ao pé dos altares ( " ad ostium Ecclesiae" ).
– Nenhuma viúva poderá ser
compelida, por meio do embargo de seus bens móveis, a casar-se de
novo, se prefere continuar em seu estado; ficará, porém, obrigada
a prestar caução de não contrair matrimônio sem nosso
consentimento, se estiver debaixo de nossa dependência, ou do
senhor de quem dependa diretamente.
Em um dos cursos que ministro, tenho uma aula dedicada a gênero e desenvolvimento. Nesse aula, os alunos descobrem que esse tipo de garantia sucessória básica para mulheres, estabelecido na Inglaterra em 1215, ainda não existe em muitos lugares do mundo, especialmente na África. Ou seja, 9 séculos depois, ainda há países que não incorporaram esse tipo de legislação.
E o Brasil não tem muito do que se orgulhar também. Nosso código civil de 1917 incluiu no seu artigo 219, a seguinte cláusula: "Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV – O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.” Ou seja, a mulher era tratada como uma pintura de Constable. Se não fosse mais virgem, o marido tinha o direito de anular o casamento (assim como o comprador podia anular o contrato de compra e venda). E o prazo para fazer a reclamação também era limitado: dez dias. A isso de acrescenta uma série de outras barbaridades, como o art. 242 que proibia a mulher de exercer qualquer ato da vida civil (assinar contratos, aceitar heranças ou ingressar com uma ação na justiça) sem autorização do marido. Não me surpreenderia, portanto, se em pleno início do século XX o Brasil não concedesse às mulheres direitos sucessórios que a Inglaterra havia garantido em 1215...
E não é só com relação às mulheres que o Brasil faz feio. A Magna Carta afirma:
– Nenhum bailio ou outro funcionário
poderá obrigar a quem quer que seja a defender-se por meio de
juramento ante sua simples acusação ou testemunho, se não for
confirmado por pessoas dignas de crédito.
– Ninguém poderá ser detido, preso
ou despojado dos seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude
de julgamento de seus Pares segundo as leis do país.
– Não venderemos, nem recusaremos,
nem dilataremos a quem quer que seja, a administração da justiça.
Basta olhar para tortura policial, para Pedrinhas e para a quantidade de presos aguardando julgamento no Brasil para descobrir que quase 1000 anos depois, nós ainda não implementamos nada disso.
Em suma, há um aspecto invisível das visitas a locais e monumentos que é difícil penetrar. Mas quando conseguimos acesso a esse mundo (seja através de guias, seja por causa da nossa profissão), a visita se torna muito mais rica e interessante. Não se trata apenas de uma janela para o passado, mas essa é também uma oportunidade para compreender melhor tudo que temos e vivemos hoje. Oxalá um dia as elites brasileiras comecem a vir para a Europa não apenas para se deslumbrar com a civilidade das pessoas, com a segurança e com a limpeza das ruas, mas também aproveitem a visita para aprender sobre os pilares invisíveis de tudo que nós admiramos por aqui, e gostaríamos que existisse no Brasil também.
A common law, diferentemente do sistema brasileiro e da maioria da Europa Continental (civil law), é baseada em casos. Há muito poucas leis escritas e toda e qualquer disputa trazida perante a corte é decidida pelo juiz, com base em bom senso e, se possível, fazendo referência a casos anteriores que enfrentaram a mesma questão.
Um dos primeiros casos que meus alunos lêem no curso de contratos trata de um comerciante inglês no século XIX que programou uma viagem de negócios após consultar os horários disponíveis de trens, segundo informação fornecida pela empresa (Denton v. Great Northern Railway Company, 1865). O viajante conseguiu ir de London até a primeira cidade, mas ao tentar embarcar para a segunda cidade descobriu que aquela linha não estava mais em operação. Processou a empresa pelo prejuízo que teve. Como ele não tinha comprado a passagem, mas simplesmente planejado a viagem, a pergunta era se havia um contrato entre ele e a empresa, que havia sido quebrado. A corte decidiu a favor do consumidor, criando um dos precedentes mais controversos do curso.
Assim que eu comecei a programar minha viagem, consegui ver claramente o resultado do caso: as empresas de trens colocam os horários disponíveis na internet, mas avisam que não se responsabilizam por mudanças. Basta dar uma olhada nas letrinhas pequenas no último parágrafo do panfleto com os horários (aqui) E para aqueles que estão achando um absurdo as letrinhas pequenas que ninguém vai ler, há dois outros casos que discutem quão pequenas e visíveis as letrinhas devem ser. A resposta, basicamente, é: depende de quão abusiva (e portanto inesperada) for a cláusula. Nesse caso, como trata-se de senso comum, não se espera muita visibilidade. Ou seja, proteção ao consumidor aqui começou há muito tempo atrás.
Já no final do curso, discutimos um segundo caso, no qual um sujeito que tinha comprado uma pintura da catedral de Salisbury, alega que a mesma não tinha sido pintada pelo famoso John Constable (Leaf v. International Galleries, 1950). Na falta de um "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta", o caso foi parar no judiciário inglês. A pergunta que a corte teve que responder era a seguinte: o comprador pagou pela pintura que estava na frente dele, ou ele pagou por uma pintura do tal do John Constable. No primeiro caso, se ele assumiu erroneamente que era John Constable, problema dele. No segundo caso, o fato da pintura não ser o que estava estipulado no contrato invalidava a transação e dava a ele o direito de recuperar seu dinheiro. A corte acabou não respondendo a pergunta, pois disse que reclamar cinco anos depois da compra era tarde demais. Portanto, a questão da anulação do contrato devido a "erro" teve que ser decidida em outros casos.
Foi fascinante não apenas ver a famosa catedral de perto (por fora e por dentro), mas o mais interessante foi encontrar na lojinha de conveniências vários cartões postais com a famosa pintura de John Constable, que discuto todo ano com meus alunos.
Por fim, dentro da catedral, encontra-se uma das quatro cópias da Magna Carta, assinada em 1215 pelo rei João 1o. Todas as cláusulas estão em uma única página, afinal, papel não era fácil de achar naquela época!
Para caber em uma única página, o documento -- disse a guia -- contém tantas abreviações que é praticamente impossível de ler sem ser um especialista. A boa notícia é que eles oferecem uma tradução em inglês que eu e minhas colegas, todas advogadas, obviamente paramos para ler cláusula por cláusula. Tem muita coisa interessante lá (assunto que vou deixar para outro post).
Duas cláusulas que achei particulamente interessantes:
Em um dos cursos que ministro, tenho uma aula dedicada a gênero e desenvolvimento. Nesse aula, os alunos descobrem que esse tipo de garantia sucessória básica para mulheres, estabelecido na Inglaterra em 1215, ainda não existe em muitos lugares do mundo, especialmente na África. Ou seja, 9 séculos depois, ainda há países que não incorporaram esse tipo de legislação.
E o Brasil não tem muito do que se orgulhar também. Nosso código civil de 1917 incluiu no seu artigo 219, a seguinte cláusula: "Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV – O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.” Ou seja, a mulher era tratada como uma pintura de Constable. Se não fosse mais virgem, o marido tinha o direito de anular o casamento (assim como o comprador podia anular o contrato de compra e venda). E o prazo para fazer a reclamação também era limitado: dez dias. A isso de acrescenta uma série de outras barbaridades, como o art. 242 que proibia a mulher de exercer qualquer ato da vida civil (assinar contratos, aceitar heranças ou ingressar com uma ação na justiça) sem autorização do marido. Não me surpreenderia, portanto, se em pleno início do século XX o Brasil não concedesse às mulheres direitos sucessórios que a Inglaterra havia garantido em 1215...
E não é só com relação às mulheres que o Brasil faz feio. A Magna Carta afirma:
Basta olhar para tortura policial, para Pedrinhas e para a quantidade de presos aguardando julgamento no Brasil para descobrir que quase 1000 anos depois, nós ainda não implementamos nada disso.
Em suma, há um aspecto invisível das visitas a locais e monumentos que é difícil penetrar. Mas quando conseguimos acesso a esse mundo (seja através de guias, seja por causa da nossa profissão), a visita se torna muito mais rica e interessante. Não se trata apenas de uma janela para o passado, mas essa é também uma oportunidade para compreender melhor tudo que temos e vivemos hoje. Oxalá um dia as elites brasileiras comecem a vir para a Europa não apenas para se deslumbrar com a civilidade das pessoas, com a segurança e com a limpeza das ruas, mas também aproveitem a visita para aprender sobre os pilares invisíveis de tudo que nós admiramos por aqui, e gostaríamos que existisse no Brasil também.
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