segunda-feira, 19 de julho de 2010

Uma grande cidade do interior

Um amigo meu que se mudou para a Austrália está visitando a cidade natal dele, Toronto. Trouxe a noiva, uma australiana com um sorriso gigantesco e uma simpatia do tamanho do sorriso. Eles apareceram uma tarde no meu escritório, o que foi uma excelente surpresa. Como ele havia se formado na Universidade de Toronto, ele resolveu mostrar sua alma mater para a noiva e, uma vez estando lá, ele decidiu ver se eu estava de bobeira. Eu, por óbvio, não estava de bobeira, mas estava lá, e batemos um papo. Nesse papo a noiva do meu amigo me deu a definição mais precisa de Toronto. 

Perguntei pra ela se era a primeira vez que ela visitava a cidade. Ela disse que sim. Perguntei o que ela tinha achado. Ela disse: Tem tudo que uma cidade grande tem, mas a sensação é de estar em uma cidade do interior. 

Eu acho que não há melhor definição pra cidade. E agora eu entendi porque eu gosto tanto daqui. Morei cinco anos em São Paulo, onde eu tinha acesso a tudo de bom que uma cidade grande oferece: restaurantes, shows, cinema, e gente interessante (o que não é difícil com 9 milhões de pessoas!). Mas depois de cinco anos a poluição, violência, e o trânsito começam a incomodar. Foi aí que me mudei para New Haven, que é uma cidadezinha de pouco mais de 100.000 habitantes. Lá dava pra andar pra todo lugar, e quando você decidia pegar o ônibus, o motorista te reconhecia e batia um papo. As pessoas não andavam desesperadamente pelas ruas, e com uma certa frequência um desconhecido puxava papo com você. Só bater um papo mesmo. Depois de sair de São Paulo, New Haven parecia ser o que o nome dizia: um novo refúgio. Porém, depois de cinco anos, a cidade parecia mais uma velha cela de prisão: tudo parecia o mesmo e o momento mais aguardado era o momento em que se podia sair da cidade. Foi aí que mudei para Toronto, e até a visita do meu amigo eu não conseguia definir porque eu gostava da cidade. Mas agora eu sei: tem tudo que São Paulo tem de bom, com tudo o que New Haven tinha de bom. 

A idéia de que Toronto é uma cidade grande não é difícil de entender. A cidade tem 5 milhões de habitantes e uma variedade enorme de restaurantes. Shows acontecem todos os dias, e especialmente no verão a cidade é inundada de eventos. Esse fim de semana, por exemplo, teve o festival brasileiro, com três dias ininterruptos de filmes, shows, exposições e comida brasileira. Comi até churrasquinho de gato enquanto assistia ao show da Malu Magalhães! 

Mas, ainda assim, a sensação que se tem é de estar em uma cidade pequena. E eu vi isso um dia desses, quando fui (a pé) até a farmácia buscar meu remédio. Quando cheguei lá, a farmacêutica não só sabia meu nome, sabia também o remédio que eu tinha ido buscar. Brinquei com ela, falando que provavelmente eu era a pessoa que mais consumia remédio naquela farmácia. Ela sorriu e falou que, na verdade, eu era uma das pessoas que menos consumia remédios na farmácia. E apontou para uma fila de velhinhos e velhinhas com seus oitenta e tanto anos, que devem tomar umas vinte pílulas por dia. Eu, por outro lado, ainda estou mantendo minha saúdavel cota de seis. Mas estou bravamente lutando pela minha posição de melhor cliente da farmácia, brinquei. 


Saí da farmácia e dei um pulo na livraria, pra ver os últimos lançamentos, e dei de cara com um jovem negro, vestido como um rapper, no alto das escadas, mandando ver no piano de cauda. Uma pequena multidão começava a se aglomerar para vê-lo tocar. Ele tocou um pouco de tudo mas, depois de algumas músicas, um menino de uns onze anos, branco, com uma blusa da nike  e um tênis modernoso pediu pra tocar um pouco. E a livraria foi inundada com uma performance quase impecável de música clássica. 

Resolvi dar uma olhada nos livros ao som da música e, de repente, um outro sujeito negro, mais velho, de óculos e boina passou a entreter os ouvintes com jazz e blues da melhor qualidade. Enquanto eu pagava pelos livros, perguntei para a caixa da loja se eles tinham esses recitais sempre. Ela disse que não eram recitais, eram pessoas que tinha entrado na loja e começado a tocar por livre e espontânea vontade. Nesse momento eu resolvi me juntar à multidão pra ver tudo isso mais de perto. 


E a coisa só foi ficando cada vez mais interessante. Os três pianistas, a essa altura, se alternavam entre si, tirando umas pausas pra bater um papo com quem quer que estivesse em volta. Nessas conversas, ouvi que o "rapper" era de uma região bastante pobre na periferia de Toronto e tinha aprendido a tocar sozinho; o menino, por outro lado, vinha de uma família rica, morava em um bairro chique e fazia aulas de piano desde os três anos de idade; o senhor negro tinha vindo dos Estados Unidos e tinha estudado um pouco de piano e aprendido um pouco "na estrada da vida".


Mas a coisa não parou por aí. Lá pelas tantas, um sujeito com feições indianas pediu pra tocar e basicamente todo mundo parou de conversar pra prestar atenção na música. Ao final, depois de ser muito aplaudido, ele revelou que eram composições dele mesmo e desapareceu do mapa, sem que ninguém tivesse uma chance de descobrir de onde ele era e como tinha ido parar ali naquela noite. 

Mas o meu pianista preferido foi o chinês. Falando um inglês bem quebrado, o homem parecia o sujeito que vende comida chinesa na esquina perto da escola. Uma roupa amarrotada, uma cara de quem trabalhou duro o dia inteiro, e um acúmulo de gordura que parecia indicar que ele tinha abandonado a culinária chinesa há alguns anos. Mas para minha grande surpresa -- e de todo mundo -- o sujeito sentou lá e revelou o que ninguém advinharia apenas olhando pra ele: tinha sido pianista em restaurantes. Sabe aquelas músicas de elevador? Ele sabia tocar todas!

Um encontro desses nunca iria acontecer em uma cidade como São Paulo, porque ia estar todo mundo preso no trânsito. Também é pouco provável que acontecesse em Nova Iorque, primeiro porque a loja não ia disponibilizar um piano assim, de graça, sem cobrar. Segundo porque as pessoas são muito mal humoradas e apressadas para sequer notar que tem alguém tocando piano dentro da livraria. Terceiro porque Nova Iorque não tem a diversidade cultural de Toronto: mais de 50% da população da cidade nasceu fora do país. E basta olhar para os pianistas: o lado rico (branco) e o lado pobre (negro) de Toronto, assim como todos seus imigrantes. 


Saímos todos de lá quando a livraria fechou e, para minha surpresa, encontro uma amiga na rua. Estávamos indo para a mesma direção e fomos conversando. Ela tinha contratado uma "personal manager" pra ajudar a administrar a vida dela. Eu, sem saber do que se tratava, perguntei se isso era um codinome para terapeuta. Não, explicou ela, é uma pessoa competente que te ajuda com o que você precisar. Trabalhando sem parar? A personal manager te ajudar a ver como você pode ser mais eficiente e voltar mais cedo pra casa. Nesse dia, o pai da minha amiga estava no hospital, então a personal manager estava ajudando ela com decisões executivas (viajar ou não pra dar um apoio para a mãe) assim como com toda a bagagem emocional da situação (ligar quando, e falar o que quando alguém ligasse).

Minha amiga resumiu: ela faz tudo que boas amigas fariam por você, mas nem sempre elas conseguem ou tem tempo pra te ajudar. E pra gente que precisa de muita ajuda com muitas coisas, como eu, não tem amiga que agüente, disse ela. Daí você contrata uma personal manager e todo mundo fica feliz... Achei curioso que agora até amizade o pessoal aqui anda profissionalizando (o que não me surpreenderia em uma cidade grande, em especial na América do Norte), mas ainda assim você consegue encontrar uma amiga na rua e ter uma conversa de verdade com ela, como em uma cidade do interior. 

Voltei pra casa satisfeita em saber que estou morando no melhor dos dois mundos. Se pudessem tirar o inverno, Toronto viraria o paraíso!



3 comentários:

Anônimo disse...

I'm so glad that you love the city you live in. Nothing better than that.

But I wouldn't rush to generalize negativity (or positivity) on to others.

As hard as it sometimes is to live in NYC, I always had very friendly and helpful encounters. The famous for fierce neighborhood activism (this is why it's the only big North American city with lots of little mom-and-pop shops and delis). Just a couple of examples from our neighborhood: A local organization put a piano on the sidewalk outside the local post office for anyone to play on it. The piano has been there for the past month, and you see random kids playing random notes, retired people trying old tunes, etc... And people who pass by stop and clap for them. I was invited by my neighbors to join an email list (which many neighborhoods here have some form of similar way to organize), I then discovered that people volunteer on regular basis to cook meals for stranger families who just had a new born. In the local paper there was a story about a man next door who has been tutoring the kids in the area for free to get to NYC top 6 high schools with 100% success rate (the average entry success rate is 20%). So in this case, NYC is not downtown with all the high power offices. It's where people live and die and make babies and organize to open a park, to keep a local deli alive and a mega store at bay.

This is not to say it's better or worse, it's just to say, you can't really tell by observing the surface. And also, big cities can come with anonymous acts of solidarity that are peculiar to them.

Personally, I know the charm of a little town, but I think I'm a city rat ;)

n.

M. disse...

Long time no see, N!

The comparison with NYC was just to check whether you were still reading the blog. I miss your comments and I am really glad my little bait worked.

You definitely have shown me the nice side of NYC when I visited you. And I am looking forward to another opportunity to seeing you (and the nice NYC where you live) sometime soon.

Love,
M.

Anônimo disse...

Well, this is not true. I did leave a comment on your Italy trip and on the video recommended by your mum ;)

I had a suspicion about the bait. Can I infer that your Brazil comparisons are also bait but for your Brazilian connections? xx n.