Diante desse texto de Vinícius de Moraes, desisti de tentar descrever a sensação de voltar ao país:
"Vejo de minha janela uma nesga do mar verde-azul de Copacabana e me penetra uma infinita doçura. Estou de volta à minha terra... A máquina de escrever conta-me uma antiga história, canta-me uma antiga música no bater de seu teclado. Estou de volta à minha terra, respiro a brisa marinha que me afaga a pele, seu aroma vem da infância. Retomo o diálogo com a minha gente. Uma empregada mulata assoma ao parapeito defronte, o busto vazando do decote, há toalhas coloridas secando sobre o abismo vertical dos apartamentos,dá-me uma vertigem. Que doçura!
Sinto borboletas no estômago, deve ter sido o tutu com torresmo de ontem misturado ao camarão à baiana de anteontem misturado à galinha ao molho pardo de trasanteontem misturada aos quindins, papos de anjo, doces de coco do primeiro dia. Digiro o Brasil. Qual o canard au sang, qual loup flambé au fenouil, qual pâté Strasbourgeois, qual nada! A calda dourada da baba de moça infiltra-se entre as papilas gustativas, elas desmaiam de prazer, tudo desagua em lentas lavas untuosas num amoroso mar de suco gástrico...
É a brazuca! -- disse-me Antônio Carlos Jobim balançando a cabeça com ar convicto, enquanto empinava o seu VW em direção ao Arpoador."
Trecho do livro Pois Sou bom Cozinheiro: receitas, histórias e sabores da vida de Vinícus de Moraes, p. 82.
P.S. - Obrigada, prima, por esse delicioso presente!
quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
domingo, 8 de dezembro de 2013
Relatos do Brasil e do Amor
No fim de semana passado, tive a oportunidade de assistir dois filmes no festival brasileiro de cinema de Toronto. Flores Raras é uma história de amor entre a poeta norte-americana Elizabeth Bishop e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares. Olga é outra história de amor entre uma revolucionária comunista alemã, Olga Benário, e Luiz Carlos Prestes.
As histórias tem muito em comum. Nos dois casos, duas estrangeiras vem ao Brasil com um propósito definido e acabam se apaixonando por brasileiros. Olga veio a mando do partido comunista numa missão para proteger Prestes, enquanto Bishop veio espairecer, buscando inspiração para voltar a escrever. O país, ou as respectivas paixões, incentivam a poetisa a voltar a escrever, e fazem a durona comunista amolecer. O resultado, nos dois casos, são histórias de amor conturbadas, sem finais felizes.
O pano de fundo são as reviravoltas políticas tão comuns na história do país. Vargas declara estado de sítio na época de Olga e o golpe militar de 64 acontece durante a estadia de Bishop. Nas duas histórias, as estrangeiras se apaixonam por pessoas profundamente envolvidas com a cena política, mas de lados opostos. Enquanto Prestes tentava derrubar o regime, através de uma revolução comunista, Lota tinha fortes laços com Carlos Lacerda, o governador do Rio que apoiou o golpe.
Outra semelhança é que ambos os filmes são baseados em livros. Flores Raras foi feito a partir da biografia romanceada de Carmen de Oliveira, enquanto Olga é baseado no fascinante livro de Fernando Morais.
As semelhanças, todavia, param aí. O relato das duas histórias é feito de forma bastante distinta nos dois filmes. Ambos os diretores estão focados na história de amor, mas enquanto Bruno Barreto celebra e trabalha em cima da complexidade das personagens e da relação entre elas, Jayme Monjardim faz exatamente o contrário.
Com diálogo artificiais e engessados, o diretor de Olga tenta retratar comunistas como idiotas robotizados, sem dar qualquer informação sobre o contexto político da época. Para tornar as coisas piores, o tom artificial dos diálogos em Olga não é abandonado nem no momento em que eles se apaixonam e viram protagonistas de um verdadeiro dramalhão mexicano. A quantidade de minutos usados na cena em que o regime nazista se apropria do bebê de Olga é, com certeza, um dos maiores desperdícios de película da história do cinema. Como se a história não fosse dramática o suficiente, o diretor decide jogar um pacote inteiro de açucar dentro da lata de leite condensado.
Flores Raras, em contraste, não ignora a realidade política do país, mas o faz sem abandonar o foco na vida pessoal das protagonistas. A cena mais marcante do filme, para mim, é o anúncio do golpe militar no rádio. Após ouvir a notícia, Bishop se dirige à janela e, para sua surpresa, vê que as pessoas estão na praia, se bronzeando e tomando sol, como se nada tivesse acontecido. Mas a surpresa maior vem quando ela descobre que Lota celebrou o golpe no gabinete do governador. O tema torna-se então um ponto de conflito entre as duas.
A estética também não podia ser mais diferente. Enquanto Flores Raras tem uma fotografia belíssima, com cortes e cenas estéticamente impressionantes, Olga tem um figurino que deixa a desejar, em um cenário que, de tão exagerado, parece falso. A neve de mentira apenas deixa as coisas ainda piores para o espectador.
As diferenças não deveriam ser uma grande surpresa. Enquanto Bruno Barreto é um renomado diretor, com uma filmografia respeitável, Jayme Monjardim faz novelas para TV. Portanto, Olga não passa de uma novela com duas horas de duração. Recomendo, no caso de Olga, deixar o filme de lado. Vale mais a leitura do livro de Fernando de Morais. O filme Flores Raras, em contraste, vale a pena assistir. Assim que eu terminar de ler o livro de Carmen de Oliveira volto aqui para dizer se vale a pena também.
As histórias tem muito em comum. Nos dois casos, duas estrangeiras vem ao Brasil com um propósito definido e acabam se apaixonando por brasileiros. Olga veio a mando do partido comunista numa missão para proteger Prestes, enquanto Bishop veio espairecer, buscando inspiração para voltar a escrever. O país, ou as respectivas paixões, incentivam a poetisa a voltar a escrever, e fazem a durona comunista amolecer. O resultado, nos dois casos, são histórias de amor conturbadas, sem finais felizes.
O pano de fundo são as reviravoltas políticas tão comuns na história do país. Vargas declara estado de sítio na época de Olga e o golpe militar de 64 acontece durante a estadia de Bishop. Nas duas histórias, as estrangeiras se apaixonam por pessoas profundamente envolvidas com a cena política, mas de lados opostos. Enquanto Prestes tentava derrubar o regime, através de uma revolução comunista, Lota tinha fortes laços com Carlos Lacerda, o governador do Rio que apoiou o golpe.
Outra semelhança é que ambos os filmes são baseados em livros. Flores Raras foi feito a partir da biografia romanceada de Carmen de Oliveira, enquanto Olga é baseado no fascinante livro de Fernando Morais.
As semelhanças, todavia, param aí. O relato das duas histórias é feito de forma bastante distinta nos dois filmes. Ambos os diretores estão focados na história de amor, mas enquanto Bruno Barreto celebra e trabalha em cima da complexidade das personagens e da relação entre elas, Jayme Monjardim faz exatamente o contrário.
Com diálogo artificiais e engessados, o diretor de Olga tenta retratar comunistas como idiotas robotizados, sem dar qualquer informação sobre o contexto político da época. Para tornar as coisas piores, o tom artificial dos diálogos em Olga não é abandonado nem no momento em que eles se apaixonam e viram protagonistas de um verdadeiro dramalhão mexicano. A quantidade de minutos usados na cena em que o regime nazista se apropria do bebê de Olga é, com certeza, um dos maiores desperdícios de película da história do cinema. Como se a história não fosse dramática o suficiente, o diretor decide jogar um pacote inteiro de açucar dentro da lata de leite condensado.
Flores Raras, em contraste, não ignora a realidade política do país, mas o faz sem abandonar o foco na vida pessoal das protagonistas. A cena mais marcante do filme, para mim, é o anúncio do golpe militar no rádio. Após ouvir a notícia, Bishop se dirige à janela e, para sua surpresa, vê que as pessoas estão na praia, se bronzeando e tomando sol, como se nada tivesse acontecido. Mas a surpresa maior vem quando ela descobre que Lota celebrou o golpe no gabinete do governador. O tema torna-se então um ponto de conflito entre as duas.
A estética também não podia ser mais diferente. Enquanto Flores Raras tem uma fotografia belíssima, com cortes e cenas estéticamente impressionantes, Olga tem um figurino que deixa a desejar, em um cenário que, de tão exagerado, parece falso. A neve de mentira apenas deixa as coisas ainda piores para o espectador.
As diferenças não deveriam ser uma grande surpresa. Enquanto Bruno Barreto é um renomado diretor, com uma filmografia respeitável, Jayme Monjardim faz novelas para TV. Portanto, Olga não passa de uma novela com duas horas de duração. Recomendo, no caso de Olga, deixar o filme de lado. Vale mais a leitura do livro de Fernando de Morais. O filme Flores Raras, em contraste, vale a pena assistir. Assim que eu terminar de ler o livro de Carmen de Oliveira volto aqui para dizer se vale a pena também.
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
A Geek, a Comida e a Morte
Fui na festinha. Conversei com
pessoas aleatórias, sobre coisas aleatórias. Daí veio a menina. Disse que
gostava de livros e das aulas na faculdade, e que conversava com os colegas
sobre os tópicos das aulas nas festinhas. “Sim, eu sou geek assim!” Eu
imediatamente começo a desviar o olhar em busca de alguém mais interessante ao
redor.
Eu conheci os verdadeiros “geeks”.
Estudei com o Renato Werneck no segundo grau – o menino que passou em primeiro lugar em todos
os vestibulares mais concorridos do Brasil, e saiu na capa da Folha e foi dar
entrevista no Jô Soares por causa disso. O Renato nunca se definiria como
“geek”. Parte do que define um “geek” é exatamente o fato de que ele não
percebe o quanto ele está fora do mundo. Ele fica lá, durante 45 minutos te
explicando porque o livro que ele leu no ultimo fim de semana está equivocado
sem notar que você nunca demonstrou qualquer interesse pelo assunto. Isso é um “geek”.
Por alguma razão que eu não
compreendo, virou moda ser “geek”. Daí “the cool kids”, as crianças bacanas,
bem ajustadas e interessantes da escola, acham que se auto-descrever como
“geek” é “cool”. Não sei em que universo essas crianças vivem, mas pra mim a
auto-declaração é o principal atestado de que você não é definitivamente
“geek”. Você chega com alguma roupa apresentável (ao invés de aparecer com uma meia
de cada cor, ou com a mesma roupa que você usou nos últimos cinco dias),
conversa olhando pra cara da pessoa, sorri, e não engata em um monólogo
auto-centrado de 45 minutos? Definitivamente sua auto-declaração não vale nada.
Sinto muito.
Eu já tinha parado de prestar
atenção no blablablá da suposta “geek” há muito tempo, quando ela mencionou que
adorava comida. Imediatamente minha cabeça estava de volta na conversa. Fiz
algumas perguntas. Ela gostava mesmo de comida. Quase tanto quanto eu.
Compartilhamos indicações de restaurantes, debatemos os pratos preferidos, e a
coisa estava até indo bem, quando a conversa passou para a metafísica da
experiência gatronômica.
A suposta “geek” me confessou que
ela sentia uma grande angústia diante de um prato perfeito. Primeiro, ela
tomava consciência de que não poderia saborear aquilo todos os dias. Depois,
contabilizava todos os obstáculos que impediriam apreciar aquilo com bastante
frequência (o restaurante era caro, o lugar era longe, etc, etc). Por fim, ela
começava a especular sobre a conjunção de fatores que tinham contribuído para
aquela experiência. E se o cozinheiro não conseguisse repetir o prato? E se ela
estava com tanta fome naquele dia que quando voltasse ali a experiência não
seria a mesma? E se a expectativa dela fosse muito alta e ela certamente se
frustaria se voltasse a comer ali? Enfim, o prato perfeito para ela era, na
verdade, uma grande tortura.
Eu, ao contrario da “geek”, não
tenho nenhuma angústia diante de um prato perfeito. O único pensamento que
passa pela minha mente é: posso morrer aqui, agora, que eu morro feliz. O prato
perfeito me dá uma sensação de realização, de completude, de finalidade.
A suposta “geek” apelidou isso de
experiência gastronômica zen budista.
Eu disse para ela parar de se preocupar
em colocar etiqueta em tudo e começar a se preocupar em viver a vida. E saí
em busca de outro copo de vinho e alguém mais interessante para conversar.
P.S. -- esse post é em parte uma homenagem a minha tia T., que fez aniversário essa semana e é definitivamente a autora das esfihas mais perfeitas que comi na vida. E é casada com meu tio, que tem seus momentos geeks, mas está sempre muito apresentável e não deixa de ter ele mesmo alguns dotes culinários altamente apreciados pela família...
P.S. -- esse post é em parte uma homenagem a minha tia T., que fez aniversário essa semana e é definitivamente a autora das esfihas mais perfeitas que comi na vida. E é casada com meu tio, que tem seus momentos geeks, mas está sempre muito apresentável e não deixa de ter ele mesmo alguns dotes culinários altamente apreciados pela família...
domingo, 24 de novembro de 2013
O jardineiro, a acadêmica e a mídia
Quando cheguei do Brasil, saí para jantar com um amigo que é escritor. Ele me perguntou como tinha sido a visita. Falei para ele que eu tinha dado entrevistas para rádio, TV e jornais e que eu era uma grande personalidade agora. Ele, ironicamente, me perguntou: porque só agora? Minha resposta: porque dessa vez alguém que tinha muito dinheiro organizou o evento, chamou a imprensa, e falou para eles prestarem atenção em mim.
No dia seguinte, meu amigo deixou na minha porta uma cópia da edição esgotada de um livro de Jerzy Kosinski chamado Being There (a tradução do título para o português deixa a desejar: O Vidiota). Terminei de ler o livro esse fim de semana. É quase como se o escritor tivesse ouvido minha história e escrito um livro inspirado nela.
Um jardineiro passa a vida inteira trancado dentro de uma mansão. Suas duas atividades são apenas cuidar do jardim e assistir TV. Ele não sabe ler, não tem família ou amigos, e raramente conversa com os demais serventes que trabalham na casa. Quando o dono da mansão morre, o jardineiro encontra-se, pela primeira vez na sua vida, fora da casa e longe do jardim, em um mundo que ele não entende bem como funciona.
Poucas horas depois de sair da mansão, ele é atropelado pelo carro de um milionário e é levado para a casa do mesmo, para se recuperar. O fato de que ele usa ternos feitos sob medida (que eram na verdade do dono da mansão onde ele trabalhava) faz com que o milionário e sua esposa assumam que ele é um respeitado homem de negócios. Isso, por sua vez, faz com que interpretem suas frases lacônicas e sem sentido como expressões de grande sabedoria. Em poucos dias, ele está frequentando os mais altos círculos dos Estados Unidos, altamente recomendado pelo seu atropelador. Graças a essa recomendação todas suas frases sem sentido são interpretadas como grande cultura e inteligência. Quando pessoas influentes começam a citar suas frases na mídia, todos jornais e revistas querem marcar entrevistas com ele. E ele se torna uma grande personalidade, sendo inclusive cotado para concorrer a um cargo político.
As semelhanças são evidentes. Eu e muitas outras pessoas dentro e fora do Brasil estamos trancados em blbiotecas fazendo pesquisa há anos e a imprensa raramente se dá ao trabalho de tentar saber o que estamos estudando. Mas quando uma entidade com muito dinheiro e bastante influência política (a federação das indústrias) organiza um evento e me convida para fazer uma apresentação, a imprensa de repente se interessa por aquilo que eu tenho a dizer.
Enquanto o jardineiro foi atropelado por um homem rico, meu evento foi bem menos traumático: conheci por acaso uma professora brasileira que, por sua vez, me apresentou ao seu marido em um jantar. Anos depois, o marido dela, que estava organizando o evento, sugere meu nome e eu termino na mídia, como o jardineiro. O fato de que sou professora em uma faculdade de ponta no exterior dá credibilidade à minha pessoa, assim como os ternos do jardineiro. Mas fora esse atestado de credibilidade, ninguém sabe ao certo o que eu faço, e ninguém ousa perguntar -- nem a mim, nem ao jardineiro.
A pergunta que fica é se alguém de fato entendeu o que eu estava falando. No livro, todo mundo assume que o jardineiro está dizendo algo muito profundo, mas o pressuposto é mais baseado em quem eles pensam que ele é, do que naquilo que ele disse. Há um grande risco de que o mesmo tenha acontecido comigo.
Depois de tantas similaridades, não surpreende que o fim da história seja o mesmo: eu e o jardineiro, depois de experimentar toda essa esquizofrenia, apenas queremos voltar para a paz e sensatez dos nossos respectivos jardins.
No dia seguinte, meu amigo deixou na minha porta uma cópia da edição esgotada de um livro de Jerzy Kosinski chamado Being There (a tradução do título para o português deixa a desejar: O Vidiota). Terminei de ler o livro esse fim de semana. É quase como se o escritor tivesse ouvido minha história e escrito um livro inspirado nela.
Um jardineiro passa a vida inteira trancado dentro de uma mansão. Suas duas atividades são apenas cuidar do jardim e assistir TV. Ele não sabe ler, não tem família ou amigos, e raramente conversa com os demais serventes que trabalham na casa. Quando o dono da mansão morre, o jardineiro encontra-se, pela primeira vez na sua vida, fora da casa e longe do jardim, em um mundo que ele não entende bem como funciona.
Poucas horas depois de sair da mansão, ele é atropelado pelo carro de um milionário e é levado para a casa do mesmo, para se recuperar. O fato de que ele usa ternos feitos sob medida (que eram na verdade do dono da mansão onde ele trabalhava) faz com que o milionário e sua esposa assumam que ele é um respeitado homem de negócios. Isso, por sua vez, faz com que interpretem suas frases lacônicas e sem sentido como expressões de grande sabedoria. Em poucos dias, ele está frequentando os mais altos círculos dos Estados Unidos, altamente recomendado pelo seu atropelador. Graças a essa recomendação todas suas frases sem sentido são interpretadas como grande cultura e inteligência. Quando pessoas influentes começam a citar suas frases na mídia, todos jornais e revistas querem marcar entrevistas com ele. E ele se torna uma grande personalidade, sendo inclusive cotado para concorrer a um cargo político.
As semelhanças são evidentes. Eu e muitas outras pessoas dentro e fora do Brasil estamos trancados em blbiotecas fazendo pesquisa há anos e a imprensa raramente se dá ao trabalho de tentar saber o que estamos estudando. Mas quando uma entidade com muito dinheiro e bastante influência política (a federação das indústrias) organiza um evento e me convida para fazer uma apresentação, a imprensa de repente se interessa por aquilo que eu tenho a dizer.
Enquanto o jardineiro foi atropelado por um homem rico, meu evento foi bem menos traumático: conheci por acaso uma professora brasileira que, por sua vez, me apresentou ao seu marido em um jantar. Anos depois, o marido dela, que estava organizando o evento, sugere meu nome e eu termino na mídia, como o jardineiro. O fato de que sou professora em uma faculdade de ponta no exterior dá credibilidade à minha pessoa, assim como os ternos do jardineiro. Mas fora esse atestado de credibilidade, ninguém sabe ao certo o que eu faço, e ninguém ousa perguntar -- nem a mim, nem ao jardineiro.
A pergunta que fica é se alguém de fato entendeu o que eu estava falando. No livro, todo mundo assume que o jardineiro está dizendo algo muito profundo, mas o pressuposto é mais baseado em quem eles pensam que ele é, do que naquilo que ele disse. Há um grande risco de que o mesmo tenha acontecido comigo.
Depois de tantas similaridades, não surpreende que o fim da história seja o mesmo: eu e o jardineiro, depois de experimentar toda essa esquizofrenia, apenas queremos voltar para a paz e sensatez dos nossos respectivos jardins.
sábado, 16 de novembro de 2013
O "Acadêmico"
O esteriótipo é conhecido: acadêmico é aquela pessoa CDF (ou geek como eles preferem ser chamados). Gostam de livros, falam de coisas que ninguém entende ou pelas quais ninguém se interessa, e são geralmente mal informados sobre coisas populares como a banda que está fazendo sucesso ou o tênis da moda. Confesso que é difícil, ao menos pra mim, lutar contra esse esteriótipo. Eu de fato não acompanho a maioria das coisas que interessa à maioria das pessoas, como os últimos seriados que todo mundo anda assistindo, ou o cantor que ganhou o prêmio de música do ano passado (Emmy?) e está tocando em todas as rádios. Como eles dizem em inglês, o acadêmico não é o "average joe", para o bem ou para o mal.
Mas há uma série de esteriótipos que são mais culturais e mais geograficamente localizados. Na minha última visita ao Brasil, por exemplo, um professor universitário me dizia que se um estudante de mestrado ou doutorado dele chega para uma reunião malhado e bronzeado, ele já sabe que o sujeito não tá trabalhando. Por que?, perguntei. "Porque se você está escrevendo um mestrado ou doutorado, você fica enfurnado na biblioteca, virando noites, tomando mil litros de café e sem ter uma vida social. Tanto eu quanto todo mundo que passou por isso sabe que é assim."
É assim no Brasil, foi a minha resposta. Na América do Norte, se você está trabalhando nesse ritmo, das duas uma: ou você é muito desorganizado e deixou todo o trabalho para última hora, ou você é muito ineficiente e precisa de uma quantidade insana de horas para fazer o que alguém faria em menos da metade do tempo. Ou seja, se você está se privando de ginástica e diversão enquanto trabalhando (em qualquer coisa, não apenas na sua tese ou dissertação), você provavelmente não é tão competente quanto a pessoa que consegue balencear tudo.
E o pior é que essa visão cultural de que você tem que sacrificar sua vida pessoal para levar a sério seu trabalho vem da nossa história escravocata. Eu não lembro qual foi o pesquisador que mostrou isso -- talvez tenha sido o Sergio Buarque -- mas basicamente a escravatura distorceu nossa visão de trabalho. Os escravos não eram remunerados por produtividade. Portanto, uma vez que se comprava um escravo, havia um incentivo para que se usasse o escravo o máximo de horas possíveis. Para se poupar, os escravos faziam o trabalho devagar, para compensar pelas longas horas. O resultado disso é que nós medimos trabalho pela quantidade de horas que você se dedicou aquilo (ou pelo esforço), e não pelo resultado. Assim, o sujeito que passou 10 horas na biblioteca e escreveu 10 páginas é aplaudido, enquanto que aquele que passou 5 horas, escreveu 30 páginas, e teve tempo de ir à praia antes e ir malhar depois é visto como o cara que não está levando a sério o projeto.
Segundo, há muito pouca cultura de organização do tempo no Brasil. Portanto, o sujeito fica malhando e indo para a praia durante quatro meses e daí quando faltam dois meses para entregar a tese ele se tranca na biblioteca e não fala com ninguém. Isso é simplesmente falta de disciplina e organização. O sujeito que trabalha 5 horas por dia durante seis meses está basicamente trabalhando 900 horas (incluí aqui fins de semanas e feriados para facilitar a conta). Já aquele que resolve começar o trabalho 2 meses antes do prazo, precisa trabalhar 450 horas pro mês para conseguir trabalhar a mesma quantidade de horas que o outro trabalhou. Isso dá 15 horas de trabalho por dia. Ou seja, esse segundo aluno vai de fato ter que se trancar na biblioteca, virar noites em claro e beber muitos litros de café. Mas ele não está necessariamente trabalhando mais ou levando o projeto mais a sério que o primeito. Na verdade, o primeiro indivíduo vai trabalhar a mesma quantidade de horas que o segundo, e ainda vai conseguir ir para a praia e para a academia todos os dias.
Em suma, precisamos seriamente rever nossas concepções de seriedade e dedicação ao trabalho, especialmente na academia brasileira. Focar no resultado e não na quantidade de horas talvez nos ajude a conseguir ao menos um único prêmio Nobel.
Mas há uma série de esteriótipos que são mais culturais e mais geograficamente localizados. Na minha última visita ao Brasil, por exemplo, um professor universitário me dizia que se um estudante de mestrado ou doutorado dele chega para uma reunião malhado e bronzeado, ele já sabe que o sujeito não tá trabalhando. Por que?, perguntei. "Porque se você está escrevendo um mestrado ou doutorado, você fica enfurnado na biblioteca, virando noites, tomando mil litros de café e sem ter uma vida social. Tanto eu quanto todo mundo que passou por isso sabe que é assim."
É assim no Brasil, foi a minha resposta. Na América do Norte, se você está trabalhando nesse ritmo, das duas uma: ou você é muito desorganizado e deixou todo o trabalho para última hora, ou você é muito ineficiente e precisa de uma quantidade insana de horas para fazer o que alguém faria em menos da metade do tempo. Ou seja, se você está se privando de ginástica e diversão enquanto trabalhando (em qualquer coisa, não apenas na sua tese ou dissertação), você provavelmente não é tão competente quanto a pessoa que consegue balencear tudo.
E o pior é que essa visão cultural de que você tem que sacrificar sua vida pessoal para levar a sério seu trabalho vem da nossa história escravocata. Eu não lembro qual foi o pesquisador que mostrou isso -- talvez tenha sido o Sergio Buarque -- mas basicamente a escravatura distorceu nossa visão de trabalho. Os escravos não eram remunerados por produtividade. Portanto, uma vez que se comprava um escravo, havia um incentivo para que se usasse o escravo o máximo de horas possíveis. Para se poupar, os escravos faziam o trabalho devagar, para compensar pelas longas horas. O resultado disso é que nós medimos trabalho pela quantidade de horas que você se dedicou aquilo (ou pelo esforço), e não pelo resultado. Assim, o sujeito que passou 10 horas na biblioteca e escreveu 10 páginas é aplaudido, enquanto que aquele que passou 5 horas, escreveu 30 páginas, e teve tempo de ir à praia antes e ir malhar depois é visto como o cara que não está levando a sério o projeto.
Segundo, há muito pouca cultura de organização do tempo no Brasil. Portanto, o sujeito fica malhando e indo para a praia durante quatro meses e daí quando faltam dois meses para entregar a tese ele se tranca na biblioteca e não fala com ninguém. Isso é simplesmente falta de disciplina e organização. O sujeito que trabalha 5 horas por dia durante seis meses está basicamente trabalhando 900 horas (incluí aqui fins de semanas e feriados para facilitar a conta). Já aquele que resolve começar o trabalho 2 meses antes do prazo, precisa trabalhar 450 horas pro mês para conseguir trabalhar a mesma quantidade de horas que o outro trabalhou. Isso dá 15 horas de trabalho por dia. Ou seja, esse segundo aluno vai de fato ter que se trancar na biblioteca, virar noites em claro e beber muitos litros de café. Mas ele não está necessariamente trabalhando mais ou levando o projeto mais a sério que o primeito. Na verdade, o primeiro indivíduo vai trabalhar a mesma quantidade de horas que o segundo, e ainda vai conseguir ir para a praia e para a academia todos os dias.
Em suma, precisamos seriamente rever nossas concepções de seriedade e dedicação ao trabalho, especialmente na academia brasileira. Focar no resultado e não na quantidade de horas talvez nos ajude a conseguir ao menos um único prêmio Nobel.
Música do Dia - Ou a Melodia do Tenured Professor
"Sleeping In"
Last week I had the strangest dream
Where everything was exactly how it seemed
Where there was never any mystery of who shot John F. Kennedy
It was just a man with something to prove
Slightly bored and severely confused
He steadied his rifle with his target in the center
And became famous on that day in November
Don't wake me I plan on sleeping
Don't wake me I plan on sleeping in
Don't wake me I plan on sleeping
Don't wake me I plan on sleeping in
Again last night I had that strange dream
Where everything was exactly how it seemed
Where concerns about the world getting warmer
The people thought they were just being rewarded
For treating others as they'd like to be treated
For obeying stop signs and curing diseases
For mailing letters with the address of the sender
Now we can swim any day in November
Don't wake me I plan on sleeping
(now we can swim any day in November)
Don't wake me I plan on sleeping in
Don't wake me I plan on sleeping
Don't wake me I plan on sleeping in
[x3]
Don't wake me I plan on sleeping in
Don't wake me I plan on sleeping
OOo oOo oOo
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Música do Dia
Na versão original:
E na reinterpretação para aqueles que não gostam de "rock" (you know who you are...):
E na reinterpretação para aqueles que não gostam de "rock" (you know who you are...):
terça-feira, 15 de outubro de 2013
Não tá fácil para ninguém
Você acha que sua vida tá difícil? Imagina se você tivesse que fazer isso:
1) Primeira tentativa:
2) Segunda tentativa:
3) Terceira tentativa:
Parabéns! Boa sorte nas próximas trezentas e tantas quedas...
1) Primeira tentativa:
2) Segunda tentativa:
3) Terceira tentativa:
Parabéns! Boa sorte nas próximas trezentas e tantas quedas...
domingo, 13 de outubro de 2013
O Canadá de Alice
A viagem estava planejada há mais de um mês, mas foi uma agradável surpresa pegar a estrada para visitar o interior do Canadá exatamente na semana em que Alice Munro ganhou o prêmio Nobel de literatura. Por uma feliz coincidência, alguns dias antes da viagem eu tinha ganhado de presente um livro de sua autoria. Estava eu na primeiras páginas da sua coleção de contos, quando peguei a estrada. No caminho, o prêmio foi anunciado.
Visitar as pequenas cidades canadenses na região dos grandes lagos é como visitar o estúdio cinematográfico das histórias de Alice Munro. As casas antigas, os estábulos mal conservados, os campos arados, a brisa à beira do lago, está tudo lá, do jeito que ela descreve. Mais do que isso, as histórias de Alice oferecem uma janela, através da qual observamos todas as complicações e dramas que estão por trás da supostamente pacata vida rural. Suas histórias ilustram as tensões subjacentes à cordialidade e simpatia dos habitantes dessas pequenas comunidades. E acabam por mostrar as sutilezas e complexidades de um Canadá praticamente inacessível àqueles que habitam as grandes cidades.
É a quinta vez que viajo para a zona rural do Canadá, mas essa foi a primeira vez em que eu estava mais interessada nas pessoas por trás das paisagens. O cenário é estondeante (em especial a folhagem de outono, com árvores em tons de amarelo, laranja e vermelho). Por causa disso, nas viagens anteriores, estava olhando as árvores. E basta um único urbanite ter tido a sorte de ver um animal selvagem, ainda que por 10 segundos, e não se fala sobre mais nada o resto do dia. "Vi um veado! Um peru selvagem estava no meio da estrada...Olha o salmão nadando rio acima para desovar." Esse é o principal tópico de conversa nos grupos que estão por lá apenas para passar o fim de semana.
Mas Alice Munro mostra que há vida também dentro daquelas casas mal conservadas. Há trabalhadores dentro dos estábulos, cada qual com uma história de vida diferente. Aquela pessoa dirigindo aquele trator ou ordenhando aquelas vacas, teve uma vida tão fascinante, que ela poderia se tornar a personagem principal de um romance. Ou seja, os contos de Alice nos obrigam a procurar pelas pessoas dentro das casas, a tentar advinhar o que se passou durante a longa vida daquela senhora que caminha a passos lentos pela estrada de terra, e a tentar ler nas entrelinhas os disabores vivenciados pelo dono da loja de conveniência que te recebe com um sorriso, como se você fosse um velho conhecido.
Alice humanizou uma parte do Canadá que parecia desabitada. Iluminou dramas e tensões que antes se desenrolavam em um palco escuro. E trouxe à vida pessoas que no passado não passavam de fantasmas à sombra de paisagens cinematográficas e animais silvestres. Por isso ela merece um Nobel, e a profunda gratidão de todos nós.
Visitar as pequenas cidades canadenses na região dos grandes lagos é como visitar o estúdio cinematográfico das histórias de Alice Munro. As casas antigas, os estábulos mal conservados, os campos arados, a brisa à beira do lago, está tudo lá, do jeito que ela descreve. Mais do que isso, as histórias de Alice oferecem uma janela, através da qual observamos todas as complicações e dramas que estão por trás da supostamente pacata vida rural. Suas histórias ilustram as tensões subjacentes à cordialidade e simpatia dos habitantes dessas pequenas comunidades. E acabam por mostrar as sutilezas e complexidades de um Canadá praticamente inacessível àqueles que habitam as grandes cidades.
É a quinta vez que viajo para a zona rural do Canadá, mas essa foi a primeira vez em que eu estava mais interessada nas pessoas por trás das paisagens. O cenário é estondeante (em especial a folhagem de outono, com árvores em tons de amarelo, laranja e vermelho). Por causa disso, nas viagens anteriores, estava olhando as árvores. E basta um único urbanite ter tido a sorte de ver um animal selvagem, ainda que por 10 segundos, e não se fala sobre mais nada o resto do dia. "Vi um veado! Um peru selvagem estava no meio da estrada...Olha o salmão nadando rio acima para desovar." Esse é o principal tópico de conversa nos grupos que estão por lá apenas para passar o fim de semana.
Mas Alice Munro mostra que há vida também dentro daquelas casas mal conservadas. Há trabalhadores dentro dos estábulos, cada qual com uma história de vida diferente. Aquela pessoa dirigindo aquele trator ou ordenhando aquelas vacas, teve uma vida tão fascinante, que ela poderia se tornar a personagem principal de um romance. Ou seja, os contos de Alice nos obrigam a procurar pelas pessoas dentro das casas, a tentar advinhar o que se passou durante a longa vida daquela senhora que caminha a passos lentos pela estrada de terra, e a tentar ler nas entrelinhas os disabores vivenciados pelo dono da loja de conveniência que te recebe com um sorriso, como se você fosse um velho conhecido.
Alice humanizou uma parte do Canadá que parecia desabitada. Iluminou dramas e tensões que antes se desenrolavam em um palco escuro. E trouxe à vida pessoas que no passado não passavam de fantasmas à sombra de paisagens cinematográficas e animais silvestres. Por isso ela merece um Nobel, e a profunda gratidão de todos nós.
terça-feira, 1 de outubro de 2013
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Procurando Plantas Perenes
Hoje eu descobri que os jardins do Canadá tem dois tipos de plantas: perenes e sazonais. As perenes são as plantas típicas do Canadá, que coseguem hibernar por seis meses ou mais e florescem de novo quando o gelo derrete e a primavera finalmente dá o ar da graça. Já as sazonais são aquelas importadas dos trópicos. Não sobrevivem ao inverno. Portanto, elas morrem e são substituídas por uma nova leva de plantas sazonais, compradas em alguma floricultura, na próxima primavera.
Manter uma planta viva para mim é um trabalho hercúleo. A lista de plantas que eu matei provavelmente serviria para me condenar a muitos anos de prisão se houvesse um tratado internacional ou alguma lei protegendo o direito das plantas à vida. A acusação não poderia ser de homicídio doloso porque eu nunca tive a intenção de matar as plantas. Mas certamente poderia ser acusada de homicídio culposo, pois eu sabia que eu não tinha habilidade para cuidar de plantas quando adquiri as mesmas. Ou seja, eu claramente assumi o risco de matá-las.
Daí vem esse povo canadense me dizer que eles não apenas conseguem manter as plantas vivas, mas depois de todo cuidado, carinho e investimento feito nelas, eles simplesmente largam as plantas lá fora para congelarem nesse inverno desumano.
Eu não sei vocês, leitores, mas pra mim tem muitas coisas erradas com isso.
Primeiro, acabei de ler um livro do Dan Ariely sobre como a gente valoriza mais do que as outras pessoas as coisas que possuimos e das quais cuidamos. Por exemplo, se eu vou comprar uma mesa, o preço que estou disposta a pagar por ela é menor do que o preço pelo qual eu estaria disposta a vend6e-la. E isso ocorre simplesmente porque a partir do momento em que eu me torno proprietária, a mesa passa a valer muito mais pra mim do que valia antes, apesar de se o mesmo objeto. Se eu tiver construído a mesa a coisa fica ainda pior: vou colocar um preço ainda mais alto nela. E daí vem esse povo todo comprar plantas, colocar adubo, regar todos os dias, se certificar que a quantidade de luz está certa, ver a planta florescer e crescer. E daí eles simplesmente deixam ela morrer! Não sei o que estão ensinando para as crianças na escola aqui, mas os experimentos de economia comportamental dizem que a maioria das pessoas não iria topar uma empreitada dessas.
Segundo, acho uma sacanagem com a planta. Ela tá lá feliz e contente debaixo do Equador. Daí você promete pra ela uma vida muito melhor, dizendo que ela vai para um país cheio de adubo, com pessoas que tomam conta dela todos os dias. E quando a planta chega aqui, usufrui dessa vida maravilhosa por cinco meses, só para descobrir sua sentença de morte. Se essa planta tivesse lido o Pequeno Príncipe, tenho certeza que ela estaria lá, olhando as temperaturas cairem e te dizendo: "você se torna responsável por tudo aquilo que cativa"...
Por fim, gente que desapego é esse? Não tenho estrutura emocional pra isso. Não sei se o povo aqui é budista, ou tem alguma outra religião que permite esse desprendimento, mas eu ia precisar de muita terapia pra deixar uma planta para a qual eu me dediquei tanto morrer assim.
Me disseram que esse é o preço que se tem que pagar por flores aqui no Canadá. Pois eu me recuso a lidar com os custos financeiros, ambientais e emocionais disso. Estou, a partir de agora, em busca de plantas perenes somente. Afinal, alguém precisa ser sã nesse país.
Manter uma planta viva para mim é um trabalho hercúleo. A lista de plantas que eu matei provavelmente serviria para me condenar a muitos anos de prisão se houvesse um tratado internacional ou alguma lei protegendo o direito das plantas à vida. A acusação não poderia ser de homicídio doloso porque eu nunca tive a intenção de matar as plantas. Mas certamente poderia ser acusada de homicídio culposo, pois eu sabia que eu não tinha habilidade para cuidar de plantas quando adquiri as mesmas. Ou seja, eu claramente assumi o risco de matá-las.
Daí vem esse povo canadense me dizer que eles não apenas conseguem manter as plantas vivas, mas depois de todo cuidado, carinho e investimento feito nelas, eles simplesmente largam as plantas lá fora para congelarem nesse inverno desumano.
Eu não sei vocês, leitores, mas pra mim tem muitas coisas erradas com isso.
Primeiro, acabei de ler um livro do Dan Ariely sobre como a gente valoriza mais do que as outras pessoas as coisas que possuimos e das quais cuidamos. Por exemplo, se eu vou comprar uma mesa, o preço que estou disposta a pagar por ela é menor do que o preço pelo qual eu estaria disposta a vend6e-la. E isso ocorre simplesmente porque a partir do momento em que eu me torno proprietária, a mesa passa a valer muito mais pra mim do que valia antes, apesar de se o mesmo objeto. Se eu tiver construído a mesa a coisa fica ainda pior: vou colocar um preço ainda mais alto nela. E daí vem esse povo todo comprar plantas, colocar adubo, regar todos os dias, se certificar que a quantidade de luz está certa, ver a planta florescer e crescer. E daí eles simplesmente deixam ela morrer! Não sei o que estão ensinando para as crianças na escola aqui, mas os experimentos de economia comportamental dizem que a maioria das pessoas não iria topar uma empreitada dessas.
Segundo, acho uma sacanagem com a planta. Ela tá lá feliz e contente debaixo do Equador. Daí você promete pra ela uma vida muito melhor, dizendo que ela vai para um país cheio de adubo, com pessoas que tomam conta dela todos os dias. E quando a planta chega aqui, usufrui dessa vida maravilhosa por cinco meses, só para descobrir sua sentença de morte. Se essa planta tivesse lido o Pequeno Príncipe, tenho certeza que ela estaria lá, olhando as temperaturas cairem e te dizendo: "você se torna responsável por tudo aquilo que cativa"...
Por fim, gente que desapego é esse? Não tenho estrutura emocional pra isso. Não sei se o povo aqui é budista, ou tem alguma outra religião que permite esse desprendimento, mas eu ia precisar de muita terapia pra deixar uma planta para a qual eu me dediquei tanto morrer assim.
Me disseram que esse é o preço que se tem que pagar por flores aqui no Canadá. Pois eu me recuso a lidar com os custos financeiros, ambientais e emocionais disso. Estou, a partir de agora, em busca de plantas perenes somente. Afinal, alguém precisa ser sã nesse país.
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Um cantinho pra chamar de seu, Tom!
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Meu camundongo de estimação
A primeira vez que eu vi um camundongo foi nos Estados Unidos. Ele apareceu na cozinha de supetão. Eu tomei um susto tão grande que meu berro provavelmente foi ouvido por toda a vizinhança. Corri para um lado e o camundongo correu para o outro. Se eu estava assustada com uma criatura tão pequena, apenas posso imaginar o quanto ele estava assustando com uma criatura gigantesca e tão sonora quanto eu.
Foram algumas semanas até ele aparecer de novo. Dessa vez, eu estava sentada, jantando. Ele veio até o meio da cozinha, parou e olhou para mim. Ele parecia sozinho e faminto. Eu também estava sozinha, mas diferentemente dele, saciava minha fome com o farto prato que tinha acabado de cozinhar. E foi ali, com aquele rápido olhar, que ele conseguiu me convencer que poderíamos manter relações diplomáticas. Pra que estresse, gritos e correria, se podemos comer nosso jantar na companhia um do outro? Afinal, éramos ambos seres sozinhos e famintos. Precisámos unir forças para lutar contra esse mundo cruel.
Suas visitas tornaram-se frequentes, mas não eram diárias. Mais do que isso, eram sempre rápidas, discretas e cordiais. Talvez isso tenha evitado o desgaste da nossa relação. Nunca o Tom (achei que batizá-lo de Jerry seria pouco criativo...) começou a se servir dos minúsculos pedaços que tinha caido acidentalmente no chão sem me cumprimentar. Era sempre um olhar rápido, atento e educado, como que pedindo permissão para se servir e me desejando bom apetite. Eu silenciosamente desejava bom apetite para ele também, e assim prosseguímos, cada um com sua refeição.
Com o tempo, comecei a ver os benefícios desse animalzinho em comparação com os demais. Tomei conta do gato de uma amiga, e o bicho tinha o diabo no corpo. Subia nas partes mais altas das estantes e armários, e começava vagarosamente a puxar tudo que encontrava, até derrubar no chão. Peças quebráveis como louça, vidro e porcelana eram suas favoritas. Peças de plátisco, que não sofreriam nem causariam qualquer estrago com a brincadeira, eram solenemente ignoradas. Comprei um borrifador de água para jogar nele assim que visse que ele ia aprontar, mas quem tem tempo para ficar perseguindo um gato o dia inteiro?
Em geral tendo a preferir cachorros, mas minha experiência com os daqui da América do Norte não foram muito bem sucedidas. De novo, através de favores para amigos, acabei tomando conta de duas cadelas supostamente civilizadas. O problema é que a primeira acordava as 6 da manhã em ponto e tinha que sair imediatamente para ir ao banheiro. Como eu morava no décimo oitavo andar, isso significava que eu tinha que sair da cama, colocar uma roupa, pentear o cabelo e estar minimamente apresentável para encontrar no elevador o vizinho que também estava levando o cachorro as seis da manhã para urinar na frente do prédio.
A segunda cadela já era um pouco mais preguiçosa de manhã, mas quando acordava queria tanta atenção que eu chegava exausta no trabalho. Isso sem falar no fato de que as brincadeiras vigorosas da cadelinha em um determinado momento acabaram por incluir meu iPad. Aconteceu enquanto eu tomava banho. Assim que sai do banheiro, apenas tive tempo de ver ela, em cima do sofá, sacudindo o iPad como se fosse um ursinho de pelúcia. Antes que eu conseguisse apanhá-lo, a genial invenção de Steve Jobs planou pela sala como um aviãozinho de papel e se estilhaçou do outro lado do cômodo. Uma pena que o gato não estava lá para assistir. Ele ia ter ficado bastante satisfeito com o estrago.
Em suma, as vantagens de se ter um camundongo são inúmeras. Trata-se de um bichinho independente. Ele passeia sozinho, providencia sua comida, não te acorda em horários inadequados, não demanda sua atenção, nem exige que você providencie um banheiro ou limpe o dele. Apenas nos encontramos quando os dois querem se encontrar. Ter um camundongo é como ter um parceiro, enquanto ter qualquer outro animal de estimação é como adotar um filho. Camundongo não tem dono. Tem um companheiro. Você e ele são dois seres independentes, que encontram algo em comum e estabelecem uma relação baseada em autonomia, respeito e estima. Se a palavra "estimação" vem de estima, esse é, por essência, o único animal que merece o título de animal de estimação. E assim como o camundongo vira seu animal de estimação, você se torna o dele. É uma relação baseada em reciprocidade, como toda relação saudável deve ser.
Senti falta do Tom nos primeiros dias de volta ao Canadá, mas não demorou muito para que um primo do Tom aparecesse. Como sói acontecer em casas antigas, ele saiu debaixo do fogão ontem: um pouco menos tímido e com um pêlo um pouco mais escurinho que o do Tom, mas tão educado quanto. Já somos amigos. Agora estou tentando descobrir se tem algum jeito de compartilhar com ele um pouco do meu vinho. Sempre bom ter companhia no hora do jantar, mas companhia para beber é ainda melhor!
Foram algumas semanas até ele aparecer de novo. Dessa vez, eu estava sentada, jantando. Ele veio até o meio da cozinha, parou e olhou para mim. Ele parecia sozinho e faminto. Eu também estava sozinha, mas diferentemente dele, saciava minha fome com o farto prato que tinha acabado de cozinhar. E foi ali, com aquele rápido olhar, que ele conseguiu me convencer que poderíamos manter relações diplomáticas. Pra que estresse, gritos e correria, se podemos comer nosso jantar na companhia um do outro? Afinal, éramos ambos seres sozinhos e famintos. Precisámos unir forças para lutar contra esse mundo cruel.
Suas visitas tornaram-se frequentes, mas não eram diárias. Mais do que isso, eram sempre rápidas, discretas e cordiais. Talvez isso tenha evitado o desgaste da nossa relação. Nunca o Tom (achei que batizá-lo de Jerry seria pouco criativo...) começou a se servir dos minúsculos pedaços que tinha caido acidentalmente no chão sem me cumprimentar. Era sempre um olhar rápido, atento e educado, como que pedindo permissão para se servir e me desejando bom apetite. Eu silenciosamente desejava bom apetite para ele também, e assim prosseguímos, cada um com sua refeição.
Com o tempo, comecei a ver os benefícios desse animalzinho em comparação com os demais. Tomei conta do gato de uma amiga, e o bicho tinha o diabo no corpo. Subia nas partes mais altas das estantes e armários, e começava vagarosamente a puxar tudo que encontrava, até derrubar no chão. Peças quebráveis como louça, vidro e porcelana eram suas favoritas. Peças de plátisco, que não sofreriam nem causariam qualquer estrago com a brincadeira, eram solenemente ignoradas. Comprei um borrifador de água para jogar nele assim que visse que ele ia aprontar, mas quem tem tempo para ficar perseguindo um gato o dia inteiro?
Em geral tendo a preferir cachorros, mas minha experiência com os daqui da América do Norte não foram muito bem sucedidas. De novo, através de favores para amigos, acabei tomando conta de duas cadelas supostamente civilizadas. O problema é que a primeira acordava as 6 da manhã em ponto e tinha que sair imediatamente para ir ao banheiro. Como eu morava no décimo oitavo andar, isso significava que eu tinha que sair da cama, colocar uma roupa, pentear o cabelo e estar minimamente apresentável para encontrar no elevador o vizinho que também estava levando o cachorro as seis da manhã para urinar na frente do prédio.
A segunda cadela já era um pouco mais preguiçosa de manhã, mas quando acordava queria tanta atenção que eu chegava exausta no trabalho. Isso sem falar no fato de que as brincadeiras vigorosas da cadelinha em um determinado momento acabaram por incluir meu iPad. Aconteceu enquanto eu tomava banho. Assim que sai do banheiro, apenas tive tempo de ver ela, em cima do sofá, sacudindo o iPad como se fosse um ursinho de pelúcia. Antes que eu conseguisse apanhá-lo, a genial invenção de Steve Jobs planou pela sala como um aviãozinho de papel e se estilhaçou do outro lado do cômodo. Uma pena que o gato não estava lá para assistir. Ele ia ter ficado bastante satisfeito com o estrago.
Em suma, as vantagens de se ter um camundongo são inúmeras. Trata-se de um bichinho independente. Ele passeia sozinho, providencia sua comida, não te acorda em horários inadequados, não demanda sua atenção, nem exige que você providencie um banheiro ou limpe o dele. Apenas nos encontramos quando os dois querem se encontrar. Ter um camundongo é como ter um parceiro, enquanto ter qualquer outro animal de estimação é como adotar um filho. Camundongo não tem dono. Tem um companheiro. Você e ele são dois seres independentes, que encontram algo em comum e estabelecem uma relação baseada em autonomia, respeito e estima. Se a palavra "estimação" vem de estima, esse é, por essência, o único animal que merece o título de animal de estimação. E assim como o camundongo vira seu animal de estimação, você se torna o dele. É uma relação baseada em reciprocidade, como toda relação saudável deve ser.
Senti falta do Tom nos primeiros dias de volta ao Canadá, mas não demorou muito para que um primo do Tom aparecesse. Como sói acontecer em casas antigas, ele saiu debaixo do fogão ontem: um pouco menos tímido e com um pêlo um pouco mais escurinho que o do Tom, mas tão educado quanto. Já somos amigos. Agora estou tentando descobrir se tem algum jeito de compartilhar com ele um pouco do meu vinho. Sempre bom ter companhia no hora do jantar, mas companhia para beber é ainda melhor!
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
A outra caixa
O último post foi sobre o CD que eu achei abrindo as caixas da mudança. Esse é sobre um CD que eu achei em outra caixa, minha memória. Essa caixa não é você quem decide quando abrir. Alguém abre ela e joga na sua frente e você é sugado para dentro de um túnel do tempo. Quando menos espera, está em outro lugar.
Foi essa a sensação que tive quando cliquei no link do vídeo abaixo, que minha tia tinha postado no facebook para celebrar o aniversário de 51 anos da Paula Toller:
Voltei para Brasília. Estava lembrando do segundo grau no Sigma e da Paula Toller novinha até ela decidir dar aquela nota longuíssima (1'52''). A nota me trouxe de volta para 2013 e para a Paula Toller com os cabelos e as sombrancelhas da mesma cor. Sim, aquela nota arruinou minha viagem no tempo.
Daí eu fui procurar a versão original da música, e encontrei também a Paula Toller que eu conheci em Brasília: cabelo descolorido com água oxigenada e sombrancelha preta, junto com os dois outros membros da trupe.
Foi essa a sensação que tive quando cliquei no link do vídeo abaixo, que minha tia tinha postado no facebook para celebrar o aniversário de 51 anos da Paula Toller:
Voltei para Brasília. Estava lembrando do segundo grau no Sigma e da Paula Toller novinha até ela decidir dar aquela nota longuíssima (1'52''). A nota me trouxe de volta para 2013 e para a Paula Toller com os cabelos e as sombrancelhas da mesma cor. Sim, aquela nota arruinou minha viagem no tempo.
Daí eu fui procurar a versão original da música, e encontrei também a Paula Toller que eu conheci em Brasília: cabelo descolorido com água oxigenada e sombrancelha preta, junto com os dois outros membros da trupe.
Voltei pro Sigma. Lembrei do uniforme verde de educação física. De passar a tarde no telefone com as amigas. De ir ao ParkShopping no fim de semana. E de me preocupar com coisas que hoje em dia não me preocupam mais, como calças bag, ombreiras e minhas espinhas...
E daí eu vejo o comentário do adolescente, José Vicente, debaixo desse vídeo: "Daria tudo pra ter meus dezesseis anos nos anos 80 e não em 2012..."
Daí fui transportada para um universo paralelo, onde encontrei o José Vicente. Ele me dizia:
- Daria tudo pra ter meus dezesseis anos nos anos 80 e não em 2012...
- Foram bons tempos, José Vicente.
- Eu sei! Imagina, poder crescer ouvindo essas músicas, dizia ele apontado pra a Paula Toller no iPhone.
- Sim, as bandas eram inacreditáveis. Não me entenda mal. Mas imagine passar um único dia sem o privilégio de ter seu próprio telefone (ao invés de ter um com fio, no meio da sala, com direito a toda a família ouvindo suas conversas), de ter google (ao invés de ter que consultar as páginas amarelas, mapas, pessoas), e não ter que escrever os trabalhos da escola à mão, em uma folha de papel almaço, depois de uma longa visita à biblioteca.
- É, ia ser difícil....
- Foi uma época ótima, mas estou mais feliz com Google, meu celular e a Paula Toller lindíssima e com o cabelo e sombrancelhas devidamente pintados.
Fechei a caixa da memória, coloquei ela de volta na estante. E espero que quando eu completar 51 anos, tenhamos todos Google Glasses para assistir uma Paula Toller ainda mais bonita...
domingo, 18 de agosto de 2013
Attaboy
A melhor parte da mudança é abrir uma caixa e achar um CD que você tinha comprado e ouvido sem parar durante dois meses, até se mudar:
Essa vai ser a trilha sonora até a próxima mudança.
Essa vai ser a trilha sonora até a próxima mudança.
sábado, 10 de agosto de 2013
Instituições ou Morte!
Essa semana, meu primo me mandou a seguinte notícia que ele leu na UOL: "Sarney tem bactéria resistente a antibióticos e amostra é enviada aos EUA para análise". Mandou também o comentário do cidadão, que meu primo considerou piedoso: "Rezamos para que
você consiga se livrar desse parasita!! Força, bactéria!".
Eu ri. Afinal, todos queremos nos livrar do Sarney, mas o parasita continua onipresente na vida política brasileira. Como bem colocou o macaco Simão na Folha de hoje: "Tão dizendo que tem um Sarney na bactéria! A bactéria é o sarneizossaurus! Já foram tentados os antibióticos: Collormicina, Lulomicina, Dilmicina, FHcina e até Barbosamicina."
Mas a questão não é engraçada. Na verdade, é trágica: vivemos em um país em que morte é a única forma de nos livrarmos de figuras indesejadas na política. E ainda assim, as vezes mesmo a morte não resolve o problema: veja o caso do ACM, que perdeu o filho para um infarto, mas deixou o neto para preservar seu legado.
Com frequência ouço as pessoas dizerem que a culpa é dos brasileiros, que não sabem votar, não lembram em quem votaram na última eleição, etc, etc. Mas o buraco é mais embaixo. Eleger pessoas de caráter questionável e desprovidas de competência e boas intenções não é um privilégio nosso. Pense no Nixxon, nos Estados Unidos. Ou se vocês
quiserem falar de membros do congresso, vale lembrar o caso de Cunningham, acusado em 2005 de receber dinheiro para testemunhar a favor de empresas contratadas pelo governo e acusadas de fraude.
quiserem falar de membros do congresso, vale lembrar o caso de Cunningham, acusado em 2005 de receber dinheiro para testemunhar a favor de empresas contratadas pelo governo e acusadas de fraude.
E, para não deixar o Canadá de fora, a cidade de Toronto conta atualmente com um prefeito que é, para dizer o mínimo, indesejável. Os escândalos de Rob Ford são muitos. Primeiro, o prefeito usou um ônibus urbano para transportar seu time de futebol. Depois, o prefeito foi acusado de usar cartas oficiais para solicitar contribuições para o mesmo time de futebol. Por causa disso, foi condenado por conflito de interesse e removido do cargo, mas venceu o caso na decisão final de judiciário. Isso foi seguido de acusações de alcoolismo, incluindo um episódio de bebedeira em um jantar oficial. As acusações mais recentes são que o prefeito é viciado em crack, foi traficante quando era jovem, e mandou matar uma pessoa que supostamente estavam com um vídeo mostrando o envolvimento dele com drogas. Em suma, Rob Ford não é flor que se cheire.
O histórico de Ford não é ruim apenas no âmbito pessoal. As propostas que ele apresentou para governar a cidade de Toronto seguem o mesmo padrão da vida pessoal dele: altamente questionáveis.
Primeiro, ele propôs reduzir o orçamento das bibliotecas e eventos artísticos na cidade, mas a proposta foi vetada pelo conselho municipal. Depois, ele propôs uma linha de metrô em um subúrbio distante (onde a maioria dos seus eleitores mora...), e a proposta foi inicialmente vetada pelo conselho municipal. O veto foi baseado em um relatório da secretaria de transportes indicando que, com o mesmo orçamento para uma única linha de metrô servindo uma única vizinhança, era possível (e preferível) construir linhas de bonde de superfície, o que eles chamam aqui de light rail, servindo tanto essa vizinhança quanto muitas outras. Ou seja, pelo mesmo preço era possível expandir o transporte público para vários pontos da cidade, não apenas um único. Recentemente, a proposta foi reconsiderada, e o conselho aprovou a construção do metrô no subúrbio sob uma condição: o prefeito precisa angariar fundos para o projeto de alguma outra fonte. Não se sabe onde e como ele vai levantar esse dinheiro. Por fim, Ford decidiu propor a construção de um cassino na cidade, gerando empregos e aumentando a arrecadação de impostos da prefeitura. Depois de muita controvérsia, a proposta foi vetada pelo conselho municipal.
Esses exemplos mostram que todo país ou cidade corre o risco de eleger políticos incompetentes e com princípios e valores moralmente questionáveis. A questão é o que acontece quando se percebe que uma pessoa que não deveria estar ocupando um cargo eletivo está lá? Nos dois casos norte-americanos que citei, os dois renunciaram aos cargos. No caso Canadense, tentaram tirar o Rob Ford da prefeitura, mas o judiciário não deixou. Ainda assim, a longa lista de projetos dele vetados pelo conselho municipal mostra que, apesar dele continuar no poder, ele não consegue governar como gostaria. Ou seja, o estrago que Ford poderia causar na cidade é minimizado por instituições que estão lá para controlar loucos e desvairados que são eleitos de quando em quando. Tanto é verdade, que logo no início do mandato de Ford, seu irmão e principal assessor (!) queria que o prefeito pudesse vetar decisões do conselho municipal. Basta dar uma olhada no parágrafo anterior para entender o por quê da proposta. A sorte é que, como muitas outras idéias dele, essa ficou a ver navios.
Em suma, não se trata de saber votar ou não saber votar (em especial se considerarmos o fato de que o sistema de lista aberta no Brasil tira o poder do eleitor de determinar quem de fato será eleito com aquele voto). Idiotas e criminosos existem no mundo todo e muitos deles estão votando, enquanto outros estão concorrendo para cargos eletivos. Não dá, portanto, para evitar a eleição dessas pessoas em um sistema democrático. O que dá para fazer é criar instituições que controlem quem foi eleito. Ou seja, é preciso haver mecanismos institucionais que permitam a retirada dessas pessoas do cargo, quando necessário. E o exemplo Canadense mostra que é preciso também ter instituições para controlar essas pessoas, para que elas não façam um estrago muito grande se continuarem no poder.
É por isso que a conversa sobre reforma política no Brasil precisa ser retomada. Precisamos de novas instituições. Sem isso, vamos continuar aqui torcendo para que o Sarney não consiga matar a bactéria....
terça-feira, 30 de julho de 2013
Three Ted Talks
Deixo aqui três vídeos com o que o pessoal chama de lifehacks, truques pra lidar com a vida. Não, não é auto-ajuda. Os três são baseados em pesquisas e apresentados pelos pesquisadores, todos professores de Harvard. E todos são pesquisas que ajudam a entender como o nosso cérebro funciona, e como administrar melhor a maquininha.
( Peço desculpas aos que não falam inglês, mas os vídeos ainda não têm legenda em outras línguas)
O primeiro é sobre felicidade sintética e natural. Todos conhecem a distinção que fazemos entre a felicidade natural (conseguimos o que queríamos) e a felicidade sintética (tentamos nos convencer que o que temos está bom, apesar de não ser aquilo que queríamos). Todo mundo acha que a natural é verdadeira, e a sintética é falsa. O pesquisador mostra, todavia, que entre um grupo de pessoas que ganhou na loteria e outro que ficou paraplégico os níveis de felicidade são basicamente idênticos.
Basicamente, a felicidade sintética é real: nós de fato mudamos nossas percepções do mundo, preferências estéticas e valores quando não conseguimos uma coisa que queríamos. Prova disso? Veja a experiência da escolha do quadro do Monet com pessoas que têm amnésia. Portanto, qual a melhor forma de ser feliz? Reduzir a quantidade de escolhas, e tornar as escolhar que fazemos irreversíveis. Ficar remoendo se essa é a escolha certa, ou se deveríamos revertê-la é receita para a infelicidade.
O segundo vídeo é sobre linguagem corporal. Nós sabemos que a linguagem corporal revela muito sobre o que somos e o que estamos sentindo. A pesquisadora, todavia, pergunta se a linguagem corporal também pode mudar o que somos ou sentimos. Ou seja, sabemos qual a linguagem corporal de líderes e pessoas poderosas. A pergunta é: se uma pessoa normal conscientemente adotar essa linguagem corporal, ela pode passar a se sentir mais confiante e assertiva? A resposta é sim.
A pesquisadora mostra que fazer uma "power pose", ou "postura de poder", aumenta o nível de testosterona no sangue a diminui os níveis de cortisol, o hormônio do estresse. Ou seja, a pessoa fica de fato mais assertiva. A recomendação dela é que as pessoas façam a pose da mulher maravilha, ou alguma outra pose dos experimentos durante o dia, mas especialmente antes de entrar em uma entrevista de emprego, reunião com clientes ou sentar em uma mesa de negociação. Simples assim: corra para o banheiro e finja que é a mulher maravilha.
Por fim, o terceiro vídeo é sobre felicidade também. A pergunta aqui é se nós trabalhamos para conseguir aquilo que vai nos fazer feliz, ou o contrário. Apesar da gente achar que a felicidade vai ser alcançada um dia, quando tivermos tudo que queremos, normalmente a coisa funciona da forma inversa. As pessoas felizes com a vida que tem trabalham mais e são mais produtivas, mais inteligentes e mais bem sucedidas que as outras.
Como isso funciona? Basicamente o pesquisador mostra que o ambiente exterior influencia quase nada na felicidade das pessoas. Grande parte da felicidade vem de como as pessoas lidam com a realidade que circunda elas. Portanto, a idéia de que você precisa dar duro para conseguir vencer na vida é completamente equivocada. A gente precisa acordar, pensar nas coisas que temos e que nos deixam felizes. Isso nos permite conseguir coisas que não conseguiríamos com pensamentos negativos.
Em suma, para garantir felicidade e o sucesso: acorde de manhã e tente evitar pensar que você devia ter comprado o iogurte que você gosta, e não essa coisa horrível que a danone lançou e você decidu experimentar. Quando terminar o iogurte, faça pose de mulher maravilha por dois minutos, enquanto faz uma lista mental de todas as coisas boas na sua vida, ainda que a lista se resuma a celebrar que você está vivo. Não esqueça de fazer de novo a pose de mulher maravilha no banheiro do escritório antes da reunião com o chefe. E na volta pra casa, entre no supermercado sem olhar para prateleira do lado em busca de novos iogurtes e assuma o compromisso de comprar, a partir de agora, sempre o mesmo iogurte, o que você gosta. Com esse pacote, você nunca mais vai precisar apostar na megasena!
segunda-feira, 29 de julho de 2013
Um Sabático pro Pratinha
Começo aqui minha campanha. Ele vai deixar de escovar os dentes com pressa, com certeza.
Folha de São Paulo, 28/07/2013 - 04h26
"Hoje é domingo, pé de cachimbo", eu cantava, quando era pequeno, e me vinha à cabeça uma árvore de madeira escura, com pencas de cachimbos pendendo das pontas dos galhos, prontos para serem colhidos e fumados. Fiquei um pouco desapontado, lá pelos dez anos, ao descobrir que o certo era "pede" cachimbo. Corrigi a música, mas o domingo, não: pra mim, ele continua sendo esse quadro pintado por Magritte e Dalí, com sua frondosa oferta de descanso e generosa sombra de melancolia.
Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles. Queria muito ser uma pessoa que acorda cedo, que vai ao parque. Um desses caras que eu vejo do carro, pedalando pela ciclovia, a mulher ao lado e um filho atrás, em sua bicicletinha. Dá uma alegria vê-los ali, passeando pela cidade. Enquanto permanecem no meu retrovisor, parece que o mundo é justo e que cada coisa está em seu devido lugar. É mais ou menos o que sente, imagino, o sujeito que chega à varanda, ao fim de um dia de trabalho, ou afunda na poltrona, meditabundo, para fumar o seu cachimbo.
Escrevo "meditabundo" e, por um momento, quase comungo desta alegria dominical, tirando as palavras velhas do armário para tomarem sol ou pitando-as calmamente, sem tragar, só para saboreá-las. Mas, meditabundo que me encontro --é domingo--, a sombra do pé de cachimbo logo me alcança: não sou esse homem na ciclovia nem esse outro, em sua varanda, em sua poltrona, com o vento no rosto ou a fumaça na boca, displicentemente instalados no presente.
Acho que, no fundo, tenho dificuldades é com o presente. Outro dia, reparei que sempre escovo os dentes com pressa, como se estivesse atrasado para um compromisso. Que compromisso é esse? Não sei. É como se houvesse nascido atrasado, chegado ao mundo meia hora depois e a todo instante tentasse recuperar os minutos perdidos. Talvez por isso me sinta mais acolhido nos dias de semana, dedicados ao trabalho e suas promessas. Alguma hora, ali adiante, a crônica estará pronta, o livro estará editado, o roteiro estará filmado e a concretização desses projetos, acredito, me trará sei lá que conforto, sei lá que certeza sobre mim mesmo --mas nunca traz. Por que se agoniar olhando para a direita do ponto final em vez de se contentar com o que há à esquerda? (Um dia, estarei eu à direita do ponto final e aí não haverá mais o que olhar.)
Ano passado, comprei uma bicicleta. Ao tirá-la da caixa, senti certa vergonha de mim mesmo, como um velho que sai da loja calçando All Stars vermelhos: aquilo não era eu, nem poderia mudar-me. Por meses a bicicleta se tornou só mais uma pequena emissora de ansiedade --preciso usar essa bicicleta, preciso usar essa bicicleta, preciso...--, depois seus pneus murcharam e eu soube que já não era por ela que eu escovava os dentes com pressa.
Talvez eu devesse comprar é um cachimbo. Nem que fosse para enterrá-lo no jardim, regá-lo todo dia e ficar na varanda, olhando pra grama e esperando, num exercício zen, em busca da paz interior. É isso: preciso comprar um cachimbo, preciso comprar um cachimbo, preciso.
Folha de São Paulo, 28/07/2013 - 04h26
Pé de cachimbo
Antonio Prata"Hoje é domingo, pé de cachimbo", eu cantava, quando era pequeno, e me vinha à cabeça uma árvore de madeira escura, com pencas de cachimbos pendendo das pontas dos galhos, prontos para serem colhidos e fumados. Fiquei um pouco desapontado, lá pelos dez anos, ao descobrir que o certo era "pede" cachimbo. Corrigi a música, mas o domingo, não: pra mim, ele continua sendo esse quadro pintado por Magritte e Dalí, com sua frondosa oferta de descanso e generosa sombra de melancolia.
Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles. Queria muito ser uma pessoa que acorda cedo, que vai ao parque. Um desses caras que eu vejo do carro, pedalando pela ciclovia, a mulher ao lado e um filho atrás, em sua bicicletinha. Dá uma alegria vê-los ali, passeando pela cidade. Enquanto permanecem no meu retrovisor, parece que o mundo é justo e que cada coisa está em seu devido lugar. É mais ou menos o que sente, imagino, o sujeito que chega à varanda, ao fim de um dia de trabalho, ou afunda na poltrona, meditabundo, para fumar o seu cachimbo.
Escrevo "meditabundo" e, por um momento, quase comungo desta alegria dominical, tirando as palavras velhas do armário para tomarem sol ou pitando-as calmamente, sem tragar, só para saboreá-las. Mas, meditabundo que me encontro --é domingo--, a sombra do pé de cachimbo logo me alcança: não sou esse homem na ciclovia nem esse outro, em sua varanda, em sua poltrona, com o vento no rosto ou a fumaça na boca, displicentemente instalados no presente.
Acho que, no fundo, tenho dificuldades é com o presente. Outro dia, reparei que sempre escovo os dentes com pressa, como se estivesse atrasado para um compromisso. Que compromisso é esse? Não sei. É como se houvesse nascido atrasado, chegado ao mundo meia hora depois e a todo instante tentasse recuperar os minutos perdidos. Talvez por isso me sinta mais acolhido nos dias de semana, dedicados ao trabalho e suas promessas. Alguma hora, ali adiante, a crônica estará pronta, o livro estará editado, o roteiro estará filmado e a concretização desses projetos, acredito, me trará sei lá que conforto, sei lá que certeza sobre mim mesmo --mas nunca traz. Por que se agoniar olhando para a direita do ponto final em vez de se contentar com o que há à esquerda? (Um dia, estarei eu à direita do ponto final e aí não haverá mais o que olhar.)
Ano passado, comprei uma bicicleta. Ao tirá-la da caixa, senti certa vergonha de mim mesmo, como um velho que sai da loja calçando All Stars vermelhos: aquilo não era eu, nem poderia mudar-me. Por meses a bicicleta se tornou só mais uma pequena emissora de ansiedade --preciso usar essa bicicleta, preciso usar essa bicicleta, preciso...--, depois seus pneus murcharam e eu soube que já não era por ela que eu escovava os dentes com pressa.
Talvez eu devesse comprar é um cachimbo. Nem que fosse para enterrá-lo no jardim, regá-lo todo dia e ficar na varanda, olhando pra grama e esperando, num exercício zen, em busca da paz interior. É isso: preciso comprar um cachimbo, preciso comprar um cachimbo, preciso.
domingo, 28 de julho de 2013
Saldo do Sabático
Enquanto eu me preparo para mudar de volta para o Canadá e para o inevitável fim do sabático, estou revendo tudo que aconteceu nos últimos doze meses.
Presto aqui minhas contas:
1) Trabalhei menos do que planejado, mas me diverti mais do que esperado. O problema é que meu corpo não estava psicologicamente preparado para tanta diversão. Meu pulmão pós-pneumonia, meu pé quebrado e a cicatriz na minha mão direita que o digam.
2) Li livros aleatórios sobre todo e qualquer assunto. Recomendo a experiência. Foram 27 livros não relacionados ao trabalho. Minha principal conclusão é que o Steve Jobs e o Albert Einstein eram loucos, e o autor das duas biografias é um dos melhores escritores que já conheci.
3) Viajar é preciso. Viver não é preciso. Passagens de avião tem data e horário marcado e, mais importante, destino certo. A vida te deixa assim, solto, ao Deus dará. Para não viver na incerteza, viaje.
4) A comida em Barcelona é inacreditável. E as sangrias também. E os taxistas são a representação caricatural dos habitantes da cidade, como os taxistas de qualquer outro lugar. E, acreditem, foi viagem a trabalho!
5) O facebook é uma praga que te suga, te absorve e toma todo seu tempo. Mas eu nunca estive tão bem infomada sobre o que saiu no jornal, o que não saiu no jornal e o que as pessoas pensam sobre tudo isso. É uma experiência antropológica.
Agora, de volta à dura realidade da vida: caixas de mudança.
Presto aqui minhas contas:
1) Trabalhei menos do que planejado, mas me diverti mais do que esperado. O problema é que meu corpo não estava psicologicamente preparado para tanta diversão. Meu pulmão pós-pneumonia, meu pé quebrado e a cicatriz na minha mão direita que o digam.
2) Li livros aleatórios sobre todo e qualquer assunto. Recomendo a experiência. Foram 27 livros não relacionados ao trabalho. Minha principal conclusão é que o Steve Jobs e o Albert Einstein eram loucos, e o autor das duas biografias é um dos melhores escritores que já conheci.
3) Viajar é preciso. Viver não é preciso. Passagens de avião tem data e horário marcado e, mais importante, destino certo. A vida te deixa assim, solto, ao Deus dará. Para não viver na incerteza, viaje.
4) A comida em Barcelona é inacreditável. E as sangrias também. E os taxistas são a representação caricatural dos habitantes da cidade, como os taxistas de qualquer outro lugar. E, acreditem, foi viagem a trabalho!
5) O facebook é uma praga que te suga, te absorve e toma todo seu tempo. Mas eu nunca estive tão bem infomada sobre o que saiu no jornal, o que não saiu no jornal e o que as pessoas pensam sobre tudo isso. É uma experiência antropológica.
Agora, de volta à dura realidade da vida: caixas de mudança.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Explicações Desnecessárias
Já que a maioria do povo brasileiro voltou à sua rotina, e esqueceu dos protestos, volto eu à minha rotina de escrever sobre coisas menos revolucionárias e mais mundanas no blog.
E, como o título do post sugere, a semana foi recheada de explicações absolutamente desnecessárias. Segue não apenas meu relato, mas um guia de como evitar causar esse aborrecimento a terceiros.
1. Comparar a situação deprimente do seu interlocutor com algo não deprimente não vai chamar atenção para o que há de comum entre as duas situações. Pelo contrário.
Segunda-feira: visita ao médico, que me vê a cada duas semanas desde março, quando quebrei o pé. Basicamente, ele me diz que o pé ainda está quebrado, mas que eu posso andar sem a bota ortopédica, porque parte do processo de recuperação envolve colocar peso no osso quebrado. Segundo ele, meu pé deve passar pelo mesmo processo de um astronauta que fica muito tempo no espaço e fica com os ossos enfraquecidos por falta de gravidade.
A explicação do astronauta dura exatos 15 minutos. Eu sei porque nessa segunda-feira eu estava ouvindo ela pela décima quinta vez. Acho que meu médico decorou um script para gastar exatos 20 minutos com cada paciente. O script garante que ele não precisa ter nenhum trabalho adicional (não precisa nem pensar sobre o caso), mas dá a impressão (para ele e somente ele!) que está dando um tratamento de primeira. Exceto pelo fato que ele esquece que eu já ouvi a lenga-lenga várias vezes.
Mas mesmo da primeira vez que eu ouvi o papo do astronauta, pensei: venhamos e convenhamos, não é a mesma coisa! O astronauta está com os ossos enfraquecidos porque ele estava em uma nave es-pa-ci-al! No espaço! Será que esse sujeito não consegue ver a diferença entre uma nave espacial e uma bota ortopédica? Eu explico: nave espacial é cool, bota não é cool. O astronauta é considerado um herói. Eu, em contrapartida, estou há quatro meses tendo que aceitar assentos cedidos por velinhas apiedadas no metrô. Entendeu ou quer que eu desenhe, doutor?
2. Nunca tente justificar a má qualidade do serviço que você está prestando dizendo que sua equipe não sabe o que está fazendo.
Terça-feira: visita ao consulado canadense em Nova Iorque.
Oficial #1
- Posso checar os documentos?
- Claro.
- Tá faltando as fotos.
- O site diz que vocês tiram as fotos aqui mesmo.
- Sim, mas você precisa ter um cheque administrativo de dez dólares. Não aceitamos dinheiro, nem cartão de crédito.
Vou eu até o banco comprar o cheque administrativo de dez dólares. Volto até o consulado. Passo pelo primeiro oficial de novo, que me manda para uma salinha, onde eu espero 15 minutos para ser atendida.
Oficial #2
- Posso checar os documentos?
- Claro.
- Só faltam as fotos.
- Trouxe um cheque administrativo pra tirar as fotos. Tá aqui.
- Sim, mas o valor é dez dólares e oitenta e oito centavos.
- Mas o primeiro oficial me disse que era dez dólares.
- Ah, é que mudou recentemente e ele não deve ter sido informado da mudança.
- Então, das duas uma: ou vocês param de cobrar essa taxa de cinquenta dólares pelo serviço, pois vocês não merecem receber esse dinheiro; ou a pessoa que deveria instruir o primeiro oficial deveria estar no olho da rua, pois claramente estamos lidando com um incompetente. E fica a dica: da próxima vez, para não tomar uma bordoada dessas, simplesmente peça desculpas ao cliente (no caso, eu) e veja com seu superior se não dá para aceitar o cheque de dez dólares, já que o erro foi de vocês.
3. Comparar a situação deprimente do seu interlocutor com algo não deprimente para chamar atenção para o que há de diferente entre as duas situações só vai fazer seu interlocutor se sentir um lixo. Evite.
Quarta-feira: trem de Nova Iorque para Boston tem inúmero problemas e é obrigado a parar por quase uma hora e meia no caminho, atrasando toda a viagem.
Depois de muitas explicações detalhadas do que estava acontecendo, e de muitos pedidos de desculpas (esses pelo menos receberam o treinamento que o pessoal do consulado não tinha recebido!), o condutor pega o microfone para anunciar que finalmente estamos partindo.
- Senhores passageiros, infelizmente isso aqui não é um avião. O avião pode acelelar e recuperar um pouco do tempo perdido com atrasos no solo. Nós, infelizmente, estamos confinados a esses trilhos e aos limites de velocidade impostos pelo governo. Portanto, nós vamos chegar com uma hora e meia de atraso em Boston e não há nada que eu possa fazer sobre o assunto no momento.
Podia ter oferecido um uísquinho e pulado a comparação com o avião, amigo.
E, como o título do post sugere, a semana foi recheada de explicações absolutamente desnecessárias. Segue não apenas meu relato, mas um guia de como evitar causar esse aborrecimento a terceiros.
1. Comparar a situação deprimente do seu interlocutor com algo não deprimente não vai chamar atenção para o que há de comum entre as duas situações. Pelo contrário.
Segunda-feira: visita ao médico, que me vê a cada duas semanas desde março, quando quebrei o pé. Basicamente, ele me diz que o pé ainda está quebrado, mas que eu posso andar sem a bota ortopédica, porque parte do processo de recuperação envolve colocar peso no osso quebrado. Segundo ele, meu pé deve passar pelo mesmo processo de um astronauta que fica muito tempo no espaço e fica com os ossos enfraquecidos por falta de gravidade.
A explicação do astronauta dura exatos 15 minutos. Eu sei porque nessa segunda-feira eu estava ouvindo ela pela décima quinta vez. Acho que meu médico decorou um script para gastar exatos 20 minutos com cada paciente. O script garante que ele não precisa ter nenhum trabalho adicional (não precisa nem pensar sobre o caso), mas dá a impressão (para ele e somente ele!) que está dando um tratamento de primeira. Exceto pelo fato que ele esquece que eu já ouvi a lenga-lenga várias vezes.
Mas mesmo da primeira vez que eu ouvi o papo do astronauta, pensei: venhamos e convenhamos, não é a mesma coisa! O astronauta está com os ossos enfraquecidos porque ele estava em uma nave es-pa-ci-al! No espaço! Será que esse sujeito não consegue ver a diferença entre uma nave espacial e uma bota ortopédica? Eu explico: nave espacial é cool, bota não é cool. O astronauta é considerado um herói. Eu, em contrapartida, estou há quatro meses tendo que aceitar assentos cedidos por velinhas apiedadas no metrô. Entendeu ou quer que eu desenhe, doutor?
2. Nunca tente justificar a má qualidade do serviço que você está prestando dizendo que sua equipe não sabe o que está fazendo.
Terça-feira: visita ao consulado canadense em Nova Iorque.
Oficial #1
- Posso checar os documentos?
- Claro.
- Tá faltando as fotos.
- O site diz que vocês tiram as fotos aqui mesmo.
- Sim, mas você precisa ter um cheque administrativo de dez dólares. Não aceitamos dinheiro, nem cartão de crédito.
Vou eu até o banco comprar o cheque administrativo de dez dólares. Volto até o consulado. Passo pelo primeiro oficial de novo, que me manda para uma salinha, onde eu espero 15 minutos para ser atendida.
Oficial #2
- Posso checar os documentos?
- Claro.
- Só faltam as fotos.
- Trouxe um cheque administrativo pra tirar as fotos. Tá aqui.
- Sim, mas o valor é dez dólares e oitenta e oito centavos.
- Mas o primeiro oficial me disse que era dez dólares.
- Ah, é que mudou recentemente e ele não deve ter sido informado da mudança.
- Então, das duas uma: ou vocês param de cobrar essa taxa de cinquenta dólares pelo serviço, pois vocês não merecem receber esse dinheiro; ou a pessoa que deveria instruir o primeiro oficial deveria estar no olho da rua, pois claramente estamos lidando com um incompetente. E fica a dica: da próxima vez, para não tomar uma bordoada dessas, simplesmente peça desculpas ao cliente (no caso, eu) e veja com seu superior se não dá para aceitar o cheque de dez dólares, já que o erro foi de vocês.
3. Comparar a situação deprimente do seu interlocutor com algo não deprimente para chamar atenção para o que há de diferente entre as duas situações só vai fazer seu interlocutor se sentir um lixo. Evite.
Quarta-feira: trem de Nova Iorque para Boston tem inúmero problemas e é obrigado a parar por quase uma hora e meia no caminho, atrasando toda a viagem.
Depois de muitas explicações detalhadas do que estava acontecendo, e de muitos pedidos de desculpas (esses pelo menos receberam o treinamento que o pessoal do consulado não tinha recebido!), o condutor pega o microfone para anunciar que finalmente estamos partindo.
- Senhores passageiros, infelizmente isso aqui não é um avião. O avião pode acelelar e recuperar um pouco do tempo perdido com atrasos no solo. Nós, infelizmente, estamos confinados a esses trilhos e aos limites de velocidade impostos pelo governo. Portanto, nós vamos chegar com uma hora e meia de atraso em Boston e não há nada que eu possa fazer sobre o assunto no momento.
Podia ter oferecido um uísquinho e pulado a comparação com o avião, amigo.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
O Garçom e a Revolução
Ao ver minha mãe sacar a carteira, o garçom se vira para meu pai:
- Opa! Tá errado. É o homem quem paga, doutô.
Tentando passar o recado sem comprar uma briga, meu pai responde:
- Amigo, hoje começa a grande revolução!
O garçom continua:
- Doutô, vou te falar: a revolução começou faz tempo! Tô cansado de ver um monte de engravatado, todos cheios de si, entrarem aqui pra comer. Quando vem a conta, quem paga é a única mulher da mesa, que tava ali quietinha o tempo todo. É a chefe de todos eles, acredita? Isso quando não é também a dona da empresa! Isso sem falar nesse país, com presidenta mulher, todas as ministras, juizas, etc.
Eu solto um "Pois é.", tentando evitar que o cara enrolasse ainda mais a corda no pescoço. Ao invés de aproveitar a deixa, ele resolve continuar:
- Essa mulherada veio com esse papo de igualdade, mas elas queriam mesmo era superioridade. E olha que passaram a perna na gente, doutô. Olha aí!
Meu pai continuava olhando pro lado, apesar do garçom continuar olhando na sua direção, insistindo numa suposta cumplicidade masculina contra toda essa opressão.
Minha mãe recolhe o cartão e consegue finalmente dar um fim à conversa:
- É. Só os fortes sobreviverão.
Ele achou que era piada. Aposto que vai perder o emprego para dessas mulheres que ficam por aí tentando afirmar sua superioridade a qualquer custo...
- Opa! Tá errado. É o homem quem paga, doutô.
Tentando passar o recado sem comprar uma briga, meu pai responde:
- Amigo, hoje começa a grande revolução!
O garçom continua:
- Doutô, vou te falar: a revolução começou faz tempo! Tô cansado de ver um monte de engravatado, todos cheios de si, entrarem aqui pra comer. Quando vem a conta, quem paga é a única mulher da mesa, que tava ali quietinha o tempo todo. É a chefe de todos eles, acredita? Isso quando não é também a dona da empresa! Isso sem falar nesse país, com presidenta mulher, todas as ministras, juizas, etc.
Eu solto um "Pois é.", tentando evitar que o cara enrolasse ainda mais a corda no pescoço. Ao invés de aproveitar a deixa, ele resolve continuar:
- Essa mulherada veio com esse papo de igualdade, mas elas queriam mesmo era superioridade. E olha que passaram a perna na gente, doutô. Olha aí!
Meu pai continuava olhando pro lado, apesar do garçom continuar olhando na sua direção, insistindo numa suposta cumplicidade masculina contra toda essa opressão.
Minha mãe recolhe o cartão e consegue finalmente dar um fim à conversa:
- É. Só os fortes sobreviverão.
Ele achou que era piada. Aposto que vai perder o emprego para dessas mulheres que ficam por aí tentando afirmar sua superioridade a qualquer custo...
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Plebiscito
Nesses épocas tão plebiscitárias, vale ler (ou reler) esse conto.
Plebiscito
Arthur Azevedo
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar
para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita
atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o
que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe?
Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a
mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você
falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não
sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu
filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a
torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o
diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador
involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e
façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em
tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto
zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito
boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
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